Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Pátria amada, Brasil

Autor norte-americano descreve o papel do exército na história do país

HÉLIO OLIVEIRA

Frank D. McCann, norte-americano ligado ao Brasil por laços profissional e afetivo (ele tem duas netinhas brasileiras), escreveu Soldiers of the Pátria - A History of the Brazilian Army, 1889-1937, livro capaz de agradar diletantes e indispensável a estudiosos. Coube a Elio Gaspari chamar a atenção para a obra antes de sua publicação nos Estados Unidos, pela Stanford University Press, neste ano. É possível que a esta altura uma edição brasileira já esteja ao alcance do leitor ou às vésperas de sair. Em 593 páginas, que incluem notas e informação bibliográfica, McCann conta a história do exército com o distanciamento natural a um estrangeiro, e por isso mesmo contraria versões de acontecimentos importantes tal como figuram na historiografia pátria. Realça o papel da corporação na Abolição, na garantia da unidade territorial e no estímulo à industrialização. Também vai fundo na exposição e análise da persistente indisciplina, do compadrio e do baixo grau de profissionalismo. Merece igual destaque o difícil relacionamento do corpo de oficiais com a elite dirigente, a partir do Império, causa de muitos conflitos.

A semente da indisciplina começou a germinar em junho de 1887, com a fundação do Clube Militar, uma associação à margem da estrutura do exército e que serviria de tribuna para o debate livre. Desenvolveu-se com rapidez e, em outubro, um grupo de oficiais pediria à princesa regente, em nome da "humanidade e da honra", que desobrigasse o exército da desagradável missão de caçar escravos fugitivos, um claro rompimento com a oligarquia. O imperador e seus conselheiros não perceberam os inevitáveis desdobramentos da contestação à ordem econômica vigente. O segundo e decisivo passo foi dado por Deodoro da Fonseca, então monarquista leal ao imperador, ao cobrar de dom Pedro II a limpeza da ficha dos oficiais punidos por manifestações políticas, em desobediência aos regulamentos, mas perdoados pelo Conselho Supremo de Justiça Militar. Ao escrever que "o soldado é obediente mas não servil", julgou-se no direito de avaliar o mérito das ordens recebidas para acatá-las ou rejeitá-las, criando uma espécie de jurisprudência, que seria aplicada no golpe de 15 de novembro e embasaria futuras rebeliões.

A República ampliou o poder e o prestígio dos militares, mas pouco mudou a feição do exército. O efetivo continuou baixo (13,5 mil homens), mal armado, sem treinamento adequado, inferior ao do exército argentino, então encarado como inimigo potencial. Os chefes militares, cônscios das limitações da corporação, resultantes do atraso econômico e cultural do país, ansiavam por mudanças. Colocavam em primeiro lugar o aumento da tropa, mediante serviço militar obrigatório, medida muito contestada. Os dois lados sabiam que sem um exército forte o governo central não poderia se sobrepor às oligarquias estaduais. A elite não queria seus filhos como soldados, condição antes relegada aos pobres e escravos, e tampouco os enviava para as escolas militares, caminho natural e indispensável para chegar ao núcleo dirigente do exército. No Império, as vagas eram reservadas aos jovens oriundos da nobreza ou de famílias de militares, mas nem isso seduziu os poderosos. Assim, as portas das academias militares foram abertas para os filhos da classe média em busca de oportunidade de ascensão social.

A maioria dos líderes tenentistas, caso de Góes Monteiro, Siqueira Campos, Luís Carlos Prestes, João Alberto Lins de Barros, os irmãos Távora, eram oriundos de famílias de parcos recursos. As oligarquias contentavam-se em assegurar o controle das polícias militares e delas se servirem para defender seus interesses, contra o próprio exército, se necessário. A Força Pública de São Paulo, segundo o autor, era um pequeno exército em 1925, com sete batalhões de infantaria, dois regimentos de cavalaria, um batalhão de bombeiros e um esquadrão aéreo. As polícias militares de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Bahia, embora inferiores à paulista, possuíam efetivos respeitáveis. O pequeno exército paulista tinha uma vantagem nada desprezível sobre a tropa federal: mais bem equipado, seus soldados não andavam descalços nem eram arrebanhados nas ruas à força, entre vagabundos, como os "voluntários" do exército enviados a Canudos e outras campanhas. Além disso, era mais bem treinado, instruído pela Missão Militar Francesa, como aconteceria mais tarde com o exército. O autor não diz, mas é possível que os integrantes da Força Pública paulista também recebessem seus soldos em dia, coisa rara na época entre os militares, até em situações de conflito sangrento, como no caso do Contestado.

