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O retratista do Brasil
Candido Portinari, um dos grandes artistas do século 20
JACOB KLINTOWITZ
Detalhe de "Café", de 1935 / Foto: reprodução
Centenas de artistas brasileiros têm exposto no exterior, e todos, dos melhores aos piores, mereceram mostrar seu trabalho. Eles sempre merecem a oportunidade de apresentar a sua produção e dialogar com o público. Mas por que não Candido Portinari? A resposta é elementar, como diria Mr. Holmes. Esgotadas e descartadas todas as hipóteses, a que sobra é a razão. Candido Portinari não foi exposto desde 1963 em nenhum lugar do exterior (museus, institutos de arte, centros culturais, embaixadas e consulados brasileiros) justamente por ser Candido Portinari.
E, agora, já que adotamos a lógica dedutiva, tão prezada até a primeira metade do século passado, devemos nos perguntar quem é exatamente o pintor Candido Portinari, o que ele fez e o que está acontecendo com sua obra neste exato momento. Mas não nessa ordem de prioridade. Mesmo Descartes não resiste ao fazer jornalístico que coloca a notícia em primeiro lugar.
Nos últimos meses a obra desse pintor parece onipresente. Uma belíssima exposição, Visões de uma Infância Brasileira (5 a 31 de maio de 2004), na embaixada brasileira em Londres, marcou o retorno de Portinari à Europa. O catálogo da mostra optou por visões críticas históricas, acentuando o fato de o artista ser reverenciado por importantes críticos, poetas e intelectuais de sua época: Jorge Amado, Giuseppe E. Luraghi (crítico e poeta italiano), René Huyghe (curador-chefe do Museu do Louvre), José Cardoso Pires (escritor português), Germain Bazin (conservador-chefe do Museu do Louvre), Jean Cassou (historiador de arte, diretor do Museu de Arte Moderna de Paris), Raymond Cogniat (crítico de arte francês), Enrique Fernández G. (crítico de arte mexicano), Carlos Drummond de Andrade.
A Fundação Proa, em Buenos Aires, de intensa atividade cultural e editorial, realizou uma grande mostra de Candido Portinari, com 50 obras -pinturas, gravuras e desenhos -, de 20 de julho a 7 de setembro deste ano. Esse evento, organizado em conjunto pela Fundação Proa, Projeto Portinari e Fundação Centro de Estudos Brasileiros na Argentina (Funceb), faz parte das comemorações do centenário de Candido Portinari e, depois de 57 anos, assinalou o retorno do artista à Argentina, onde o pintor morou em 1947, auto-exilado devido à perseguição política no Brasil. A exposição, que ocupou cinco salas, em dois andares, contou com algumas obras marcantes do artista, tais como Criança Morta, Retirantes (1944), Colheita de Café (1958), e gravuras dos painéis Guerra e Paz, feitos para a ONU em 1957.
Nos dias 6, 7 e 8 de setembro, no Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires (Malba), a grande novidade museológica dos últimos anos, foi realizado o seminário O Sentido Social da Arte, com especialistas brasileiros, argentinos e uruguaios. O título é uma referência-homenagem, pois também foi o nome de uma conferência de Portinari, em 1947. O seminário foi inaugurado com a palestra "Portinari, Retrato do Brasil", proferida por mim. No mesmo dia, falaram o pintor Israel Pedrosa, aluno de Portinari, e João Candido Portinari, filho do pintor e diretor do Projeto Portinari.
Certamente um seminário latino dessa grandeza, que mobilizou três países e dezenas de especialistas, é a demonstração de como a obra de Portinari possui um valor universal, o que reafirma que as questões fundamentais que preocupavam o pintor brasileiro continuam a ser objeto de interesse da América do Sul.
Temas recorrentes
Na verdade, entre nós, discutem-se sempre a natureza da arte, as questões sociais e, principalmente, nossa identidade. É possível imaginar um holandês, por exemplo, preocupado com sua identidade? Essas são dúvidas e afirmações nossas, dos que vivem no Novo Mundo, convivem com a herança colonizadora e são feitos de uma rica argamassa constituída por muitos povos. E o próprio conceito essencial, o de que pertencemos à civilização ocidental, sofre restrições.
Em Londres, o público pôde conviver com uma amostragem diversificada da obra de Portinari, que incluiu, por exemplo, a série Maria Rosa, uma seleção de nove de um total de 22 desenhos feitos pelo artista para ilustrar um livro da escritora norte-americana Vera Kelsey, cuja primeira edição foi de 1942.
