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Entrevista
Gilberto Mendes
Em entrevista exclusiva, o compositor Gilberto Mendes fala de música, produção cultural e dos 41 anos do Festival de Música Nova
Aos 80 anos, Gilberto Mendes talvez seja hoje um dos compositores de música contemporânea mais respeitados (e gravados) fora do Brasil. Suas composições estão sendo registradas em estúdios americanos e europeus, por intérpretes e instrumentistas de primeira linha no cenário mundial. Em junho, o tenor Fernando Portari e a soprano Rosana Lamosa começam a gravar um CD registrando apenas suas canções. O casal de intérpretes, é bom lembrar, hoje é a maior grife do canto lírico do País. Criador do Festival de Música Nova, ao lado de Rogério Duprat e Willy Correa de Oliveira, em 1962, Gilberto Mendes transformou-se logo numa referência a compositores interessados em romper as rígidas estruturas da canção contemporânea. Não à toa, o festival já se encontra em sua 41ª versão. "Só não fiz ano passado", conta ele e explica o motivo nesta entrevista exclusiva, feita em seu apartamento em Santos (SP), onde nasceu e usa como porto de suas constantes viagens internacionais. A seguir, os principais trechos:
O melhor ponto para começarmos talvez seja do atual momento. O senhor está basicamente compondo agora? Alguma música nova?
Somente uma. É que no ano passado eu passei por uma crise com o governo de Santos - profundamente anticultural, diga-se de passagem. Em protesto contra a retirada de dois concertos fundamentais para o Festival de Música Nova, eu disse a eles que, se eles cancelassem esses concertos cancelaria o festival. E foi o que aconteceu. Eu não queria fazer um festivalzinho vagabundo. Mas houve um reboliço muito grande na cidade, houve manifestações do pessoal de teatro na Câmara de Vereadores, caras pintadas e essas coisas - os atores são sempre espalhafatosos. Eu fiquei até surpreso. Prova de que, ao menos por esse lado, eu sou muito estimado. Veio uma carta de solidariedade até de Nova York.
É que o festival de música nova se tornou tradicional.
Ia fazer 40 anos. Eu recebo correspondência do mundo todo por causa do festival, recebo ofertas muito atraentes. Aliás, os opositores do festival - na verdade, apenas um: o governo - me acusavam de não ser um bom produtor. Mas desde quando eu sou produtor? Eu sou um compositor. O festival é um negócio que eu faço por amor, pela divulgação da música, é uma coisa que foi acontecendo ao longo dos anos. Se eu fosse produtor eu iria querer ganhar dinheiro com o negócio, se eu fosse empresário viveria disso. Quando, na verdade, eu ponho dinheiro do meu bolso todos os anos.
Como surgiu a idéia de fazer este festival?
Ele nasceu em 1962. Foi naquela época que a gente lançou o manifesto de música nova na Revista Invenção, dos poetas concretos. Éramos eu, Willy Correa de Oliveira, Rogério Duprat, Damiano Cozzela e com grande apoio do pessoal da poesia concreta: Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari. Na verdade, o festival é até anterior ao manifesto, que data de 1963. A idéia original era basicamente mostrar a nossa música. A gente estava tomando uma posição do que era a música brasileira, com manifestos, debates e um grande apoio da imprensa, que naquela época gostava dessas coisas. Aos poucos, o festival foi crescendo com a presença daqueles que nos acompanhavam.
Olhando para esse festival hoje, 41 anos depois, que tipo de avaliação o senhor faz dele?