Até a 2ª Guerra Mundial, o exército republicano recebeu influência preponderante da França, embora o corpo de oficiais contasse com muitos adeptos da doutrina e técnicas de guerra alemãs, além de considerar o material bélico germânico superior ao francês. O melhor da herança francesa foi a criação das Escolas de Aperfeiçoamento de Oficiais (Esao) e de Comando e Estado Maior, destinadas a promover instrução continuada e balizar critérios de promoção, ao lado do desempenho profissional. Involuntariamente, a missão francesa contribuiu para fomentar a indisciplina, na medida em que "os jovens oficiais, instruídos segundo padrões europeus, sentiram-se mais preparados que seus superiores, formados na experiência militar brasileira".

Os norte-americanos despertaram simpatias desde o início, por mais de um motivo: os Estados Unidos, sob a presidência de Benjamin Harrison, foram os primeiros a reconhecer a República, e outro presidente norte-americano, Grover Cleveland, apoiou o governo republicano durante a rebelião da marinha, recusando-se a reconhecer um estado de beligerância, ao contrário da Inglaterra (em sinal de agradecimento, o jacobino Floriano Peixoto deu o nome de Clevelândia a três cidades brasileiras). Além disso, havia interesse em seu material bélico, principalmente canhões para a defesa da costa, e posteriormente aviões. O governo queria estimular importações dos EUA, os mais importantes compradores de nosso café, mas no início havia muitos obstáculos ao comércio bilateral. A compensação era feita na City, pois inexistiam filiais de bancos norte-americanos no Brasil e até as comunicações postais telegráficas passavam por Londres. Sem crédito a prazos vantajosos, as máquinas e os equipamentos dos Estados Unidos perdiam na competição com similares ingleses. Em 1917, os norte-americanos receberam de braços abertos uma missão de sete oficiais enviada para comprar "as últimas novidades em maquinaria" para fábricas e oficinas do exército.

Apesar disso, antes da 1ª Guerra Mundial os militares brasileiros já associavam segurança nacional à capacidade de produzir as próprias armas, isto é, ao desenvolvimento industrial. Queriam seguir o exemplo de Japão, Itália, Bélgica, países pobres em recursos minerais e que produziam e exportavam máquinas, equipamentos, canhões, etc., enquanto o Brasil, rico em ferro, não tinha indústria siderúrgica. Houve tentativas de mudança, especialmente após a experiência de 1932, quando o estado de São Paulo, isolado, produziu mais armas que os arsenais do exército e conseguiu manter seu poder de fogo.

A situação mudou pouco, como observa McCann, uma vez que às vésperas da 2ª Guerra Mundial o exército continuava preocupado com criação de cavalos e mulas, e a madeira ocupava o primeiro lugar como fonte de energia do país. A corporação também se atrasou no emprego da aviação. Acordou para sua necessidade por instigação de um tenente, Ricardo Kirk. O jovem oficial estudara na França à sua custa e voltara ao Brasil "com suas próprias asas", na expectativa de dirigir a escola de formação de pilotos que seria criada. Na hora da escolha do diretor, o brasileiro foi preterido, talvez por causa de sua juventude e posição irrelevante na hierarquia. Optaram por contratar um italiano, Ernesto Darioli. O tenente morreu no Contestado, em missão de reconhecimento de posições inimigas, na queda de seu avião durante tentativa de pouso forçado devido ao mau tempo. O italiano foi mandado de volta, e as atividades da escola ficaram para mais tarde.

Decidido a não mais recorrer a estrangeiros, o exército enviou seus oficiais para estudarem nos aeroclubes civis e na marinha, já equipada com hidroaviões. O atraso foi superado com a criação do Correio Aéreo Nacional, serviço que permitia aprimorar pilotos e ao mesmo tempo ligar o Rio de Janeiro aos mais distantes rincões.

