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Liberadora de sonhos
A revolucionária Nise da Silveira, nossa mais importante psiquiatra
OLGA SAVARY
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Todo mundo tem uma mãe biológica. Também tenho uma: Célia, revolucionária para sua época, década de 30. Não poderia deixar de ser revolucionária a mãe que, por circunstâncias de vida e por eleição própria, eu havia de escolher 30 anos depois, na década de 60: Nise da Silveira.
Neste 2004, são cinco anos sem a doutora Nise, considerada a maior (embora fosse uma mulher pequena) e mais importante psiquiatra brasileira, falecida em 1999. Em sua compleição mais de menina do que de adulta, num corpo tão franzino, quem iria imaginar tal vigor? Nascida em Maceió, Alagoas, em 1905, esse colosso de mulher formou-se em medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia em 1926, elegendo a psiquiatria para dedicar sua vida inteira.
Em 1933 passou em concurso para médica psiquiatra, mas teve de interromper as atividades de 1936 a 1944, por motivos políticos. Readmitida, fundou dois anos depois a Seção de Terapêutica Ocupacional, criando em 1952 o Museu de Imagens do Inconsciente. Estudou no Instituto C. G. Jung, de Zurique, na Suíça, onde participou do 2º Congresso Internacional de Psiquiatria, apresentando trabalho com exposição de pinturas de doentes.
Participava ativamente das atividades relacionadas com a psiquiatria, publicando revistas, livros e artigos, além de proferir conferências. Trabalho reconhecido por instituições, órgãos de imprensa, universidades e governo.
Plenamente situada dentro da medicina clínica, da qual é um ramo, a psiquiatria (do grego psyche, mente, alma, e iatreia, cura, tratamento) está ligada às três ciências das quais decorre e é prolongamento: psicologia, neurologia e biologia. Cuida do diagnóstico, prognóstico e tratamento das alterações mórbidas da vida psíquica. A psicologia antecede a psiquiatria e o seu conhecimento é indispensável ao psiquiatra, assim como o conhecimento da fisiologia é indispensável ao patologista. Até fins do século 18, a psiquiatria jamais foi tratada como especialidade autônoma, apenas eram referidos casos de patologia mental em livros de medicina, quer dos antigos (Hipócrates, Asclepíades, Galeno, etc.), quer de autores medievais, ou já dos modernos. De fato, a psiquiatria passa a existir, autônoma, na França e na Alemanha, em 1801, quando aparece o famoso tratado do francês Philippe Pinel. O grande impulso vem no século 20, quando surge a fase psicodinâmica, com os estudos divulgados na obra de Freud, Jung e outros. Entra em curso a psicoterapia como tratamento às situações emocionais, os estresses psíquicos capazes de produzir alterações orgânicas, funcionais e até lesionais em todos os órgãos e aparelhos humanos.
Choques elétricos
Toda essa nova visão terapêutica mudou a situação dos doentes mentais, que, até fins do século 18, viviam de modo precário e desumano, confinados em locais distantes e imundos, isolados da sociedade, sob o peso de velhas superstições, que os consideravam possuídos pelo demônio ou condenados a expiar penas por pecados tenebrosos. Sem qualquer resquício de conforto ou higiene, aí ficavam por tempo indeterminado, presos a grilhões, como animais ferozes. Coube a Pinel, autor do primeiro manual de psiquiatria, realizar também a primeira grande e piedosa revolução no trato de psicopatas. Diretor de hospício em Paris, na época da Revolução Francesa, obteve, não sem dificuldades e ameaças, o direito de libertar das correntes todos os seus doentes, de dar-lhes espaço, sol e ar exterior, de resgatá-los à condição de seres humanos. Obra idêntica foi realizada na Itália e na Inglaterra. Graças a esses pioneiros, mais Freud e Jung (na Europa) e Nise da Silveira (no Brasil), os doentes mentais passaram a ter uma vida mais humana, com direito a tratamento psicológico, terapia ocupacional e até recreação, inclusive esportiva.