Aquilo foi fruto de um momento, não daquele momento, mas de uma era, digamos assim. Houve um tempo em que se gostava muito de polêmica, de tomadas de posição. Hoje em dia ninguém mais toma posição de nada. Você pode fazer o que quiser que ninguém discute, está cada um na sua. Mas naquele tempo era diferente. Eu me lembro que dez anos antes um grupo do Rio de Janeiro, com o Koellreuter, lançou o Manifesto Música Viva. A gente estava nessa época, queria uma renovação da música brasileira, a qual considerávamos muito atrasada em relação ao que se fazia no mundo. A linguagem musical tinha tomado outros caminhos, tinha se desenvolvido muito, novos materiais para compor música eletrônica, música concreta, a idéia da música aleatória, do teatro musical, enfim, uma série de coisas das quais o Brasil estava por fora com aquela sua proposta nacionalista que vinha ainda do tempo de Mário de Andrade, um grande doutrinador. Tudo bem, aquilo foi válido, mas para o tempo dele. Só que os tempos eram outros e nós queríamos uma renovação. Foi por isso que nós lançamos uma proposta nova através de um manifesto. Porém, aquilo foi a bandeira de um começo de um tipo de luta. Afinal, decorridos 40 anos, nós nos perguntamos se aquilo valeu. Eu acho que sim, sobretudo pelo incentivo que nós mesmos nos demos, pela luta de fazer uma música diferente e tudo o mais. Só que tudo caduca, tudo tem o seu tempo e o manifesto também. Logo, ele não tem, hoje, importância nenhuma. O que vale é o que aquilo nos impulsionou a fazer como música.
E sobre a produção desse grupo ao qual você pertencia? Nós conseguimos ter uma música brasileira de qualidade?
Sem a menor dúvida. O Brasil esteve muito atrelado à música francesa e russa no tempo de Villa-Lobos e do próprio Camargo Guarnieri. O grupo do Koellreuter trouxe para o Brasil técnicas alemãs de composição, uma nova visão da música que o Brasil não conhecia.
O senhor se refere ao dodecafonismo?
Ele principalmente. Embora ninguém do nosso grupo tivesse contato com Koellreuter - não éramos seus alunos e nem estávamos propriamente retomando a sua bandeira - o que havia em comum era a idéia de renovação, a gente partiu de uma linha alemã de música, que predominou, no mundo todo, durante uns 30 anos. Nós todos trouxemos essa inovação para a música brasileira, sem dúvida nenhuma. Houve muita polêmica na época, muita discussão, mas foi justamente disso que foram surgindo novos adeptos, novas gerações de músicos que foram direta ou indiretamente influenciados por esse início que demos de uma renovação. Começaram a surgir compositores no Rio, na Bahia e em outros lugares fazendo a mesma coisa. Ou seja, sem dúvida, nós demos o chute inicial.
Ao contrário de Rogério Duprat, que teve uma ligação com a música popular brasileira, o senhor nunca se encantou por ela, não?
Não por um lado. Aliás, em recentes entrevistas eu venho dizendo que me sinto três ou mais compositores - o que não significa que eu tenha três ou mais estilos - mas, enfim, minha música, às vezes, beira o popular. Quando faço canções, a minha música é quase popular. Mas, também, não é. Nesse ponto eu diria que eu sou bem como Villa-Lobos, a natureza brasileira, latino-americana, de abertura, muitos caminhos. O Villa-Lobos também parece explicitamente popular, mas se você olha bem não é. Assim é comigo. Eu diria que tenho essa aproximação com a música popular mesmo porque eu gosto muito, embora a minha música de formação na área popular seja a norte-americana, infelizmente. Eu fui formado pelo rádio - como no filme de Woody Allen - que eu ouvia e me deliciava. Tem até um livro que eu escrevi, que foi minha tese de doutorado na USP, chamado Uma Odisséia Musical. Numa boa parte desse livro eu trato desse assunto, da minha ligação com o popular.
Sobre a época em que foi lançado o manifesto, você falou uma coisa interessante sobre o nacionalismo vindo do Mário de Andrade. Como era essa questão da abertura para o mundo quando o País estava voltado para si próprio?
