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Os riscos necessários

Como conseguimos ser tão pobres?

OZIRES SILVA


Ozires Silva / Foto: Gabriel Cabral

O empresário Ozires Silva, ex-ministro da Infra-Estrutura, esteve presente no dia 17 de junho de 2004 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, onde proferiu uma palestra com o tema "Estamos preparados para o crescimento?"
Publicamos abaixo a íntegra da palestra. O debate que se seguiu pode ser lido na edição impressa da revista.

O desenvolvimento econômico está levantando um clamor nacional. Não é possível entender por que nosso país, fascinante sob todos os aspectos, não cresce há 25 anos. Não há a menor dúvida de que o Brasil é viável. Tem dimensões continentais, um povo extraordinário, recursos naturais, hoje não tão valorizados, e uma posição geográfica privilegiada. Diziam no passado que países que podiam se desenvolver são os banhados pelo oceano. Temos 8 mil quilômetros de costa. Enfim, se eu tivesse nascido em outro país e olhasse para o Brasil, diria aos brasileiros: Como é que vocês conseguem ser tão pobres? É uma vergonha não poder crescer e continuar no caminho da estagnação.

Vamos colocar algumas questões para poder pelo menos justificar nossa posição, e não chegar à situação que vemos em praticamente todas as palestras a que assistimos, confesso que com grande frustração. Em quase todas elas as pessoas analisam com extrema competência o passado, discutem uma mexida no presente, mas não se fala na palavra "futuro". Parece que existe medo de projetar metas e buscá-las.

Sabemos que não é possível mexer no passado, talvez possamos fazer um pouco disso no presente, mas certamente temos condições de construir o futuro. É nessa direção que temos de pensar, colocar metas ambiciosas e correr riscos, riscos de não acertar.

Nosso sistema acovardou as autoridades. Elas não decidem mais. Nossa Justiça é absolutamente lenta e vive inundada por processos relacionados a coisas que o administrador não resolve. Falta ao homem público a coragem de tomar decisões. Recentemente, tive um problema relativo a imposto municipal no World Trade Center, em São Paulo. Fui procurar o secretário de Finanças, amigo meu, que, extremamente simpático, disse: "Não me peça essa decisão, não arrume um inquérito amanhã para seu amigo". São coisas dessa natureza. Não há capacidade de decisão e, em vez de resolver o assunto, criam-se comissões para estudar a questão.

Dentro dessa realidade, a pergunta que temos de fazer é: Qual é o país que queremos para nossos filhos? Certamente não é este.

Recentemente, como membro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CCT), tive a oportunidade de fazer uma palestra para o presidente da República e oito ministros. Iniciei apresentando um artigo publicado em uma revista inglesa, com o título "Difíceis Caminhos do Desenvolvimento". Se fizermos um diagnóstico, chegaremos à conclusão de que nossa nação não conseguiu implementar programas capazes de assegurar ao país metas de desenvolvimento e faliu, por não materializar políticas que logrem os benefícios econômicos do progresso, ainda que nossa bandeira determine ordem e progresso. Infelizmente, nenhum desses ditames está sendo cumprido.

Naquela exposição afirmei que, embora extremamente viável em função de suas características, nosso país não deu certo. E continuei: podemos reagir diante disso de duas maneiras. Uma é torcer o nariz e a outra é acreditar que isso representa uma significativa oportunidade que não deve ser desperdiçada.

Yoshiaki Nakano, na palestra realizada na Federação do Comércio do Estado de São Paulo no dia 13 de novembro de 2003, fez também uma pergunta: O que nos aconteceu? A partir de 1950 até mais ou menos 1980, o Brasil cresceu razoavelmente. Havia um projeto político. Não creio que o tenhamos agora. Algumas coisas estão faltando. É o caso das estratégias. Para que o desenvolvimento nacional possa se tornar realidade, precisamos de estratégias bem definidas e formuladas, com o risco de não dar certo, mas procurando atingir os objetivos possíveis e com prazos fixados. Importante: o desenvolvimento econômico-social não acontece por acaso, tem de ser construído por atitudes, culturas, procedimentos, ações que devem ser levadas em conta. Caso contrário, não chegaremos lá.