Se a indisciplina no exército provocou rebeliões em série, os militares em confronto evitaram choques armados. Diferentemente do que ocorreu em Canudos e no Contestado, o exército jamais se empenhou na repressão à Coluna Prestes. E em 1930, a rigor, não houve luta entre revolucionários e legalistas. "Góes e os militares revolucionários não tinham interesse na destruição física do exército. Lutavam pelo seu controle." Por isso Itararé, onde era esperado o choque decisivo que não houve, entrou para o anedotário nacional. Em 1932 houve pesadas baixas civis e só um líder militar revolucionário morreu, Joaquim Távora, irmão de Juarez. Prevaleceu o companheirismo.

O coronel Euclides Figueiredo, por exemplo, interpelado pelo ministro da Guerra, general Espírito Santo Cardoso, seu amigo, confessou-lhe francamente que tinha "compromisso de honra" com os paulistas. Por "fidalguia" e "amizade" o general não cumpriu seu dever de mandá-lo para a prisão.

O movimento de 1932 é outro acontecimento que não escapa à visão crítica de McCann: na verdade, teria sido uma reação à tentativa de tenentes radicais - caso do interventor João Alberto, nomeado por Getúlio Vargas - de mudar o status quo em São Paulo. A convocação de uma Assembléia Constituinte servia de invólucro, dourava a pílula. O Partido Democrático aderira à Aliança Liberal e pretendia assumir o controle do estado. Mas a Revolução de 30 tivera outros aliados em São Paulo, os trabalhadores, então sujeitos a feroz repressão e que celebraram o movimento incendiando a "Bastilha do Cambuci", prisão onde muitos deles tinham sido torturados e outros mortos. João Alberto entregou postos-chaves da administração a notáveis do Partido Democrático, mas procurou atender igualmente ao outro aliado, os trabalhadores. Pressionava os industriais a negociar salários e jornada de trabalho com os empregados. Foi além: por decreto seu, o Banco do Estado forçou a divisão de algumas fazendas. A resposta veio na forma de fechamento de fábricas, violências, pedido de afastamento de João Alberto, união entre democráticos e rivais do Partido Republicano Paulista e culminou com a insurreição armada.

McCann também contraria muitas das versões sobre o Estado Novo. Onde a maioria dos historiadores vê deliberadas ações contraditórias de Getúlio Vargas para provocar confusão, ele aponta "indecisão e cautela" já observadas em 1930. Para o autor, o golpe foi uma obra coletiva, em sua maior parte imaginada e elaborada nos quartéis, com apoio de políticos civis, inclusive Oswaldo Aranha, embaixador nos Estados Unidos e admirador da democracia americana. Em carta a Góes Monteiro, Aranha afirmou: "Confesso que um regime de força me parece útil para nós... É uma necessidade interna e externa a organização militar do Brasil. O mundo está em ebulição e nosso continente cada vez mais nervoso".

Tal panorama levava Aranha e os militares a considerarem prioritário armar o país e fortalecer o governo. Luís Carlos Prestes recusara juntar-se aos tenentes na Aliança Liberal em 1930, mas ao chefiar uma quartelada em 1935 dramatizou a hipotética ameaça comunista, pretexto invocado dois anos depois, com o Plano Cohen, para o golpe de Estado.

O plano estava na linha de outras falsidades que justificaram drásticas intervenções militares. Em 1889, a pretensa intenção do governo imperial de "dissolver o exército e prender Deodoro e Benjamin Constant". Em 1922, a carta forjada na qual o presidente Artur Bernardes teria insultado o exército. Em 1937 o Plano Cohen, apresentado como prova de conspiração comunista para assalto ao poder, não passava de um exercício teórico elaborado pelo oficial Olímpio Mourão Filho para treinamento da milícia integralista. O documento chegou às mãos de Góes Monteiro, foi entregue aos comandos militares, aceito como verídico e utilizado para justificar ao Congresso pedido de restabelecimento do estado de guerra. O regime de exceção que aboliria garantias constitucionais e deveria ser temporário só terminou em 1945. McCann faz uma pergunta para a qual não encontra resposta: teria Góes dito a Vargas ou a Eurico Gaspar Dutra, então ministro da Guerra, que o plano era falso?

 

Comentários

Assinaturas