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Ficção Inédita
O Leit-Motiv

Por Ana Miranda

Ele surgiu um pouco antes da minha partida, e foi o seu leit-motiv, assim como o sangue é o leit-motiv de Carmem de Bizet. Eu fazia hora na livraria de uma amiga, ela estava muito atarefada nos últimos preparativos para o lançamento de um livro, eu a esperava para irmos almoçar juntas, quando entrou na livraria um homem de terno e gravata, óculos, muito tímido, na verdade ele não entrou, olhava os livros que ficam em cima de um balcão na calçada, emoldurado por um renque de prédios velhos e copas de figueiras antigas, num fim de manhã de verão. Há gestos muito simples que fazemos, distraídos, e que podem mudar aspectos importantes da nossa vida, às vezes simplesmente olhar para o lado, ou simplesmente não olhar, abrir a bolsa, afastar os cabelos do rosto, pedir um café e acender um cigarro, levantar-se de uma poltrona com uma espontaneidade sem conseqüência, fútil e negligente caminhada numa encosta íngreme, quando não percebemos que escorregar ali pode ser uma queda infinita, e a ausência será uma prova de abandono, um olhar pode ter todas as realidades que nos iludem, encarnar as nossas percepções, mesmo quando não percebemos que estamos maravilhados, a vertigem do acaso, o sentimento da presença experimentada, o prelúdio do prelúdio, um aprendizado inconsciente à distância, uma seqüência de ímpetos desconhecidos de prazeres, coisas que se dissolvem. E fui até ele e lhe dei um convite para a festa daquela noite. Sem nenhum toque, um gesto delicado no interior da palma, pergunta, resposta, atividade tumultuada da fala, ocasião furtiva, poucas palavras, o que vai escapar antes de existir. Nenhuma reflexão, apenas uma sucessão de imagens e vozes estranhas, vozes breves e contidas, descuidadas, casuais, sem vasculhar, sem adversidades. A fatalidade do descuido não me vestira, não me enfeitara para um encontro, não penteara os cabelos nem perfumara meus ombros, um corpo adormecido entre panos escuros, casuais. Tudo fica para ser sugerido e adivinhado. De repente uma cortina se rasga, vemos um quadro. Palavras provisoriamente verdadeiras. Uma mulher instruída pode ler seu futuro num simples gesto.
Ele deveras apareceu, à noite, veio com seu filho, um rapaz de cabelos encaracolados e olhos rápidos, ficou um instante só, eu o vi entre as pessoas, ele me olhava detrás da vitrine da livraria, sempre na rua, uma expressão de inocência, e desapareceu. Foi isso simplesmente. Nenhum sobressalto. Eu não percebi que ele deixara em mim a dor de um grão de areia que vai formar a pérola. Algo que em determinado momento se afasta e deixa a sua ausência, o pássaro indisponível. A descoberta retardada do momento vivido, um episódio sem começo nem fim. A fascinação, a extremidade do distanciamento, bagatelas, o miolo factual de um acontecimento, incidente, as mínimas circunstâncias se tecendo numa trama de sonho e festa, festa, a floração de uma casualidade. O que chamamos acaso talvez seja a lógica de Deus, está escrito nos Diálogos das Carmelitas, de Bernanos. Uma poesia de Quintana: O que nos acontece nada tem com a gente, são simples acidentes que chegam de olhos fechados, num jogo de cabra-cega. Essa é a regra. Aqueles olhos separados por um vidro e livros azuis. Virei de costas. Que fazer? Como agir? Surpreendida por minha surpresa, imobilizada por uma aparição fixa. A formalidade ancestral do rapto. E passei a esperar todos os dias que esse ser fugaz reaparecesse em meu caminho, mas já era tarde demais, sentava inutilmente no mesmo banco da livraria, dias e dias na Dias Ferreira, reconstituindo e conjugando as peças, recebendo orquídeas anônimas, sentindo as lufadas que vinham lá de baixo do doce abismo, e esperava, quieta, olhando as pessoas que passavam, as folhas caindo na calçada, o outono a se aproximar, uma longa e leviana espera, uma prostituta caprichosa apaixonada por uma ave, mordida por um inseto que deixara um líquido entorpecente, talvez eu tivesse o mesmo tipo de sentimento daquele meu amigo que perdeu o filho num suicídio, sem um bilhete, sem uma palavra de explicação, e lhe doía mais o mistério que a perda. Por quê? Por que houve um engano temporal e a submissão a um lampejo desconhecido? Imaginava que ontem, exatamente ontem que eu não estivera ali sentada, ele viera novamente olhar o balcão de livros e o vidro com livros azuis e a curva negra dos ombros de uma mulher de costas, uma alça fina. A Sabina quieta olhava as pessoas que passavam na rua, sem fazer nada, esperando-o aparecer, e ele nunca voltou, nunca mais passou ali por acaso naquele momento de ternura e esperança, que estranhamente não gerava nenhuma infelicidade, talvez fosse até mesmo o contrário, não veio e no entanto estava sempre ali, nunca beijou-me inocente no entanto eu sentia um irrefletido beijo, teria pudor em se aproximar de mim, beijar meu rosto, segurar minha mão, sentar ao meu lado, falar de seus problemas do cotidiano, em meu desespero passivo eu o amei como nunca, por não ter a graça da intimidade, por não perceber que muitas vezes nos decepcionamos porque não sabemos ver o sonho que há na realidade, e a realidade que há no sonho, às vezes nos basta essa vontade libertária de imaginar, às vezes não basta, de qualquer forma continuei a sonhar com meu passante, não sabes aonde vou, não sei aonde vais, tu que eu teria amado, e o sabias demais.

Ana Miranda é autora de Boca do Inferno (Cia. das Letras, 1989) e Dias & Dias (Cia. das Letras, 2002), entre outros