Evidentemente, decisões políticas são fundamentais. São importantes a vontade e a determinação dos governantes voltadas para as mudanças. Nosso quadro de desequilíbrio de renda e de desenvolvimento regional é um dos piores do mundo.

É momento de buscar as razões pelas quais fracassamos no passado e formas de não falhar no futuro. Hoje, dispomos de competência para executar tal trabalho, temos todas as técnicas necessárias. Recentemente, Michael Porter esteve no Brasil para fazer uma palestra. Ele me disse: "Este país não tem estratégia. Para onde vocês querem ir?" Em outras palavras, como se fosse uma criança: O que você vai ser quando crescer? Não sabemos.

Temos de pensar numa cultura melhor para o país, acabar com o fatalismo. Roberto Campos, em 1999, num discurso extraordinário que fez na despedida do Senado, disse a certa altura: "Continuamos longe demais da riqueza atingível e perto demais da pobreza corrigível". E isso permanece verdadeiro hoje.

Naquela palestra no Planalto, afirmei que o Brasil é um dos dez países mais importantes do mundo na produção de trabalho científico, mas não é um dos 50 mais importantes em aplicação tecnológica. Temos pouquíssimas marcas no mercado internacional. Em compensação, usamos uma série de marcas e pagamos direitos sobre elas - o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) reporta que nos custa US$ 15 bilhões por ano falar em Chevrolet, Sanyo, Sony, General Electric. A Embraer, uma exceção, hoje é uma marca. Aliás, a Bombardier nos ajudou extraordinariamente quando moveu o processo contra nós na Organização Mundial do Comércio (OMC). Colocou-nos em todos os jornais do mundo, dizendo que nossos aviões são bons, e que ganhamos a competição deles. Temos algumas outras marcas, como Petrobras e Vale do Rio Doce. Tudo isso indica que precisamos mudar.

Somos importantes na ciência, mas não na tecnologia. Por quê? O ministro Antonio Palocci falou em Nova York, em abril, que o arcabouço legal brasileiro precisa refletir e oferecer um panorama facilitador dos investimentos, a fim de gerar empregos e o desenvolvimento econômico de que o país necessita. Esse é um ponto fundamental. Faço agora um resumo da palestra realizada no Planalto em 6 de maio passado.

Planejamento nacional

Os ministros chamados de "primeira classe", que são aqueles mais próximos do presidente da República, estavam presentes e, quando afirmei que o planejamento nacional deveria ser construído por novas culturas e conceitos mentais, muitos acharam isso esotérico. Mas, na realidade, se não houver uma revolução cultural, no bom sentido, o país não muda. Quem não se lembra da frase de Mao Tsé-Tung, de que uma longa marcha começa com o primeiro passo? Ele partiu para a chamada Revolução Cultural, e hoje a China vive o resultado do que foi feito há mais de 30 anos. Paralelamente, em 1980 a Força Aérea Brasileira (FAB) se juntou à sua congênere da Itália para desenvolver um novo avião de combate. Fui vetor desse contrato assinado entre a Alitalia e a Empresa Brasileira de Aeronáutica S.A. (Embraer). No dia em que firmamos o contrato, o presidente da Alitalia me convidou para assistir a uma palestra em Turim. Encontrei um palestrante e uma platéia indignados com a corrupção, com a Máfia, com a instabilidade de governo, com a falta de desenvolvimento econômico. Estavam iniciando uma reação em favor da criação de uma nova Itália. Hoje, quase 25 anos depois, vemos que a qualidade de vida dos italianos melhorou extraordinariamente. Muitos podem dizer que é devido à União Européia, está acontecendo a mesma coisa com a Espanha e Portugal. Mas naquele momento mexeu-se na cultura nacional, que mudou para produzir estabilidade governamental, aniquilar a Máfia e diminuir a corrupção. Infelizmente, não é possível acabar com ela, mas pelo menos reduzi-la a níveis controláveis pela Justiça e pela sociedade.

