Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Literatura
Vinicius de Moraes

Nova edição do projeto Brasil da Bossa promove shows, intervenções lítero-musicais e exposição fotográfica em homenagem ao poeta

Não há dúvidas de que o carioca Vinicius de Moraes, que completaria 90 anos em outubro de 2003, seja um dos artistas mais completos da história cultural brasileira. Dando largada para as diversas comemorações que acontecerão durante o ano em sua homenagem, o Sesc Vila Mariana promoverá, a partir de 20 de maio, o projeto Brasil da Bossa tendo essa figura de múltiplas habilidades artísticas como tema.
O evento contará com uma exposição fotográfica de seu filho Pedro de Moraes, destacando aspectos pouco conhecidos da vida do poeta; intervenções lítero-musicais, com leituras de poemas e apresentações musicais; o espetáculo Vinicius do Amor Demais, com a participação de Miúcha, Renato Braz e o sexteto de Maurício Carrilho, além dos atores Antônio Caloni e Cássia Kiss fazendo leituras de poesias; e, fechando a programação, a apresentação do parceiro Toquinho.
Ao longo de sua carreira, Vinicius foi teatrólogo, compositor, poeta, crítico de cinema e intérprete, além de diplomata. A qualidade e a extensão de seu legado é notável. Na literatura, a Companhia das Letras, que edita sua obra desde 1991, contabiliza cerca de 300 mil livros vendidos em apenas 12 anos. Somente o infantil A Arca de Noé, que cativa sucessivas gerações desde 1970, já ultrapassou a casa dos 150 mil exemplares.
No terreno musical não é diferente. O Poetinha tem quase 500 canções compostas, entre elas a música brasileira mais executada no mundo: Garota de Ipanema, parceria com Tom Jobim. Foi ao lado dele, por sinal, que Vinicius compôs Chega de Saudade, um dos marcos da Bossa Nova.
As parcerias com nomes importantes da música brasileira, sem dúvida, foram decisivas para a mudança de rumos de sua carreira. De poeta internacionalmente reconhecido e diplomata promissor, Vinicius enveredava, num caminho com poucos retornos, por um projeto musical que se mostraria decisivo para a cultura nacional.

De poeta a músico
"A grande novidade do século 20 para a cultura brasileira foi ter encontrado a canção popular como uma marca pessoal do País", defende o professor titular de Lingüística da USP, compositor e autor de diversos estudos sobre canção popular, Luiz Tatit. Segundo ele, Vinicius acabou personificando um processo que aconteceu amplamente no Brasil. "A partir da Bossa Nova, o interesse pela literatura acabou migrando para a canção popular. É um momento de descoberta de um projeto musical muito próprio de nossa realidade. E Vinicius, indo da poesia à música, acabou alegorizando essa passagem."
Filha de Sérgio Buarque de Holanda, amigo de longa data de Vinicius, a cantora Miúcha, que foi parceira de palco em shows marcantes como o que reuniu Tom, Vinicius e Toquinho entre 1977 e 1978, diz ter acompanhado de perto essa fase de transição na vida do Poetinha. "Lembro-me de gente falando que ele deveria criar um pseudônimo para que não se associasse a obra do poeta e diplomata com a do 'compositor de sambinhas'", recorda. "Mas Vinicius se recusava, argumentando que tudo era cultura popular, que não tinha o que esconder. E ele defendeu isso mesmo quando foi demitido do Itamaraty, nos primeiros anos do regime militar."
Curiosamente, o mesmo Itamaraty que excluiu de seus quadros Vinicius convidou Miúcha para uma excursão aos países de língua portuguesa este ano, tendo como tema Vinicius de Moraes. "Acho que o tempo mostrou que ele era, através de sua obra, o maior embaixador do Brasil", afirma.