É preciso que se compreenda que esse nacionalismo foi um movimento de vanguarda em sua época. Ele surge no século 19, em pleno Romantismo, como uma bandeira de modernidade em países como a Rússia e a Polônia, que não tinham a mesma tradição da Alemanha e da França e viram no nacionalismo uma maneira de ter uma presença na música. E isso se projeta no século 20, nas primeiras décadas. Se pegar o Stravinsky, por exemplo, você vê que, como o Villa-Lobos, ele tem um resíduo forte de nacionalismo em sua música. Chopin fez música com base no nacional. Ou seja, esse nacionalismo das primeiras décadas no Brasil, com o próprio Mário de Andrade, era uma bandeira modernista. Só que tudo muda, se transforma, até que deixa de ser. E aqui no Brasil foi muito forte, coincidiu ainda com aquelas discussões entre um partido político e o manifesto de Zadanov, um teórico soviético que foi muito discutido nos anos de 1950. E o Camargo Guarnieri foi fundo nisso, escreveu aquela carta aberta contra o dodecafonismo, contra o Koellreuter.
E como era a reação da época ao manifesto?
A música brasileira era muito marcada pelos nacionalistas. Nós é que éramos contra. Sem falar que o próprio Partidão, por causa dessa discussão do Zadanov, deu força a ele, e compositores que começaram a fazer dodecafonismo, como Santoro, por exemplo, largaram para seguir o partido. Isso deu muita força para o nacionalismo num momento em que, no mundo, ninguém estava ligando mais para isso, só o Brasil. Logo, nós tomamos essa bandeira, para dizer que nós podíamos continuar na esquerda, mas não precisávamos, por isso, ficar fazendo música inspirada no folclore. Há outras coisas a fazer. O próprio nacionalismo de Villa-Lobos é apenas um aspecto da música dele.
Poder-se-ia dizer, então, que o Partidão atrasou o desenvolvimento da música brasileira?
Nesse aspecto eu acho que sim, houve uma refreada. Já tinha começado uma certa atualização com a geração do Cláudio Santoro, Guerra Peixe, da Eunice Catunda. Isso era uma renovação que foi truncada pelo Partidão. Eram todos comunistas, e nós também. Eu me lembro que fazia música para as gavetas, mas que eram músicas cosmopolitas - burguesas, como dizia o Partidão. Até que deixei de fazê-las. Fiz muita música nacionalista nessa época.
E o senhor gostava dessa música nacionalista?
Eu tenho até um certo cuidado para contar isso. Alguns compositores, como o Rogério e outros, podem até ter jogado fora. Eu, que sempre tive posições, mas nunca fui radical, não joguei. Eram porcarias, mas eu tinha feito, não adianta jogar fora. Então guardei como recordação. Com o tempo eu passei a ser professor na USP, etc., e os colegas meus, sobretudo o pianista José Eduardo Martins, começaram a pesquisar minha vida. Nós conversávamos muito e José Eduardo quis ver essas músicas antigas. Eu acabei mostrando para ele e não é que ele tocou todas?
E como te soaram?
Pós-modernas. Curiosamente, essa produção minha dessa época está agradando muito como algo com um certo ar de pós-modernismo, que parece ter voltado. Um interesse por coisas étnicas etc., que ela tem. Mês de março, foi editada na Bélgica a minha Sonatinha Mozartiana, uma paródia que fiz de Mozart com ritmos brasileiros. Há um pianista norte-americano que a toca nos EUA, no Caribe, já gravou e tudo o mais. E veja você que eu as compus em 1953. Dia desses recebi um telefonema de uma professora da Universidade do Texas que tinha ouvido esse pianista e tinha ficado muito intrigada com a peça. Ela queria saber como obter a partitura. Eu acabei mandando uma cópia do manuscrito para ela. E há outras. Tem um ponteio - essa já de uma fase bem nacionalista mesmo - que eu fiz para orquestra. Na época eu não era conhecido e não tinha nem para quem mostrar, participei de um concurso, mas não ganhei. Ela ficou guardada. Recentemente, um maestro aqui de Santos quis ver essa peça e tocou. E não é que ela soou bem? Eu, que sempre pensei em algum dia fazer uma revisão dela, acabei descobrindo que não há nada a rever.