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Órgãos do governo tentam preservar livre concorrência

OSWALDO RIBAS


Ilustração: Henrique Pita

Impedir o abuso do poder econômico e zelar pelos direitos dos consumidores e da economia popular: é essa a missão do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), formado por três instituições que, junto com as agências reguladoras e amparadas nas leis de proteção do livre mercado no país, atuam para evitar a ação predatória de empresas que venham a tirar proveito de sua superioridade econômica para aumentar arbitrariamente os preços, prejudicar a competição ou inibir o bom funcionamento do mercado.

Para ser acionado, o SBDC parte de uma denúncia documentada de prática abusiva de alguma empresa, como, por exemplo, a tentativa de subordinar a venda de um produto ou serviço à aquisição de outro (conduta irregular conhecida como venda casada). Nesse caso, a Secretaria de Direito Econômico (SDE), ligada ao Ministério da Justiça, inicia as investigações, que, se necessitarem de complementação técnica quanto a implicações econômicas mais profundas, contarão com a participação da Secretaria de Acompanhamento Econômico (Seae), vinculada ao Ministério da Fazenda. Encerrada a fase investigativa, com base nas apurações da SDE e da Seae, entra finalmente em cena o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), a peça principal do sistema, que detém o poder de julgar a ocorrência e, portanto, decidir se a prática comercial é abusiva ou não.

É o Cade que toma as medidas necessárias para punir os infratores do mercado. Após julgar o caso, emite as sentenças para sanear as irregularidades. Em geral, de acordo com a legislação em vigor, a empresa punida terá de pagar uma compensação à União equivalente a até 30% do faturamento bruto, que poderá dobrar em caso de reincidência, além de multas para os administradores. Mas, na opinião de analistas, o mais importante em todo o processo de defesa da concorrência não é a aplicação de multas, mas a sinalização para os agentes do mercado de que não haverá impunidade para aqueles que infringirem a lei e tentarem prejudicar a economia popular.

"Em tese, qualquer cidadão brasileiro, pessoa física ou jurídica, que se sentir lesado ou perceber que determinada empresa esteja procurando monopolizar o mercado ou, ainda, que um grupo de empresas tenha realizado um pacto formal para sustentar preços artificiais de determinado produto ou serviço pode entrar com uma solicitação de averiguação pela SDE", diz Ruy Coutinho, que desempenhou cargos de chefia em todos os órgãos do SBDC e atualmente é advogado do Departamento de Relações com o Governo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), em Brasília, e reconhecidamente uma das maiores autoridades brasileiras em legislação da concorrência. "A missão do SBDC é exatamente esta", diz ele, "democratizar a participação da sociedade no sistema de vigilância e controle da livre concorrência no país."

Para Coutinho, o Brasil depende da participação de todos e da transparência das leis, bem como dos órgãos que as executam, para alcançar o status de nação com uma economia genuinamente livre. Por enquanto, afirma, "o país ainda está consolidando seu aparato jurídico no que diz respeito à defesa da concorrência, já que temos uma história relativamente curta de livre mercado".

Situações de monopólio

Para se ter uma idéia da importância do sistema de defesa da concorrência no Brasil, que segue modelos consagrados de legislação antitruste dos Estados Unidos e da Europa, basta imaginar um caso hipotético - mas possível - em que um único grupo estivesse em vias de dominar, por exemplo, as redes de supermercados em todo o país. Numa situação assim, chamada tecnicamente de ato de concentração, o Cade teria meios legais para impedir que, por meio de fusões, aquisições, incorporações ou joint ventures, esse grupo assumisse uma posição monopolista do mercado e, dessa forma, tivesse condições de impor seus preços e produtos aos consumidores e fornecedores.

O mesmo se aplicaria, por exemplo, no âmbito da indústria automobilística, se, por meio de atos de concentração, houvesse a possibilidade de que esta ficasse nas mãos de apenas dois grandes fabricantes, os quais seriam tentados a dividir o mercado num "Tratado de Tordesilhas", visando apenas aos benefícios corporativos. Ou, ainda, caso essa mesma indústria viesse a depender de um único fornecedor de amortecedores, por exemplo. Em todos esses cenários, ficam bem evidentes as situações de monopólio ou de domínio, vertical e horizontal, em que deixam de existir, virtualmente, as empresas concorrentes e, sem elas, sucumbe automaticamente o equilíbrio da economia de mercado.

