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Sujeito a crise
País cresce mas continua vulnerável a choques externos
JORGE PEREIRA FILHO
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Não é necessário grande esforço de memória para recordar os perigos que corre uma economia frágil quando piora o humor dos investidores internacionais. Nos últimos anos, foram constantes as ocasiões em que o país precisou elevar sua taxa de juros para conter um ataque especulativo e a conseqüente fuga de dólares. Foram momentos em que, na prática, o governo aumentou o prêmio pago a investidores para que continuassem emprestando dinheiro ao Brasil.
Em 1999, por exemplo, houve uma crise cambial, e a cotação da moeda norte-americana disparou. O Banco Central (BC) promoveu uma súbita elevação das taxas de juros, que chegaram a 45%. Os efeitos na economia foram mais que conhecidos: o desemprego atingiu a marca de 20% da população economicamente ativa (PEA), a renda do trabalhador encolheu e a atividade econômica pouco se expandiu. Hoje, o Brasil tem a segunda maior taxa de juros do planeta, superior até mesmo à da Argentina, que quebrou em 2001 e desde então suspendeu o pagamento aos credores privados da sua dívida externa.
"Quando a cotação do dólar dispara, empresários adiam investimentos, trabalhadores retêm gastos, aumenta o desemprego, há uma sinalização negativa para a economia", explica o economista João Sicsú, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em sua opinião, o momento mais adequado para enfrentar os desafios da redução da fragilidade externa de nossa economia é justamente agora. "Precisamos fazer medicina preventiva e não depender da UTI do Fundo Monetário Internacional (FMI). Vulnerabilidade é um assunto que se trata em momentos de calmaria. É mais arriscado adotar medidas em períodos de crise."
Segundo ele, no passado, o país já pagou caro por alimentar a ilusão de que esses problemas estariam resolvidos. Sicsú lembra que, em 2000, o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro cresceu 4,4%, em um movimento que apontava para uma recuperação. No ano seguinte, no entanto, a economia voltou a patinar e se estabilizou com uma pequena expansão de 1,4%. "O erro do passado foi pensar que viveríamos uma trajetória de crescimento contínuo", afirma o economista.
Risco próximo
Embora o momento atual seja de crescimento econômico, a possibilidade de uma crise não é assim tão remota. É o que mostra estudo realizado em julho deste ano pelos economistas Daniela Prates, especialista em balanço de pagamentos (conta que reúne todas as transações do Brasil com outros países), e Ricardo Carneiro, diretor do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Segundo a pesquisa, em uma crise no mercado internacional, o Brasil teria de arcar com cerca de US$ 100 bilhões em despesas de curto prazo. Esse montante equivale à soma dos pagamentos programados da nossa dívida até o final do ano e os dólares aplicados em fundos de investimento ou ações, que podem sair do país a qualquer momento.
O problema é que, juntando tudo, o país disporia de apenas US$ 59 bilhões. Parte desse valor, cerca de US$ 10 bilhões, equivale à soma dos dólares que vêm para o país em forma de investimentos internacionais diretos, como a compra de empresas, mais o saldo em transações correntes, garantido pelo excelente desempenho das exportações. De reservas líquidas próprias, o Brasil dispunha, em julho de 2004, de US$ 23 bilhões, mais US$ 26 bilhões do FMI, que poderiam ser liberados em uma crise.
A conclusão é que, mesmo com ajuda do FMI, a conta não fecharia. "Esse é um exercício que revela como estamos vulneráveis no curto prazo. Situação que decorre, em grande parte, da pequena acumulação de reservas em 2003", avaliam os economistas.
Reservas insuficientes
Apesar do aumento das receitas decorrentes das exportações (em dólares) - e da manutenção de um câmbio baixo -, o governo não tem conseguido recompor seu poder de fogo diante de uma ameaça externa. Para se ter uma idéia, em abril de 1998, antes da crise cambial, o país dispunha de US$ 73 bilhões em reservas líquidas - e nem mesmo esse expressivo montante bastou diante da pressão especulativa. "Temos superávits comerciais, mas não estamos aumentando nossas reservas significativamente para enfrentar um agravamento da situação externa", critica Reinaldo Gonçalves, professor de economia internacional da UFRJ.
O BC até tem encorpado as reservas brasileiras nos últimos anos. No final de 2002, tínhamos apenas US$ 16 bilhões, e conseguimos aumentar esse valor em 43,75% até julho. No entanto, mesmo assim, não chegamos nem a atingir o volume que possuíamos no final de 2001 - US$ 28 bilhões. "Trazer dólares sem que o BC forme reservas não é tão positivo assim. Por enquanto, isso está ocorrendo de modo limitado, não na velocidade necessária", avalia João Sicsú.
Uma das faces da fragilidade da economia brasileira é o seu alto nível de endividamento. Hoje, o país tem uma dívida externa de US$ 207,2 bilhões, segundo o BC. Como não tem recursos para quitar esse montante, o Brasil paga juros para rolar a dívida, ou seja, para alongar seu prazo de vencimento. Em 2004, o governo estima que vai arcar com US$ 13,6 bilhões só de juros da dívida externa. Esse volume é superior a todo o orçamento previsto para o Ministério da Saúde e mais de duas vezes maior do que os recursos destinados ao Ministério da Educação.
