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Inovar é preciso
O futuro médico deve raciocinar com dados em constante evolução
IRANY NOVAH MORAES
(Professor da Faculdade de Medicina da USP)
Há mais de um século, Anatole France dizia: "É preciso usar método bem diferente para ensinar. Mostrem em poucas palavras os grandes objetos de uma ciência, assinalem alguns exemplos marcantes. Não se orgulhem de ensinar um grande número de coisas. Excitem apenas a curiosidade. Contentem-se em abrir os espíritos".
Há meio século, já se fazia sentir certa preocupação internacional com o ensino da medicina. O que já era percebido nos países desenvolvidos, agora com a globalização está atingindo também aqueles em desenvolvimento. A universidade brasileira sente a necessidade de reformular seu ensino.
Atualmente, não há dúvidas quanto à necessidade premente de se ensinar de maneira bem diferente da convencional. O jovem de hoje necessita aprender muita teoria e praticar considerável quantidade de procedimentos de refinada técnica, que exigem sempre o acompanhamento do mestre. Mas precisa, sobretudo, adquirir capacidade de raciocinar com dados em evolução e, ainda, ser dotado de bom senso. Esses predicados levarão o médico a se sobressair na comunidade, garantindo seu êxito profissional.
Raciocinar com dados em evolução - isso é fácil de entender e possível de conseguir. O legislador, quando estabeleceu os objetivos da universidade, colocou-os sobre três pilares: ensino, pesquisa e extensão dos serviços à comunidade. Na pesquisa está o diferencial de qualificação. Seu significado é notório e fica evidente diante do fato que relato a seguir.
Em meados do século passado, a Associação Médica Americana designou uma comissão para avaliar o ensino médico no mundo ocidental, e estabeleceu três categorias de escolas: o padrão A, com ensino de boa qualidade, conseqüentemente formando bons profissionais, e que tivessem também nível elevado de produção científica; o padrão B, as que formassem bons profissionais mas sem produção científica; e o padrão C, reservado para aquelas desprovidas das duas características. As primeiras mereceriam apoio para se aprimorar e se tornar centros de excelência. As segundas deveriam ser estimuladas a desenvolver pesquisas para mudar de padrão, enquanto as demais deveriam ser fechadas, pois estaria comprovada sua incompetência. Não tinham vocação.
Aplicando-se tal critério, apenas dez faculdades de medicina mereceram o padrão A: uma no Brasil, várias nos Estados Unidos e poucas na Alemanha, Inglaterra e França. Ficou, assim, bem caracterizado o valor da pesquisa no contexto da educação.
O pesquisador procura o desconhecido e quando o encontra está preparado para interpretá-lo, pois está familiarizado com o mecanismo de raciocinar para identificar a "unidade dentro da variedade". Com a pesquisa ele adquire projeção e destaque, pela capacidade para entender os fenômenos e saber explicar os fatos. O professor que pesquisa tem conceitos próprios, não é um simples repetidor e conhece, em profundidade, o que ensina. O jovem que o acompanhar na pesquisa aprenderá a lidar com o desconhecido e, mutatis mutandis, a raciocinar com dados em evolução. Alunos de graduação e médicos residentes, desde cedo engajados em pesquisa científica, entenderão, no momento certo de sua formação e com naturalidade, esse mecanismo intelectual.
A iniciação científica precoce, com um orientador competente e dedicado, habilitará o aluno a selecionar as publicações de melhor qualidade e, também, a localizar os melhores trabalhos sobre temas de seu interesse. O orientador conhece as obras fundamentais. A experiência adquirida com o atual sistema de pós-graduação revelou, com clareza, o papel importante do orientador.
Quanto ao bom senso, é difícil aprendê-lo, pois ainda não se sabe como ensiná-lo. Entretanto, acredito que deva ser lembrada a frase de Albert Schweitzer a esse respeito: "O exemplo não é a melhor maneira de ensinar: é a única". O convívio do aluno com seu orientador é a oportunidade de aprender pelo exemplo.
Imagino ainda que a crescente quantidade de reclamações na Justiça, verificada desde a última década, desperte no profissional o temor de cometer erro médico por imperícia, o que acenderá a luz da prudência, a mais importante das virtudes que compõem a ética. Assim iluminado, ele terá a preocupação de estudar mais. Se lhe for esclarecido, vai perceber como a pesquisa poderá abrir sua mente para aprender melhor, para evitar fazer o que não sabe, e para atualizar-se em busca do que é adequado em cada caso. Assim estará exercitando intuitivamente o bom senso.
São reflexões que podem ser facilmente adotadas por todas as faculdades de medicina do país. Resultarão rapidamente no refinamento do corpo docente, em maior dedicação ao aluno e, conseqüentemente, em sua melhor formação. Os futuros médicos serão, assim, competentes e éticos.
Tenho absoluta certeza, essa é a maneira mais adequada de mobilizar professores e alunos para colocar a saúde no círculo virtuoso do desenvolvimento.
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