Sigmund Freud (1856-1939), com seu pioneirismo, visto como iconoclasta e exibicionista, porém baixando ao túmulo respeitado por seus contemporâneos, foi o ponto de partida para o que um dia se chamaria psicanálise. Grande escritor, sua contribuição inicial foi A Interpretação dos Sonhos (1900), considerado por ele seu maior livro. Dois de seus discípulos da primeira hora, e depois adversários, fundadores de escolas dissidentes de psicanálise, ficaram também famosos: Carl Gustav Jung e Alfred Adler.
Jung (1875-1961), psicólogo e psiquiatra suíço, filho de pastor protestante, formou-se em medicina, dedicando-se à psiquiatria. A princípio seguidor de Freud, dele se afastou em 1912, fundando sua própria escola e teoria, a psicologia analítica, que, além do inconsciente individual, privilegiava o inconsciente coletivo, ou seja, a influência de impulsos e vivências chegados a nós através dos séculos, através dos antepassados. Esse inconsciente coletivo cristaliza-se nos arquétipos, imagens universais. Assim, características pessoais conscientes de um indivíduo são acompanhadas por dinamismos arquetípicos inconscientes e de natureza oposta às primeiras. Desse modo, o homem, experimentando conscientemente sua masculinidade, no fundo está sendo movido também por arquétipos opostos, femininos, reunidos sob a denominação de anima; o contrário, na mulher, seria o animus, que atua no inconsciente. O bom equilíbrio psíquico desses dois arquétipos inconscientes deve se harmonizar com as vivências conscientes.
Admitida a influência do inconsciente coletivo, não era possível considerar-se unicamente a sexualidade como motor principal da vida instintiva (como se via em Freud), pois estariam atuando também forças não sexuais. Designando esse complexo instintivo com o termo "libido", Jung procurou investigar não somente as influências pessoais e do passado do indivíduo (explicação causal) mas também sua orientação no futuro (aspecto teleológico). A preocupação com o futuro torna-se preponderante, segundo suas experiências clínicas, na pessoa entre os 30 e os 40 anos de idade. Sua contribuição à tipologia, onde distinguiu o extrovertido e o introvertido, é capital. Livros de Jung a respeito de diversas mitologias e folclores acham-se traduzidos em quase todas as línguas do mundo.
Admiradora das teorias de Jung, Nise da Silveira foi, além de psiquiatra, a primeira psicanalista junguiana. Em Memórias do Cárcere, o escritor Graciliano Ramos traça-lhe o perfil, descrevendo como foi seu encontro inesquecível com a doutora Nise, quando ambos estavam na cadeia do Estado Novo:
"Chamaram-me da porta: uma das mulheres da sala 4 desejava falar comigo. Estranhei. Quem seria? E onde ficava a sala 4? Um sujeito conduziu-me ao fim da plataforma, subiu o corrimão e daí, com agilidade forte, galgou uma janela. Esteve alguns minutos conversando, gesticulando, pulou no chão e convidou-me a substituí-lo. Quê? Trepar-me àquelas alturas, com tamancos? Examinei a distância, receoso, descalcei-me, resolvi tentar a difícil acrobacia. A desconhecida amiga exigia de mim um sacrifício; a perna, estragada na operação, movia-se lenta e perra; se me desequilibrasse, iria esborrachar-me no pavimento inferior. Não houve desastre. Numa passada larga, atingi o vão da janela; agarrei-me aos varões de ferro, olhei o exterior, zonzo, sem perceber direito por que me achava ali. Uma voz chegou-me, fraca, mas no primeiro instante não atinei com a pessoa que falava. Enxerguei o pátio, o vestíbulo, a escada já vista no dia anterior. No patamar, abaixo de meu observatório, a Praça Vermelha. Junto, à direita, além de uma grade larga, distingui afinal uma senhora pálida e magra, de olhos fixos, arregalados. O rosto moço revelava fadiga, aos cabelos negros misturavam-se alguns fios grisalhos. Referiu-se a Maceió, apresentou-se:
– Nise da Silveira.