Precisamos criar ambiente para estimular novas idéias. Hoje, temos um país hostil ao que é novo. Qualquer novidade que não venha expressa em inglês não tem valor. Tanto é que a tecnologia de processos aqui tem de ser chamada de know-how, uma palavra bem brasileira. Nós precisamos fazer com que tudo isso seja gerado no país e que possamos fixar metas de desenvolvimento. Os indivíduos são limitados por um arcabouço que precisa ser modificado. O enfoque complicador da burocracia e da legislação atual e o comportamento dos órgãos do governo não estimulam o cidadão investidor a correr riscos empresariais. Vou dar dois exemplos. Criei a Varig Log quando dirigi a companhia. Levei 11 meses para iniciar as atividades. Foram necessários 27 números do Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), aquele registro fixado pela Receita Federal, um para cada estado, e, o mais surpreendente, cada estado tinha requisitos diferentes para o mesmo número, que é federal. Agora estou fundando outra empresa, mas não consegui concluir ainda o processo, embora já esteja tentando há quatro meses. E tive de assinar uma "jóia" de documento da prefeitura de São Paulo, uma declaração de que sou um bom sujeito.

Por falar nisso, naquela palestra em Brasília comentei com o presidente Lula que reconheço que cópias autenticadas são lindas e agora há até selos holográficos muito bonitos. Mas não quero saber delas, pois significam que os brasileiros não têm fé pública. E isso já impregnou o setor privado, pois um de meus acionistas pediu uma cópia autenticada da ata da reunião da diretoria.

O desenvolvimento econômico, é claro, depende fortemente de iniciativas individuais para construir e operar unidades produtivas. É simples de dizer: você tem uma idéia e capital, cria uma empresa e desse momento em diante começa a enfrentar o calvário de registrar tudo, uma quantidade imensa de documentos que deixa o sujeito tão esvaído que já não quer mais correr o risco do empreendimento. Então vai buscar know-how lá fora e, como resultado, ficamos sem marcas no país.

A burocracia não ajuda ninguém. Se a montanha de papéis para criar uma empresa for igual à que pediram a mim, fico preocupado com as fundações dos edifícios que guardam tantos documentos. Pode ser que afundem. A proposta que fazemos é desburocratizar para simplificar e fazer com que este seja um país dos brasileiros e não do governo. E colocar aquelas palavras fundamentais que hoje funcionam no mundo inteiro: rapidez e eficiência. O mundo moderno não espera mais nada, está numa velocidade estonteante e continuamos sendo o país de amanhã, como disse o escritor austríaco Stefan Zweig no célebre livro Brasil, País do Futuro. Continuamos sendo o país do futuro. É claro que o custo do dinheiro no Brasil, taxa de juros, tributação, etc., tudo isso tem sido apontado como obstáculo ao crescimento. Há muita coisa que pode ser feita sem mexer nisso a que o governo estranhamente é apegado. É engraçado que ele crie tantos eufemismos em relação à taxa de juros. Por exemplo, inventou-se um negócio extremamente curioso, de que todo mundo fala seriamente, sem rir. É a taxa de juro real, que significa o juro nominal deduzida a inflação. Outro dia fui a um banco e pedi empréstimo com taxa de juro real. O presidente do banco riu: "Mas isso não existe". "Ah, não existe? Mas o senhor vive falando disso. Como é que não posso conseguir uma taxa de juro real?" Não conheço nenhum outro país do mundo que use essa expressão. Aqui se arranjam esses eufemismos para mostrar que há certos bloqueios mentais dos quais temos de nos livrar.