"A legislação antitruste, no Brasil, tem por meta evitar as concentrações predatórias e defender a concorrência dentro dos limites do Estado regulador moderno", afirma Francisco Todorov, advogado da Trench, Rossi e Watanabe Advogados, firma de advocacia paulista especializada em direito de concorrência no Brasil. Para explicar melhor os efeitos da concentração na economia de mercado, Todorov projeta os malefícios para toda a sociedade num cenário em que há monopólio e no qual a tendência é o fabricante tentar produzir o mínimo possível e, ao mesmo tempo, procurar vender seu produto ou serviço a preços crescentemente maiores. "Como não há concorrente, o fabricante não sente a ameaça de outro produtor, e o consumidor, sem opções, acaba refém da oferta", diz Todorov, acrescentando que assim perdem todos.

Na situação inversa, em que a concorrência é a regra e existem várias empresas disputando um determinado nicho do mercado, o que se observa, historicamente, é a queda do preço e o aumento da qualidade dos produtos e dos serviços: "O consumidor pode comprar o máximo gastando o mínimo", descreve Todorov.

Para o especialista, é exatamente aqui que reside a grande importância do Cade, em particular, e do SBDC, em geral: ao preservar a concorrência, esses órgãos acabam, de fato, por fortalecer a economia de mercado no Brasil, as instituições, as regras de investimentos, tornando o ambiente econômico estável e previsível, propício à atração de capital externo e interno.

Trabalho efetivo

No mundo real já é extensa a lista de intervenções do Cade destinadas a evitar a formação de cartéis, oligopólios ou monopólios e as infrações de conduta (ver texto abaixo), como a venda casada, a prática de preços predatórios ou dos sistemas seletivos de distribuição. Um dos casos mais rumorosos em 2004 foi o veto à proposta da empresa alimentícia Nestlé de comprar o fabricante capixaba de chocolates Garoto.

A oferta, que mexeu com o mercado de chocolates brasileiro, tornou-se emblemática da posição de independência com a qual a entidade vem procurando preservar a livre concorrência no país. Depois de analisar a proposta de aquisição por cerca de dois anos, o Cade considerou que em alguns setores a nova empresa exerceria uma inaceitável concentração e exigiu que, para levar adiante a compra, a Nestlé se propusesse a realizar alguns desinvestimentos, ou seja, vender algumas de suas marcas a empresas concorrentes e, assim, reduzir para níveis aceitáveis sua participação no mercado.

Em outra operação exemplar, o Cade condenou a Microsoft, empresa líder do mercado de software, junto com sua distribuidora TBA, por "limitar, falsear e prejudicar" a concorrência tanto na venda de produtos como no suporte técnico a órgãos do governo brasileiro. Pela decisão, as duas empresas foram obrigadas a pagar multas de até 10% de seu faturamento bruto. A entidade também foi chamada a atuar contra siderúrgicas nacionais, o que resultou em multas para a Usiminas, CSN e Cosipa, no valor total de R$ 51 milhões, sob a alegação de que essas empresas estavam fixando artificialmente os preços.

Outro processo administrativo de grande repercussão envolveu as companhias aéreas Varig, TAM, Vasp e Transbrasil, que foram consideradas culpadas de formação de cartel na ponte aérea Rio-São Paulo. Nas investigações realizadas pela SDE, teria ficado claro que essas empresas se envolveram na formação de um cartel para prejudicar os consumidores por meio da elevação artificial das tarifas, cujo valor chegava a coincidir até nos centavos.

Polêmica, a decisão contra as companhias aéreas suscitou críticas, como a do professor Gesner Oliveira, autor do livro Direito e Economia da Concorrência e especialista do setor da Tendências Consultoria. Nesse caso específico, Oliveira pondera que o remédio do Cade pode ser amargo demais e vir a matar o paciente. "No transporte aéreo, as economias de escala e os custos de capital são muito elevados; tentar fabricar um sistema puramente concorrencial em um mercado relativamente pequeno como o brasileiro pode terminar por quebrar as empresas e desestruturar o serviço", diz ele.