Noutro lugar o encontro me daria prazer. O que senti foi surpresa, lamentei ver a minha conterrânea fora do mundo, longe da profissão, do hospital, dos seus queridos loucos. Sabia-a culta e boa, Rachel de Queiroz me afirmara a grandeza moral daquela pessoinha tímida, sempre a esquivar-se, a reduzir-se, como a escusar-se de tomar espaço. Nunca me havia aparecido criatura mais simpática. O marido, também médico, era o meu velho conhecido Mário Magalhães. Pedi notícias dele: estava em liberdade. E calei-me, num vivo constrangimento.
De pijama, sem sapatos, seguro à verga preta, achei-me ridículo e vazio; certamente causava impressão muito infeliz. Nise, acanhada, tinha um sorriso doce, fitava-me os bugalhos enormes, e isto me agravava a perturbação, magnetizava-me. Balbuciou imprecisões, guardou silêncio, provavelmente se arrependeu de me haver convidado para deixar-me assim confuso."
Os "queridos loucos", como escrevera Graciliano, jamais foram assim denominados pela doutora Nise, que chamava os internos do hospital do Engenho de Dentro pelo nome: Adelina, Carlos, Emygdio, Fernando, Raphael. Isso aproximava os pacientes de Nise, introdutora de métodos considerados no mínimo pouco ortodoxos, para não dizer totalmente revolucionários. Ao que se saiba, ela foi a primeira psiquiatra no mundo a introduzir animais para conviverem com os internos de hospital psiquiátrico. Alguns destes, presos a um mutismo permanente, passaram a se comunicar com cães e gatos. Era já um grande passo em direção à cura. Muito criticada pela introdução de bichos, por ela considerados co-terapeutas, a doutora Nise dizia: "Eram guerras terríveis por causa disso, mas surtia efeito. Porque o bicho se afeiçoa muito às pessoas, e o doente precisa, antes de tudo, de muito amor".
Inteligência aguda
Conheci Nise em seu escritório, situado no último andar de um prédio de cinco andares da Rua Marquês de Abrantes, no bairro do Flamengo, Rio de Janeiro, onde toda quarta-feira reunia os interessados no Centro de Estudos C. G. Jung, em meados da década de 60. A reunião de estudos seguia das 20 até cerca de 22, 23 horas, mas em alguns dias especiais, de maior entusiasmo, podia alcançar a meia-noite. No andar de baixo, ela morava com o marido.
Ambos muito magros, formavam um casal harmonioso que se respeitava muito: ele alto e bem-humorado, ela miúda e grave, extremamente crítica, embora com fino senso de humor, revelado na hora certa. Calada, ouvia mais do que falava. Atenta, sempre alerta, jamais demonstrando cansaço físico, dirigia o grupo, criado por ela, aparteando só quando se fazia necessário. Mas esses apartes eram surpreendentes, simplesmente lapidares.
Já a tendo conhecido nas palestras e exposições do Museu de Imagens do Inconsciente, no Hospital Pedro II, no Engenho de Dentro, para as reuniões do Centro de Estudos Jung fui levada por Elizabeth Lins do Rego, minha amiga Betinha, filha de Naná e do escritor Zé Lins. Éramos uns 15 a 30 participantes, entre escritores, artistas, psicólogos, psiquiatras, gente das mais variadas profissões liberais, todos interessados em aprender com Nise.
A inteligência aguda, revolucionária, cheia de paixão e compaixão da doutora Nise, precursora da antipsiquiatria, criou a Seção de Terapêutica Ocupacional no Centro Psiquiátrico Nacional, no bairro do Engenho de Dentro, Zona Norte do Rio. As obras-primas ali nascidas – produzidas no ateliê livre que ela implantara para os internos, que chamava de "clientes", e que depois compuseram o Museu de Imagens do Inconsciente – mereceram elogios de críticos de arte, que as comparavam a obras de Matisse e outros mestres.