Um item importante e que me afeta em particular, devido a minha ligação com a Embraer, foi a aquisição, pelo governo federal, de um avião para o presidente da República, aeronave que podia ser brasileira. Soube também que a FAB está para fechar um contrato para comprar Learjets, outro produto fabricado pela Embraer, para transportar ministros. Sem falar da concorrência internacional que está aí há três anos, para adquirir aviões de combate que também podem ser produzidos no Brasil. Fazer concorrência internacional para aviões de combate de primeira linha é inédito no mundo. Equivale a mostrar para todos nossas hipóteses de guerra, o que se pretende ter como arma e contar isso com extrema clareza.

Enfim, estamos construindo uma série de bloqueios, uma série de conceitos que dificultam o desenvolvimento do país. O poder de compra governamental é um fator fundamental para o desenvolvimento nacional. Os norte-americanos descobriram isso em 1933 no Buy American Act. Tenho certeza de que os Aliados não teriam ganho a 2ª Guerra Mundial se essa lei não tivesse sido editada. O governo foi proibido de importar e de se financiar. Aqui não existe isso, e nosso governo, infelizmente, é um dos grandes emprestadores do país, pegando os reais de nossos impostos, transformando-os em dólares e gerando empregos lá fora. E não criamos absolutamente nada em nome da competição, fazendo com que a relação entre o preço dos produtos no Brasil e no exterior seja a taxa de câmbio. Isso é absolutamente incorreto. Evidentemente, não estou pregando a idéia de que a indústria nacional seja menos eficiente do que a estrangeira, mas quando o produto é fabricado no Brasil há um retorno enorme de resultado econômico.

Em 29 de julho de 2003, o senador Russ Feingold apresentou um projeto que reforça o Buy American Act. Quando todo mundo discute o poder de compra governamental como elemento de negociação na OMC e na própria Alca, os norte-americanos reforçam uma lei de 71 anos atrás, que deu certo. No Brasil estamos distantes disso.

Capitais de risco

Há pouco tempo ouvi uma importante autoridade brasileira discorrendo sobre investimento, afirmando que precisamos atrair capital estrangeiro. Mas será que investimento só vem de capital estrangeiro? E os recursos em reais? Foi o que fiz em minha empresa. Um grupo estrangeiro quis investir, concordei desde que registrassem o dinheiro no BC, colocassem os recursos na companhia em reais, recebendo remuneração também em reais. O presidente dessa companhia perguntou: "Mas vou correr o risco cambial?" Respondi: "Não sei se há risco cambial, trabalho no Brasil, com reais, e, se você quer trabalhar comigo, faça o mesmo". Ele fez isso, e hoje estou remunerando o investimento dele em reais.

Em 2002, eu e um amigo criamos no Rio de Janeiro a Associação Nacional de Empresas de Capital de Risco. Em outras palavras, o famoso venture capital que em grande medida tem feito a riqueza dos Estados Unidos. Já temos 12 sócios, dos quais quatro participam de minha companhia com capital de risco, criando investimentos em reais. De modo que, eu diria, não falem só em capital estrangeiro.

A esse propósito, lembro Eduardo Giannetti da Fonseca, que disse que o governo extrai do setor privado uma quantidade imensa de recursos através de uma tributação praticamente insuportável. São investimentos que deixam de ser realizados, porque os tributos chegam a um nível tal que todo esse dinheiro desaparece na burocracia.

Pesquisa

Para começar, não temos marcas brasileiras que gerem empregos no país. Fizemos até uma proposta para as multinacionais instaladas aqui, para que sejam estimuladas a desenvolver pesquisa no Brasil. Elaboramos um projeto de lei, que chamamos Lei de Inovação, que foi encaminhado ao Congresso. É um projeto que estimula efetivamente as pesquisas e ao mesmo tempo oferece mecanismos para um contato muito mais intenso da universidade com as empresas.