Desde 1999, o país não gasta menos de US$ 13 bilhões com juros da dívida. E, apesar dessa despesa elevada, o valor do passivo externo não está caindo significativamente e permanece superior a US$ 200 bilhões - nível em que se encontrava em 1998. O endividamento continua a crescer porque o governo pega empréstimos no exterior para captar recursos e quitar os débitos que estão vencendo. "A dívida continua um entrave para nosso desenvolvimento. Somos obrigados a realizar uma redução de gastos públicos sem, ao menos, conseguir diminuir seu montante", avalia Reinaldo Gonçalves.
Exportações em alta
As elevadas despesas em moeda estrangeira acarretam fragilidade constante à nossa economia. "Sempre digo que o brasileiro se levanta, no dia 1º de janeiro, com um buraco de US$ 20 bilhões na conta corrente. É preciso arrumar esse dinheiro", explica Luiz Gonzaga Belluzzo, professor do Instituto de Economia da Unicamp.
Como o BC não fabrica esses dólares, há quatro formas de obtê-los para o país quitar seus compromissos: exportar mais, receber mais investimentos externos, aumentar o endividamento e contar com a elevação das remessas dos imigrantes que mandam recursos a seus familiares no Brasil.
Quando o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso utilizou a frase "exportar ou morrer", não estava apenas parafraseando o grito do Ipiranga. Manter as exportações em nível elevado era uma das condições essenciais para a economia brasileira não quebrar, mesmo que o custo dessa política fosse o pífio crescimento do mercado interno e uma baixa demanda por importações. Como as diretrizes centrais da política econômica dos oito anos do governo anterior estão mantidas, a orientação continua sendo a mesma.
"A exportação é o primeiro passo de uma série de medidas que devem ser tomadas para reduzir nossa vulnerabilidade", explica João Sicsú. Porém, o economista adverte que a recuperação das vendas externas não basta para superar nossas debilidades. "A vocação exportadora é uma tendência não muito recente da nossa economia, interrompida em 1994, devido à valorização do real. A reação começou em 1998, quando o câmbio se desvalorizou, mas trata-se de uma medida limitada", avalia.
Em 2004, uma série de fatores está permitindo ao Brasil elevar significativamente suas vendas no mercado externo - e atingir um superávit comercial inédito para os últimos anos. A estimativa do governo é que o saldo da balança comercial (dólares que entram no país com as exportações, menos os que saem com as importações) fique em US$ 30 bilhões. As exportações recordes estão ancoradas sobretudo no bom desempenho do agronegócio, que respondeu por 42,5% do resultado das vendas externas. Só em agosto, as exportações totais somaram US$ 26 bilhões, ou seja, 35% a mais do que no mesmo mês de 2003.
"O superávit comercial está sendo importante para favorecer alguns indicadores brasileiros que ainda mostram a persistência da vulnerabilidade. Os índices de solvência e liquidez melhoraram muito, mas ainda estão entre os piores do mundo", diz Belluzzo.
Alívio conjuntural
O desempenho das exportações tem sido tão satisfatório que o Brasil registrou superávit em seu balanço de pagamentos em 2004. Significa dizer que o país recebeu mais dinheiro do que enviou ao exterior. No primeiro semestre, a folga foi de US$ 8 bilhões.
Sem dúvida, como aponta o próprio estudo dos economistas da Unicamp, a vulnerabilidade externa da economia poderia ser reduzida se as exportações conservassem o mesmo ritmo de crescimento por um período suficiente para amortizar a dívida externa ou acumular reservas. "Contudo, dificilmente essas condições serão mantidas, pois o excepcional desempenho das exportações não deve persistir, já que esteve associado a fatores conjunturais, como a desvalorização cambial de 2002, a alta dos preços das commodities e as taxas elevadas de crescimento da China e da Argentina", avaliam os economistas Daniela Prates e Ricardo Carneiro.
Para Reinaldo Gonçalves, há um componente negativo até mesmo na atual evolução das vendas no mercado externo. O economista critica o foco da política governamental de estímulo às exportações, centrada nos produtos agrícolas. "Isso é o desenvolvimento do subdesenvolvimento. As commodities têm preços instáveis, exigem constantemente aumento do volume de produção e contam com compradores irregulares", argumenta.
Novos ares
Desatar o nó da intrincada trama de vulnerabilidade que atormenta a economia brasileira não é fácil e exige um planejamento de longo prazo. João Sicsú afirma que esse desafio depende de um redirecionamento da política econômica. "É possível evitar que os humores do mercado financeiro internacional contaminem a economia real. Caso contrário, teremos crises de confiança rondando o país", avalia o economista.
Uma das medidas que ele considera recomendáveis é a definição de uma política industrial que tivesse como objetivo mudar a composição das vendas externas. "Exportamos commodities que têm preços reconhecidamente instáveis. Pode ser que amanhã não tenhamos o mesmo superávit comercializando volume semelhante de mercadorias. Já os produtos manufaturados são mais estáveis", explica o professor.