Processo lento

Embora o Cade exista há mais de quatro décadas e a legislação brasileira antitruste date dos anos 1930, foi somente em 1994, sob o signo da abertura do mercado à competição global, que a entidade, como peça fundamental do SBDC, assumiu a função de "xerife" da concorrência no país.

"Até então", lembra Gesner Oliveira, "o Brasil não precisava de um sistema legal que defendesse a concorrência, porque se vivia o ciclo em que o Estado dominava setores-chave da economia, e a política da época era de intervencionismo econômico e preços administrados." Só depois do advento do Plano Real é que, já no primeiro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso, criou-se a lei que daria a força jurídica necessária para o Cade poder determinar, com o apoio da SDE e da Seae, o comportamento que seria bom ou não para a economia de mercado. Para o especialista, esse arcabouço jurídico foi essencial para fazer deslanchar todo o processo de desestatização, em que a iniciativa privada, nacional e internacional, começou a ser chamada para ocupar espaços econômicos antes sob controle absoluto do Estado, como no setor de telecomunicações.

Desde então, o Cade vem recebendo anualmente cerca de 800 casos de denúncia de concentração de poder econômico ou conduta empresarial inadequada, e a quase totalidade das queixas são encaminhadas por companhias que se sentem prejudicadas por outras. Desse total, conforme relata Elizabeth Farina, a atual presidente do Cade, o órgão consegue julgar cerca de 80%. Os 20% restantes acabam somando-se a novos casos, provocando críticas em relação à lentidão dos processos.

Para o empresariado, essa morosidade algumas vezes pode até levar à desistência de negócios. "Estamos trabalhando a toda a capacidade, mas determinados processos são excessivamente complexos e, de fato, demandam mais tempo para se chegar a uma conclusão; além disso, há falta de recursos humanos e materiais", explica Farina.

Quando ela assumiu o cargo, já anunciava um amplo projeto de alteração no funcionamento dos órgãos de defesa da concorrência, cuja meta é mudar definitivamente o trabalho desenvolvido pelo governo na área. A idéia é agilizar a tomada de decisões, e para isso Farina está propondo reduzir em 40% o número de atos de concentração submetidos à avaliação do Cade.

"Apenas fusões e aquisições em que uma das empresas participantes detiver 20% ou mais do mercado ou tenha obtido faturamento igual ou superior a R$ 400 milhões anuais no Brasil serão submetidas ao Cade. Os demais casos não precisarão chegar ao órgão, e os atos de concentração terão uma tramitação mais simples nas investigações da SDE e da Seae", informa ela. Nos processos mais polêmicos, que envolvam nomes próximos do consumidor, como marcas de produtos comumente encontrados nos supermercados, a maneira de fazer a opinião pública entender os motivos que levaram a entidade a tomar esta ou aquela decisão, impedindo determinada fusão ou aquisição, é tornar transparentes os motivos em que se baseou.


Casos de abuso

O Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) estimula pessoas físicas ou jurídicas que se sentirem lesadas a denunciar as empresas infratoras. Estas são as práticas que recebem punição:

Formação de cartel - ocorre quando empresas cooperam entre si, combinando preços, restringindo a variedade de produtos e dividindo o mercado para manter as receitas estáveis. A infração se configura quando há um efetivo acordo entre os agentes envolvidos. Preços semelhantes não significam necessariamente prática de cartel.

Venda casada - a empresa subordina a venda de um bem ou serviço à aquisição de outro. Esta prática cria barreiras à entrada de concorrentes no mercado e restringe a liberdade do consumidor.

Sistemas seletivos de distribuição - são restrições impostas, injustificadamente, pelo fabricante ou distribuidor para discriminar vendedores e consumidores, impedindo seu acesso a determinada mercadoria.

Preços predatórios - estratégia de baixar propositadamente os preços dos produtos a valores inferiores ao custo de produção.

 

 

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