Pequenas e médias empresas

Existe o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), já foram criados vários órgãos, todos falam das pequenas e médias empresas. Uma estatística vista na Internet mostra que 70% dos empregos nos Estados Unidos são gerados por esse segmento. Enquanto nos debatemos contra o desemprego, as pequenas e médias empresas enfrentam um verdadeiro oceano de burocracia e limitações para ser instaladas.

Abrir companhia é difícil no Brasil, mas fechá-la chega a ser impossível. Lembro que em 1986, como presidente da Petrobras acabei com a Interbrás. Em 1990, como ministro da Infra-Estrutura, tive de fechar a Interbrás de novo. Fui checar recentemente, ela ainda está viva, não morreu.

Financiamentos

Financiamentos de um modo geral, e em particular para inovação, são muito importantes. Consegui há pouco um investimento para minha empresa, e estou começando a fabricar um produto competitivo. É um setor estratégico para o país, biotecnologia, com uma capacidade de competição extremamente elevada. Aqui convém falar de um aspecto muito particular da burocracia brasileira: homologações, certificações e aprovações. É um capítulo à parte. Para fabricar, por exemplo, meu produto, preciso de aprovação. Quando vou solicitá-la, não recebo requisitos, nem prazos para que ela possa ser executada, e, após a aprovação, a autoridade não tem responsabilidade nenhuma sobre o que aprovou. Se alguma coisa não der certo, a culpa é inteiramente minha. Então pergunto: para que aprovar? Assim, propus ao presidente da República uma legislação, e até disse que ele iria gostar do nome: Lei Geral de Responsabilidade Regulatória. Uma lei para equilibrar o nível de responsabilidade entre o cidadão e o governo, pois o poder está do lado do governo. Inclusive existem agências de aprovação de produtos no Brasil que, por questão de ética, não podem informar o andamento do processo. O cidadão não sabe quando seu projeto vai ser aprovado e fica numa situação difícil para se explicar perante os acionistas, uma vez que os cronogramas de planejamento acabam não funcionando. Por isso propusemos a Lei Geral de Responsabilidade Regulatória.

Processos licitatórios

Evidentemente, a lei nº 8.666, que trata de licitações, teve um resultado moralizador no país. Mas, depois, aconteceu o mesmo que ocorre com todas as legislações no Brasil, que vão se complicando a ponto de ficar extensas e contraditórias. Resultado: nada mais caminha, é parecer de um lado, parecer do outro, e a coisa não funciona.

Até pouco tempo atrás eu era membro da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (Unido). A ONU tem uma predileção muito curiosa pela África, todas as reuniões são nesse continente. Estivemos em Casablanca, no Marrocos, e quando voltava vi no avião um jornal de Rabat, em cujo editorial se afirmava que a legislação egípcia é a mais extensa e contraditória do mundo. Fiquei indignado, pois esse recorde é nosso. Perguntei depois a Ives Gandra, que me deu razão. Os brasileiros temos a legislação mais extensa e contraditória do planeta.

A propósito, quando era ministro, recebi um decreto que deveria assinar, juntamente com o presidente da República. "Esse decreto eu não assino", disse ao portador. "Mas, ministro, o presidente já assinou." Com o documento em mãos, fui ao Palácio do Planalto, e perguntei ao presidente: "O senhor tem coragem de assinar o decreto número 100.000?" Respondeu: "Eu não". "Então temos de fazer alguma coisa, porque este é o de número 100.000, e um país que tem 100 mil decretos não pode ser sério." Ele concordou, chamamos o chefe da Casa Civil e saímos para a solução óbvia: assinamos o decreto número 1. Isso foi em novembro de 1990. Sabem qual está para ser assinado hoje? O de número 5.000. É mais de um decreto por dia. Não pode ser. A sociedade tem de viver mais ou menos como a natureza, com previsibilidade. Levamos susto todos os dias. O presidente Lula assinou recentemente, num único dia, 32 medidas provisórias. É uma violência. Não é possível que os problemas do país não possam ser debatidos normalmente no Congresso Nacional, para que a sociedade tome conhecimento e se adapte aos poucos. Trinta e duas medidas provisórias que entram em vigor na data da publicação, imaginem o trauma que causam numa quantidade imensa de empresas, reduzindo a eficiência e a rapidez, que, como dissemos anteriormente, são importantes. No caso dos processos licitatórios está acontecendo tudo isso, o que impede que o país chegue aonde desejamos.