As parcerias
É público e notório que a primeira canção de Vinicius é o foxtrote Loura ou Morena, composta em 1932 em parceria com o amigo Haroldo Tapajós. A música seria gravada naquele mesmo ano por Haroldo e seu irmão Paulo, o que revela um dado pouco comentado: a estréia de Vinicius na música popular, ao contrário do que muitos pensam, se deu quase simultaneamente à estréia literária, já que seu primeiro poema publicado data daquele ano.
No entanto, depois de algumas outras investidas musicais com os irmãos Tapajós, Vinicius só viria a compor novamente muito tempo depois. As missões diplomáticas da promissora carreira no Itamaraty o mantiveram longe do País e das composições durante anos. Porém sua breve volta, em 1956, quando montou a peça Orfeu da Conceição, acabou propiciando o encontro com Tom Jobim. Tinha início a parceria mais fecunda da Bossa Nova.
"Vinicius soube traduzir perfeitamente o espírito da Bossa", afirma Tatit. "Na mesma medida que Tom tirava todo o excesso harmônico de suas referências jazzísticas em prol de um projeto de música popular, Vinicius teve a sensibilidade de fazer o mesmo nas letras, suprimindo qualquer resquício de eruditismo", argumenta. "Ele foi uma peça chave nesse movimento, que era de decantação, de extração dos elementos fundamentais da canção."
Outro parceiro importante na época da Bossa Nova foi Carlos Lyra, com quem compôs, entre outras, A Primavera e Sabe Você, além de canções românticas memoráveis como Minha Namorada. Outra parceria que renderia clássicos da música nacional foi com Baden Powel, que acabou promovendo uma aproximação entre Vinicius e as tradições negras do País, numa experiência musical que se tornou referência indispensável aos músicos brasileiros. Entre as composições, os antológicos Canto de Ossanha, Canto de Xangô e Samba de Oxóssi, além de Berimbau e Samba em Prelúdio.

Parceiro final
A parceria mais intensa e duradoura, e não por isso menos criticada, foi com Toquinho. Foram nove discos lançados em pouco mais de dez anos de apresentações e composições. A seu lado, o Poetinha viria morrer, numa manhã de julho de 1980, em decorrência de problemas circulatórios. Toquinho relembra que quando começaram a trabalhar juntos, em 1970, Vinicius vivia uma fase emocionalmente difícil. "Ele havia sido exonerado um ano antes do Itamaraty, vários talentos despontavam na música brasileira, com indícios de ofuscá-lo, e saía de um casamento conturbado", explica. "Ele tinha sede de uma liberdade de ação e expressão que o colocasse na vida, livre das presilhas contra as quais sempre lutou. E acabou encontrando em mim o parceiro ideal: jovem, muita música no baú e com muita disposição para o trabalho." Da relação quase paternal que se estabeleceu, brotaram canções extremamente líricas como Tarde em Itapuã, Regra Três e A Tonga da Mironga do Kabuletê.
Sem dúvida, as uniões com Tom, Baden, Carlinhos Lyra e Toquinho foram as mais importantes da trajetória do letrista. Porém, como afirma Miúcha, "Vinicius era extremamente galinha. Compôs com todo o mundo", brinca, com um tanto de razão. A lista de parceiros é extensa e gerou preciosidades para a música nacional. Vai do maestro Cláudio Santoro (13 canções de câmara) a Edu Lobo (Arrastão); de Ary Barroso (Rancho das Namoradas) a Chico Buarque (Valsinha). Definitivamente, o Poetinha parecia entender muito de música, e não apenas como letrista.
Miúcha destaca uma faceta pouco conhecida de Vinicius: a de autor de músicas. "A parte musical de Vinicius foi relegada a um segundo plano. Muita gente não sabe que Serenata do Adeus, por exemplo, foi composta inteiramente por ele", afirma. Outra preciosidade de autoria exclusivamente de Vinicius é, atualmente, tema de abertura da novela Mulheres Apaixonadas, da TV Globo, na interpretação de Miúcha e Daniel Jobim: Pela Luz dos Olhos Teus. O próximo disco da cantora, que deve ser lançado no segundo semestre desse ano, pretende colocar em evidência essa obra. "Tenho pesquisado bastante e já encontrei duas inéditas", conta. "Mas deve ter muito mais. Um compositor que faz obras da sofisticação de Serenata de Adeus não pode ter feito simplesmente uma coisa aqui, outra ali."