Com Nise colaboraram artistas de renome, como Domitila do Amaral (considerada na Europa a atriz ideal para interpretar García Lorca), Rubens Corrêa (dos nossos grandes atores dramáticos, falecido), o ator e diretor Fauzi Arap (seu eficiente colaborador na Casa das Palmeiras), o poeta Ferreira Gullar, o crítico de arte Mário Pedrosa, entre outros. O cineasta Leon Hirszman realizou um documentário sobre três dos "clientes" de Nise, três famosos casos revelados em pinturas e esculturas, compondo um dos mais poderosos acervos do mundo no gênero. Essa trilogia, reunida num só filme, expõe a beleza da criação regeneradora, comovente painel recolhido pela genialidade dessa brasileira, da qual o Brasil se orgulha. Porém, para Nise, não era a beleza o que importava, embora esta fosse o veículo a nos seduzir, mas o valor terapêutico dessas "expressões de vivências", como afirmava. Ela desejava o triunfo da terapia, da cura, da ciência que minora o sofrimento humano.
Na década de 60, eu já freqüentava há um ano o Centro de Estudos Jung, onde toda semana líamos textos de Jung, Freud e outros, sendo também apresentados trabalhos e resumos dos textos estudados. Eu meio que me escondia no meio do grupo, pensando que jamais iria ser chamada pela doutora Nise. Foi quando um belo dia ela se voltou e com seu olhar, entre terno e de raio laser, me intimou: "Você até agora só assistiu. Está na hora de apresentar um trabalho seu aqui". Gelei, desculpando-me por não ser capaz, por não ser nem psiquiatra, nem estudante de psicologia, nem nada, que eu era só uma escritora, tradutora e jornalista. Ela foi irredutível: "Dentro de 15 dias você me traz o resumo de 150 páginas da parte dos sonhos estudada por Jung em seu livro O Homem à Procura de sua Alma. Entrei em pânico. No dia seguinte, de puro nervoso, amanheci com a mão direita totalmente dura, sem movimento para escrever. Até hoje escrevo primeiro à mão para depois digitar na máquina. Pensei: ela vai ser condescendente, vai me liberar do compromisso. Que nada! Na quarta-feira seguinte, diante das minhas desculpas, pousou de novo o olhar de raio laser em mim, dizendo-me que agora eu só tinha uma semana para fazer o que ela me exigira, que eu tratasse de arranjar no grupo alguém a quem eu pudesse ditar, para ser escrito e depois batido à máquina manual. Desta vez vi que não adiantavam escusas e que ela não ia desistir de me desafiar.
Tomei-me de brios, trabalhei com uma colega jornalista, Isa Freaza, e mais Maria Barreto Leite, minha vizinha na Rua Sá Ferreira, e uma semana depois apresentei o resumo dos sonhos. Tremia, ficava de todas as cores, mas venci o terrível desafio. Aqueles 15 dias, aquela noite, fizeram-me crescer como que dez anos de vida, no mínimo. Nise me fizera sair da casca, dizendo-me: "O trabalho está bom. Doeu?" Sua fina ironia, aliada à aprovação do trabalho, me estimularam como champanhe. Uma alegria incontrolável me inundou e a partir daquele episódio senti sempre menos medo em tudo o que me aguardava viver. Ficou a frase, nas vitórias: "Doeu?"
No dia seguinte a mão desendureceu, desparalisando. Assim, doeu bem menos, foi até um prazer, quando, meses depois, Nise me desafiou de novo a um outro trabalho. Estudávamos mitologia grega e ela me fez escolher um tema. Apaixonada desde menina pelos livros de mitologia, perguntei se podia ser Prometeu. Ela acedeu. E em duas semanas – como da primeira vez, porém agora em trabalho solo, pisando o terreno firme da minha paixão, falei do meu herói predileto, o rebelde (sempre adorei rebeldes construtivos) que roubou o fogo dos deuses em benefício dos homens. Fora Jung quem assinalara à doutora Nise a importância da leitura de mitologias, verdadeiros manuais do comportamento humano, para entender os arquétipos. Nessa variedade de moldes apresenta-se o inconsciente como um oceano, no qual o consciente é apenas uma ilhota. E como dizia minha mãe de escolha, é nesse oceano onde pescamos de vez em quando umas imagens, representações de nossa alma.
Minha mãe biológica tirou-me de dentro dela. Já a doutora Nise tirou-me de dentro de mim. De mim para o mundo.
Olga Savary é escritora, tradutora e jornalista
Nise da Silveira, uma revolucionária da psiquiatria