Multinacionais

Uma coisa curiosa é observar que a empresa nacional está em desvantagem perante as estrangeiras instaladas no país. Há pouco tempo, o ministro Luiz Fernando Furlan lançou a idéia de uma política industrial. Na realidade, trata-se de uma seqüência igualzinha às anteriores. São declarações de intenção. Falta-nos o arcabouço legal regulatório. Uma estatística recente mostra que o Brasil é um dos países que mais criam empresas. Mas também é o campeão do mundo em companhias que morrem a partir do primeiro ano de estabelecimento. Elas morrem, não são desfeitas, porque o processo de terminar uma empresa, como já dissemos, é quase impossível.

Há 150 anos, os norte-americanos aprovaram uma lei que tributa heranças e doações, mas as isenta quando são destinadas a universidades, a projetos culturais. Essa lei hoje não precisa nem mais de incentivo, pois já virou cultura entre os norte-americanos investir em educação. Isso explica em grande parte por que os Estados Unidos se descolaram dos outros países da América.

Outro fator importante é a criação de mecanismos para o governo contratar o desenvolvimento de produtos e serviços, uma alavanca de crescimento. Isso ocorre na Europa, no Japão, nos Estados Unidos. Aqui não há mais nenhuma disponibilidade governamental para investimentos nessa área, e assim o campo da inovação fica sem esse mecanismo.

Meio ambiente

Quanto ao meio ambiente, todos temos certeza de que precisa ser cuidado. Mas não podemos transformar isso em paixão. Muitos projetos são deixados de lado porque as buscas pelos resultados são levadas a exageros. Conta-se que, em Vitória, um sujeito foi autuado porque estava plantando grama. Deve ter sido um dano enorme ao meio ambiente. Evidentemente há problemas que temos de enfrentar. Por exemplo, petróleo. Hoje, o mundo está queimando 85 milhões de barris por dia e jogando no ar cerca de 10 milhões de toneladas de efluentes de motores de combustão interna. Isso é um crime contra a atmosfera, que levou cerca de 4,6 bilhões de anos para ser formada. Se continuar nesse ritmo, em 200 anos acabamos com ela. Aliás, vamos morrer antes disso, e assim talvez a natureza se recomponha.

Incubadoras

As incubadoras de empresas exercem papel fundamental no crescimento e na geração de empregos. A Lei de Inovação, na qual estamos trabalhando, pode ajudar, uma vez que vai permitir aos pesquisadores transformar-se em empreendedores, utilizando tecnologia desenvolvida nas universidades.

Defesa

Quanto à indústria de defesa, ela é extremamente importante. Embora nosso pacifismo não nos leve a fabricar armamentos e coisas dessa natureza, a indústria de defesa hoje é três vezes maior que a de software, e teríamos condições de entrar nesse mercado. A aquisição de material e equipamentos para as forças armadas, dentro do processo de renovação, poderia ser uma alavanca para darmos partida a alguns itens da indústria de defesa e fazer com que nossas forças pudessem usar produtos nacionais.

Inserção digital

O uso da informática, evidentemente, é um item de muita importância como propulsor da educação. O computador hoje é um sonho das crianças de um modo geral e é um instrumento fabuloso para desenvolver a vontade de estudar, de aprender, fazendo com que isso estimule o crescimento do país. Quando falei desse assunto, o presidente da República disse que existem 12 grupos de trabalho no governo federal debatendo para saber qual será o modelo de inserção digital da sociedade. Imaginem 12 grupos de trabalho para estudar um único assunto. Eu mesmo lancei recentemente, junto com a Associação Cristã de Moços (ACM), uma proposta de computador a R$ 1. Um equipamento desses está funcionando na sede da ACM em São Paulo com um sucesso extraordinário. Acreditamos que poderia ser a saída para a questão da inserção digital, mas, com 12 grupos de trabalho debatendo o assunto, podem imaginar que não é fácil.