A pintura Boba teve um significado especialmente histórico nessa exposição. A obra fez parte da Exhibition of Modern Brazilian Paintings, organizada por artistas brasileiros em Londres, na Royal Academy of Arts, em 1944, em benefício do fundo para o esforço de guerra da Royal Air Force (RAF). A mostra contou com 168 trabalhos, entre pinturas, desenhos e gravuras, de 70 artistas, que doaram, como um gesto de solidariedade internacional, toda a receita da venda de suas obras para a RAF.
Na paisagem enluarada de Boba, os ocres iluminados definem o universo composto de colinas, espantalho, baú e menina de vestido branco e olhos grandes e inquiridores. Aí estão alguns assuntos recorrentes do artista: a infância e a sua lírica disponibilidade; o baú com pequenos pertences, talvez água-de-cheiro, espelho, pente, e a imagem da Virgem Maria; e o espantalho, guardião dramático da semeadura e da vida humana. E nessa pintura ricamente ocupada por uma menina de branco, a luz emerge da sábia combinação, unifica todos os elementos e se torna a grande personagem oculta.
Causou impacto, em Londres, uma seleção de cinco gravuras que integram uma série de 35 realizadas sob encomenda de Raymundo Ottoni de Castro Maia para ilustrar o livro Menino de Engenho, de José Lins do Rego, da coleção Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil.
Nessas gravuras, as crianças fazem parte do ambiente, do canavial à poltrona de fibra natural. Elas não estão no lugar, mas são o próprio ambiente. A naturalidade da sua presença, essa absoluta integração, oferece uma renovada percepção humanista da aspereza da vida no nordeste brasileiro. O tropismo humano para a felicidade é simbolizado pelos meninos.
Certamente a série Meninos de Brodowski despertou um interesse especial, por ser muito conhecida e por registrar as memórias do artista, nascido nessa cidade. A extraordinária solenidade dos meninos nos afasta de imediato da idéia preconcebida de que Candido Portinari, piedoso, pinta a infância desamparada. Fosse uma pintura sentimental, nesse sentido, ela seria nobre e louvada por sua solidariedade, mas isso não bastaria. O que temos aqui, nestas pinturas de crianças do interior paulista, é um duplo movimento do mesmo vetor. O primeiro é a qualidade artística que torna a figura emblemática e nos lembra autores inesperados, especialmente um tão diferente como Velázquez. Em ambos encontramos essa capacidade de tornar a figura infantil em paradigma. Imóvel, severa, concentrada em si mesma, um modelo de existência real e, ao mesmo tempo, por sua inteireza, eterna. O segundo movimento desse vetor é a inquietação do contemplador diante da intensidade da vida, a pergunta sobre a natureza da infância e da própria existência. Meninos de Brodowski, com a sua recusa à demagogia e a opção pela identidade do ser, constrói um dos mais altos momentos da arte brasileira.
Obra monumental
Candido Portinari (1903, Brodowski, SP-1962, Rio de Janeiro, RJ), o mais conhecido pintor da história do país, tornou-se, para o público, sinônimo de arte. Essa identificação de um artista com a própria essência de sua atividade é o maior reconhecimento público imaginável.
Portinari é o maior muralista da nossa história, e sua obra está abrigada em prédios significativos, como o Ministério da Educação, no Rio de Janeiro, marco fundamental da nossa arquitetura modernista; a Igreja da Pampulha, em Belo Horizonte; a Biblioteca do Congresso, em Washington D.C.; a sede da ONU, em Nova York. Além disso, sua obra enfrentou os assuntos mais significativos do país, da infância à vida rural, das mazelas sociais manifestadas nos retirantes nordestinos à saga histórica da formação da nacionalidade. Em cada um desses, a contribuição do artista tornou-se referência obrigatória.
Desde o fim da década de 30 que se afirma definitivamente como grande artista por meio de representações e interpretações da realidade social brasileira, como na série Os Retirantes. Em 1936 iniciou os afrescos e painéis de azulejos no prédio do Ministério da Educação. Em 1957, por ocasião da inauguração dos painéis Guerra e Paz, na ONU, recebe os prêmios Guggenheim e Hallmark Art. Entre as exposições de que participa destacam-se o Salão Nacional de Belas-Artes, no Rio de Janeiro, em 1922 e 31; a individual no Museu de Arte Moderna de Nova York, em 1940; a Bienal de Veneza, em 1950 e 54; a Bienal Internacional de São Paulo, em várias edições, de 1951 a 85; no Museu Guggenheim, em Nova York, em 1957; a Galeria Wildenstein, em Nova York, em 1959.