Para Sicsú, outra frente para combater a vulnerabilidade externa é a redução da velocidade do fluxo de capitais. Reinaldo Gonçalves concorda: "Houve um processo de liberalização durante os governos de Fernando Collor, de Fernando Henrique Cardoso e, agora, do Lula. A idéia é impor um controle desse capital externo na entrada e na saída do país. O capital bom poderia entrar, mas o especulativo sofreria restrições, como uma quarentena para poder sair".
Já o professor Belluzzo, apesar de ser favorável à adoção de medidas para reduzir a velocidade dos fluxos de capitais, diz que isso deveria ter sido feito em 1994, quando o Brasil elevou seu endividamento. Segundo ele, hoje não haveria espaço para impor tais restrições. "Agora, para superar nossa vulnerabilidade, é preciso agir em várias frentes e ter uma política de longo prazo para aumentar o índice tecnológico dos produtos exportados", propõe o economista da Unicamp.
Um país que adotou esse controle foi a Malásia, em 1998, logo depois que sua moeda sucumbiu diante de uma crise cambial. A medida, porém, não teve aval das instituições multilaterais. "Quando foram adotadas as restrições, a comunidade financeira internacional prognosticou seu rotundo fracasso. No entanto, a despeito dessas previsões e de ações adversas dos liberalizantes, os controles foram muito bem sucedidos", avalia Sicsú, em estudo realizado com o economista Fernando Cardim sobre a experiência do país asiático.
A introdução de medidas de controle contradisse o receituário do FMI para o enfrentamento de crises cambiais. Em vez de deixar o câmbio flutuar e elevar os juros, a Malásia instituiu o câmbio fixo e reduziu as taxas. O país aumentou os gastos públicos - exatamente o inverso do que recomendou o Fundo.
O resultado foi que, logo depois da crise, a indústria cresceu 8,5% em 1999, e o PIB se elevou 5,4% no mesmo período e 7,8% em 2000. Quando, em 2003, o Brasil teve recuo do PIB de 0,3%, a Malásia expandiu sua economia em 5,2%. Mesmo o crescimento brasileiro de 5,7% no segundo trimestre de 2004 ficou abaixo dos 8% do país asiático. "A expansão da nossa economia foi positiva, mas é limitada para as necessidades atuais. Precisamos de uma taxa perto da que tínhamos nos anos 70, entre 10% e 14%", afirma Sicsú. Algo que está bem distante do crescimento de 4% previsto para 2004.
Investidor quer estabilidade
Ao mesmo tempo em que a vulnerabilidade da economia se mantém, uma fonte de recursos externos para o Brasil - os investimentos estrangeiros diretos (IED) - perde potência. No início do ano, o Banco Central estimava que as multinacionais enviariam cerca de US$ 12 bilhões ao país, média mensal de US$ 1 bilhão. A realidade ficou distante da previsão. Nos primeiros sete meses, essa meta havia sido atingida apenas em julho. Em janeiro, abril, maio e junho, o IED não chegou nem à metade desse valor.
"Os investidores sabem que não temos uma perspectiva de crescimento significativo. O governo, com a propaganda de que está crescendo muito, pode até atrair gente incauta. Mas os setores bem informados, que têm dinheiro, só investem a partir de perspectivas baseadas em números. E não vão colocar recursos no país até terem certeza de que, de fato, há recuperação", analisa Theotônio dos Santos, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenador da Cátedra e Rede sobre Economia Global e Desenvolvimento Sustentável da Universidade das Nações Unidas (UNU), da Unesco.
Santos acompanha os informes das multinacionais sobre a situação em diversos países e afirma que as companhias devem aguardar um ano ou mais para retomar os investimentos no Brasil. Até julho de 2004, as aplicações somavam US$ 4,8 bilhões. Já no mesmo período de 2002, as multinacionais haviam colocado no país US$ 8,9 bilhões.
"Existe uma idéia de que é necessário criar um ambiente favorável para as empresas terem mais lucros, como salários baixos e liberdade de fluxo de capital. Isso só funciona num contexto de crescimento econômico. A China não obedece a essas exigências, tem um controle grande sobre os capitais, mas recebe os maiores investimentos internacionais", explica Santos. E por que os chineses atraem tantos recursos externos? "Porque o país cresce a um ritmo de 10% ao ano. Quem investe lá aposta num contexto de expansão da economia. Com uma política recessiva, o Brasil não atrai investimentos", explica o professor da UFF.
Para Reinaldo Gonçalves, da UFRJ, a própria vulnerabilidade brasileira inibe o investimento direto no setor produtivo. "O investidor externo quer, sobretudo, estabilidade. A China tem uma vulnerabilidade bastante reduzida, um projeto nacional e estabilidade político-institucional. Aqui, a fragilidade externa é elevada, o que acarreta instabilidade sociopolítica", afirma o economista.
Um sinal da pequena confiança no mercado interno brasileiro é que as retiradas das empresas têm subido. Em 2004, as remessas de lucro das multinacionais atingiram US$ 4,1 bilhões até julho - 31,7% a mais do que o registrado no mesmo período de 2003, quando somaram US$ 2,8 bilhões.