Patentes

Quanto à propriedade intelectual e industrial, vemos o governo novamente às voltas com o INPI, que surgiu na década de 70. Hoje temos a incapacidade de aprovar patentes. Tenho algumas pessoais e outras da Embraer, que solicitamos entre 1991 e 1993, e ainda não foram emitidas. No caso de minha empresa Pele Nova, registrei patentes no mundo inteiro, estou para receber o registro norte-americano mas não tenho nem resposta da estrutura brasileira. É aquele capítulo regulatório de que preciso ter a patente no Brasil por intermédio do INPI, mas não recebo por parte do governo federal uma responsabilidade equivalente a essa obrigação. O mesmo ocorre com o sistema metrológico nacional, extremamente importante para a qualidade e para o desenvolvimento do país.

Finalmente, volto ao começo de minhas colocações: será que não conseguiremos alterar a cabeça da sociedade civil para pressionar a classe política, deixando para trás a crença generalizada de que o governo é capaz de criar sozinho novos horizontes para o progresso e o desenvolvimento? Creio que devemos refletir muito, ver o que se pode fazer, em vez de ficarmos no debate permanente do que deveria ser feito, com palestras como esta, por exemplo - podemos gostar ou não, mas quando termina não nos julgamos mais culpados. Vamos para casa e não pensamos mais na contribuição que se poderia dar ao desenvolvimento nacional.

O Brasil, sob todos os aspectos, é um país fascinante. Nesta palestra, de propósito deixei de lado a questão da infra-estrutura, humana e material, dois itens importantes para qualquer vetor de desenvolvimento. Na área de infra-estrutura humana, vemos que o processo de construção de cidadãos está falho. Quando paramos num sinal vermelho na rua, o futuro vem, bate no pára-brisa e pede esmola.

ISAAC JARDANOVSKI - Quando não bate com um revólver.

OZIRES - Penso que a sociedade civil tem de se movimentar. Temos de trabalhar intensamente para criar uma infra-estrutura básica de produção de cidadãos, e ao mesmo tempo pensar na infra-estrutura material, de transporte, de energia. A de telecomunicações vai indo muito bem do ponto de vista quantitativo, mas o custo está muito alto. Precisamos fazer com que a infra-estrutura seja eficaz, mas mais barata do que a de hoje.

Gostaria de pedir que começássemos a pensar dura e fortemente em nossa responsabilidade de fazer isso mudar. Volto sempre àquela imagem de 1980, na noite em que assisti à palestra na Itália, quando uma pequena comunidade iniciou um movimento e conseguiu propagar a idéia de construir um novo país. Precisamos também construir um novo Brasil, e isso é urgente, porque o mundo está disparado lá na frente.

Terminando mesmo, digo que é muito triste que as pessoas afirmem que os juros nos Estados Unidos vão subir e vai ficar difícil para o Brasil, que a China vai reduzir o ritmo de crescimento e será ruim para nós. Ora, no momento em que esses países mudam, com perda de competitividade, vamos ser prejudicados? Será que não temos o senso de aproveitar a oportunidade? Se a China reduzir sua taxa de crescimento, vamos ocupar o espaço que vai ficar. Se os norte-americanos aumentarem a taxa de juros e perderem competitividade, vamos elevar a nossa e não ficar olhando a imagem especular que isso possa produzir.

É o cúmulo o que aconteceu conosco. Houve um problema econômico na Turquia e importamos a crise turca, há uns quatro ou cinco anos, embora não tivéssemos nenhum comércio significativo com eles. É muito esquisita essa forma de pré-justificar o que não vamos fazer no futuro.

 

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