Poeta Plural - Em artigo exclusivo, José Castello apresenta cinco razões que nos impedem de deixar de lado a contribuição literária de Vinicius de Moraes

Por que ler Vinicius de Moraes hoje? Um primeiro motivo, que configura, sobretudo, uma questão de justiça, nos leva a ler Vinicius para desafiar a imagem oficial que dele nos ficou. Apesar do relançamento de sua obra completa pela Companhia das Letras, e apesar das biografias e estudos que apareceram em torno dela, Vinicius de Moraes continua a ser visto como um simpático showman, meio sedutor, meio canastrão, sempre agarrado a seu copo de uísque, a contar piadas e fazer irreverências. Um bufão moderno, a adocicar o palco do showbiz. Na melhor das hipóteses, é tido como um grande músico, e não como um poeta. Por culpa dessa imagem mutilada, sempre que se quer falar a sério a respeito da poesia brasileira do século 20, cita-se Drummond, Cabral, Cecília, Bandeira, Schmidt, mas só muito depois vem a recordação de Vinicius de Moraes.
Um segundo motivo é o apego feroz que a poesia de Vinicius tem para com a realidade. Desde que enveredou pelos rumos formalistas dos anos 1960, a poesia brasileira, afora grandes exceções (Manoel de Barros, Hilda Hilst, Adélia Prado, Fabrício Carpinejar, entre eles) entrou numa rota de esterilização, de esvaziamento do sentido, cedendo lugar aos jogos de palavras, às citações literárias, às paródias e às peripécias visuais. Ler Vinicius de Moraes, hoje, reler poemas como as Cinco Elegias, Pátria Minha e a Balada das Meninas de Bicicleta é reatar contato com uma poesia fortemente impregnada de realidade, para a qual o mundo é sempre a origem e também o destino da literatura. Tanto que Vinicius fazia a poesia transbordar dos livros para se alastrar pela vida, o cotidiano, as mulheres que amou, as cidades em que viveu (Rio, Salvador, Buenos Aires, Paris, Los Angeles). Sem esse contato obsessivo com o real, Vinicius de Moraes não teria sido o mesmo.
Terceiro motivo: ler Vinicius é reencontrar-se com o lirismo, outro elemento perdido na poesia que o sucedeu. Desde que João Cabral, contrapondo-se aos maus poetas, herdeiros do parnasianismo e da retórica "de deputado", como dizia, desde que ele declarou que era preciso "despoetizar a poesia" (tarefa que realizou com grande competência), Vinicius de Moraes, o poeta da paixão, passou a ser visto, enganosamente, como um cantador solitário, para quem a poesia não conseguiu ultrapassar um laço com o subjetivo e, para ficar ainda nas palavras de Cabral, com a "dor de peito". Ocorre que, em vez de fazer do lirismo um obstáculo, Vinicius dele fez o próprio motor da atividade poética. Poesia centrada no Eu, numa tradição que vem do Romantismo, e que depois pareceu perdida ou mesmo morta, ela veio como que ressuscitar o espírito dos poetas, religando a poesia a tudo de humano que, em nome da teoria e da técnica, os poetas tinham deixado para trás.
Quarto motivo: Vinicius fez uma poesia que valoriza, antes de tudo, o cotidiano e tudo aquilo que a ele automaticamente se associa: as miudezas do dia-a-dia, os pequenos sentimentos e as pequenas inquietações, os ditos de circunstância, as banalidades da rotina humana, a vida corriqueira. Nos anos 1970, quando ele ainda estava vivo, os poetas chamados "marginais" esboçaram uma reação ao reinado esteticista, e Vinicius chegou até, durante um curto tempo, a aderir a esse movimento - bastando lembrar que seus últimos livros, lançados na temporada em que viveu em Salvador e esteve casado com Gessy Gesse, foram livretos improvisados, de impressão precária e tiragens restritas, produzidos e vendidos artesanalmente, como mandava a norma marginal. Livros frágeis e circunstanciais, que hoje estão praticamente perdidos.
Quinto motivo para ler Vinicius: praticante de todos os gêneros, do soneto clássico à elegia em versos longos e temas dolorosos, como a Elegia Desesperada, do formalismo modernista como em Azul e Branco, ao verso rápido das baladas e quadrinhas, Vinicius pôs em prática uma concepção pluralista da literatura, sem gêneros discriminados, sem temas banidos, sem estigmas ou proibições, abrindo caminho, assim, para uma poesia livre e mutável, em que todos os gêneros e todos os temas merecem respeito e têm o seu lugar. Pelo que guarda de vacilante e contraditória, a obra poética de Vinicius provoca, até hoje, estranheza, ou incômodo - fato que, na verdade, fala a seu favor. Extremamente associada a sua vida pessoal, ela a acompanha de maneira íntima, da fase mística e clássica da juventude, às experiências mais libertárias da maturidade. Em Vinicius, tudo se deu ao contrário: o jovem foi recatado e conservador, enquanto o homem adulto tornou-se libertário e inquieto. Daí, provavelmente, o grau de perturbação que, ainda hoje, a poesia de Vinicius produz em seus leitores. Mas nunca é tarde para reencontrá-la e o certo é que hoje, em tempos vazios e inóspitos, ela pode nos fazer muito bem.