Em 1941, já um artista conhecido no mundo inteiro, Candido Portinari transformou um quarto da casa paterna em verdadeira igreja, um local de reza e meditação. Pintou São João Batista, São Pedro, uma Visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel. A sua avó paterna, idosa e entrevada, chorava por não poder assistir à missa com a assiduidade habitual. Pois bem, Candinho, como ela o chamava, a consolou: "Nonna, não chore, que eu pinto uma capelinha pra você". A Capelinha da Nonna (avó em italiano), como ficou conhecida, é um testemunho único de qualidade pictórica, sentimento sacro e amor familiar. O seu pai, em depoimento a Alceu de Amoroso Lima, disse: "Eu não sei se Candinho é bom pintor, que eu não entendo disso. Agora, o que eu sei é que ele é um bom filho". O artista, marxista e filiado ao Partido Comunista, foi o maior pintor de temas sacros do nosso país.
Metáfora religiosa
Além da qualidade pictórica, o vigor que sua pintura sacra manifesta está na nobreza do sentimento imanente. O conceito de generosidade e de amor ao próximo que o artista possuía era esse, o de um ser desprovido de ambições pessoais e desejo de poder sobre os outros homens. Observe-se uma das imagens mais conhecidas, um São Francisco de Assis. Ele é de uma leveza e simplicidade incríveis. É o homem santo porque amoroso com a natureza, irmão dos seres viventes, desprovido de interesses ocultos. É esse homem vitorioso contra os apegos, sem posses, cuja característica é o amor ilimitado, o personagem do pintor. O homem que não deseja poder sobre a natureza e os outros homens. O pássaro, presença constante na representação de São Francisco, forma o corpo da pintura, o seu movimento e cromatismo.
O espantalho, um símbolo visual da lavoura, nas mãos de Portinari se transforma em pinturas de grande força expressiva que figuram entre as mais características paisagens campestres da nossa arte. Entretanto, o mais surpreendente é que em Portinari esse assunto, recorrente em sua obra, ganha conotações transcendentais e se torna uma das mais poderosas metáforas religiosas da nossa arte. O espantalho de Candido Portinari costuma ser carregado de dramaticidade, denso e impregnado de humanidade, idealizado ao limite do homem elevado à condição divina, símbolo do homem sacrificado por seu amor ao próximo. Esses espantalhos, na postura de Cristo na cruz, tornam-se verdadeiros símbolos nacionais e se constituem de inúmeras facetas, como é próprio do simbólico: pastoral, semeadura, homem sacrificado, se sacrificando, Deus doador, morte e amor. Num poema de 1961, escrito em Paris, Portinari invoca e define a figura do espantalho como um deus amoroso e acolhedor:
"Espantalho espantava as angústias, a maldição e o silêncio..."
As pequenas histórias do país também estão para sempre registradas com extrema ternura ou dramaticidade. Lá estão os jogos de futebol no chão de terra vermelha do interior paulista, o circo mambembe, a morte nordestina e o enterro na rede, a migrante família de retirantes, os índios carajás, os lavradores, os estivadores, a festa de São João, os espantalhos, os bichos da floresta amazônica, os cangaceiros, a conversa amiga das mulheres, o bumba-meu-boi. As principais cenas da história oficial brasileira também estão configuradas em sinfônica concepção: Tiradentes, a Primeira Missa no Brasil, o Descobrimento do Brasil, a Chegada da Família Portuguesa à Bahia. E, numa aceitação do misticismo do nosso povo, um inacreditável conjunto de obras de temas religiosos: a Santa Ceia, São Francisco, Santo Antônio, São João da Cruz, Nossa Senhora do Carmo, Jesus, Lázaro, Jeremias, a Via-Crúcis. Esse retrato do Brasil, o mais completo já realizado por um artista, está na obra oceânica do pintor Candido Portinari. Os mais importantes países do mundo gostariam de ter um artista como esse, que tivesse fixado a sua alma. "Nenhum outro pintor pintou mais um país do que Portinari pintou o seu", disse o pintor e teórico Israel Pedrosa, em depoimento ao Projeto Portinari em 2003.
É importante mostrar o trabalho de Candido Portinari simplesmente porque ele é o marco afirmativo do nosso modernismo, um dos maiores artistas brasileiros de todas as épocas, símbolo artístico nacional, autor de uma obra monumental com poucas equivalências mundiais e, em nosso país, de uma odisséia sobre nossa vida e nossa gente. Além disso, a qualidade estética de Portinari, a grandeza de seus temas, a originalidade da interpretação e a ousadia de escolhas de assuntos, mesmo com dificuldades infinitas de realização, o caracterizam como um dos grandes artistas do século 20. É um bom conjunto de motivos. E que outros exemplos poderíamos comparar com o poder e a grandiosidade da obra de Candido Portinari?