José Castello é jornalista e autor de O Poeta da Paixão, uma Biografia de Vinicius de Moraes (Cia. das Letras, 1993) e Vinicius de Moraes - Uma Geografia Poética
(Relume-Dumará/Rioarte, 1999)


O último dos parceiros - Em entrevista exclusiva, Toquinho fala sobre o início da parceria com Vinicius, os momentos finais que viveu com ele e afirma que o maior mérito de sua obra é a "sofisticada simplicidade da poesia".

Como se deu sua aproximação com Vinicius?
No período em que passei sete meses na Itália ao lado de Chico Buarque, em 1969, fui convidado pelo Sergio Bardotti para participar da gravação de um LP em homenagem a Vinicius de Moraes. Meu violão fazia no disco um alinhavo musical entre as poesias e as músicas que eram faladas e cantadas. Vinicius nem sabia disso. Quando ouviu o disco, gostou muito do meu desempenho. Por coincidência, precisava de um violonista para uma temporada de shows na Argentina e me convidou. Era junho de 1970.

A parceria entre vocês resgatava na história da música brasileira - revolucionada pela agitação cultural dos anos de 1970 - o componente mais lírico da canção: menos contestador, mais emotivo, buscando um caminho um tanto esquecido. Havia por parte de Vinicius uma visão definida sobre essa maneira de conceber a música?
Nós passamos a fazer uma música simples e melodiosa, agradável e de qualidade. Música que o público tinha vontade de ouvir, depois de tanta confusão melódica que sacrificava os ouvidos. Não tivemos medo de usar o lugar-comum, o lirismo, ao mesmo tempo que os temas contestavam com sutileza. Falamos com a graça e a elegância que o público queria.

Apesar do grande sucesso da parceria, essa fase da carreira de Vinicius foi vista como menos importante por parte da crítica. Qual a sua opinião a respeito? Como Vinicius reagia a isso?
Muita gente não se conformava com a vitalidade de Vinicius. Depois de ter feito tanto sucesso com Jobim, Lyra e Baden, encontrar entusiasmo e disposição para um conteúdo musical tão grande quanto o nosso. E de boa qualidade. Essas pessoas desejavam vê-lo esquecido e criticavam nosso trabalho. Mas o tempo julgou melhor e mantém os sucessos até hoje. E nós mandávamos todos para "A tonga da mironga do kabuletê".

Uma das críticas à obra musical de Vinicius é que ele seria um poeta que se serviu da música, e não um letrista a seu serviço. Como você vê essa questão? Por que, na sua opinião, Vinicius resolveu partir para a música?
O que de melhor Vinicius fez na vida foi sua poesia. Ele é realmente O Poeta! E teve coragem e talento para usar essa poesia na música. Porque também era um grande músico, usando com eficiência o ouvido interno. Salvou várias músicas nossas quando me alertava: "Você acabou de passar por uma música...", enquanto eu improvisava excessivamente no violão. Então eu voltava à melodia e saía a canção. Vinicius só fez poesia. A dos livros e a da música têm a mesma qualidade. E ele sabia disso. Nem todo poeta tem a coragem de se expor assim.

Gostaria que você contasse como foram os momentos finais de Vinicius. Você considera que ele estava satisfeito com o status que alcançou na história da cultura brasileira?
Vinicius começou a morrer quando teve um problema circulatório, em 1979. Ele não concebia para si uma deficiência física capaz de cercear sua capacidade sedutora. Convivi com os últimos momentos de sua vida e passei a me sentir privilegiado por isso. Encontrei-o na banheira, já nos estertores. Tínhamos ficado juntos até as quatro da manhã, conversando, tocando e cantando, só nós dois. Ele viveu como poeta, sempre, impossível não ter carregado com ele alguma mágoa. Mas, com certeza, levou muito mais alegrias.

Na sua opinião, qual o maior mérito da obra musical de Vinicius?
O grande mérito de sua obra é a sofisticada simplicidade de sua poesia. Insuperável! Em todas as fases da carreira.