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Olhos abertos para o sono

Os mistérios deste estado de inconsciência temporária são revelados pelas oficinas e palestras que compõem o De Somno - Sobre o Sono e seus Mistérios, evento realizado pelo Sesc Consolação

Para algumas civilizações ancestrais, o sono era considerado irmão da morte, enquanto que religiões antigas lhe conferiram divindades e cultos. Já a literatura encontrou nele inspiração para as mais fabulosas histórias. Desde A Bela Adormecida até a Julieta de William Shakespeare, que engana a todos dormindo, fazendo parecer que está morta. Mitos e lendas à parte, o que persiste é o enigma do sono. Por que dormimos? Essas perguntas mantiveram muitos médicos e cientistas acordados na busca de respostas. Até que os incríveis avanços da segunda metade do século 20, famosa por transformar a humanidade mais que todo o século anterior, levaram luz a mais esse obscuro mistério. Em 1979, cientistas norte-americanos se reuniram e colocaram o sono em pauta, organizando todo o seu conhecimento a respeito e dando início a uma das grandes revoluções da Medicina. Foi o ano de surgimento da polissonografia. O exame avalia, enquanto o indivíduo dorme, toda a sua parte neurofisiológica, o que levou à identificação dos estágios do sono conhecidos hoje (ver box). Além disso, ela monitora a parte respiratória, cardíaca e a oxigenação do sangue. Com o avanço dos testes, a polissonografia passou a ser realizada, ainda, de acordo com as queixas do paciente. Pode-se somar a ela avaliações do tônus muscular e parâmetros que medem o grau de eficiência na troca de oxigênio por gás carbônico. Tudo com o auxílio de eletrodos colados ao corpo e que revelam os gráficos do sono. "O surgimento da polissonografia foi uma revolução", começa explicando o Dr. Sérgio Tufik, professor titular do Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenador do Instituto do Sono, também em São Paulo. "Foi a primeira vez que alguns profissionais se reuniram para discutir o que a gente chama de classificação dos distúrbios de sono." Seriam eles a insônia, a apnéia (distúrbio de ordem respiratória), a narcolepsia (sonolência diurna excessiva), o bruxismo (ranger de dentes), a síndrome das pernas inquietas (necessidade involuntária de movimentar os membros inferiores) e os movimentos periódicos das pernas (extensão rítmica dos membros inferiores seguida de uma dorsoflexão do tornozelo).

Outra revolução
A apnéia, fenômeno no qual a pessoa pára de respirar durante a noite, é considerada por Dr. Tufik como a segunda grande revolução nessa área. "Foi um acontecimento", continua o médico. "A mídia fez um tremendo estardalhaço." O mesmo aconteceu com a descoberta das causas e conseqüências do ronco. "Antigamente, o ronco era só galhofa. Mas aí se descobriu que, quando a pessoa ronca, provavelmente ela está com pouco oxigênio no sangue. Isso bombardeia o coração, aumentando as chances de hipertensão, o que, por sua vez, pode levar a problemas de arritmia e falência cardíaca." Mesmo a insônia, o mais conhecido desses distúrbios, ganhou atenção especial. Afinal, por meio dos novos exames descobriu-se que, muitas vezes, o indivíduo acordava no meio da noite, sem conseguir voltar a dormir, mais por problemas de ordem física que psicológica. "Pode ser que essa pessoa acorde porque as pernas delas pulem à noite, que é o acontece com quem tem síndrome das pernas inquietas; ou pode ser que ela tenha apnéia, ou qualquer outro distúrbio."
Buscando esclarecer a população acerca destes e de outros fenômenos relacionados ao sono, o Sesc Consolação realiza este mês, por meio de seu Núcleo Multidisciplinar de Saúde Corporal, o evento De Somno - Sobre o Sono e seus Mistérios, uma parceria do Sesc São Paulo com o Instituto do Sono e o projeto Fapesp/Cepid (Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão). Trata-se de uma combinação de palestras, vivências, ambientação e intervenções artísticas que se propõe a explorar o universo do sono, sua natureza, função e, claro, seus distúrbios. Nas palestras, ministradas por médicos pesquisadores do próprio IS, serão abordadas as relações entre o sono e a atividade física, o envelhecimento, a infância, o sonho e a aprendizagem. Além de oficinas de auto-massagem e consciência corporal.

Influências externas
Fatores sociais, como horários de trabalho e escola, e o famigerado estresse da vida moderna também podem interferir no sistema biológico do indivíduo, prejudicando o sono. "O trabalho noturno, por exemplo, desregula bastante as pessoas", explica o médico e educador físico Marco Túlio de Mello, também pesquisador do Instituto do Sono. "Muitas vezes, elas trabalham em horários que vão contra o padrão habitual, que é aquele de sermos mais ativos no ciclo claro. Além disso, às vezes, essas pessoas não têm a liberdade de dormir durante o dia." Segundo Dr. Marco, mesmo que isso fosse plenamente possível a literatura médica mostra que o sono diurno não recupera tanto quanto o noturno. "Nós somos indivíduos programados para dormir à noite. Trabalhadores em turno sempre têm um grande prejuízo", afirma.
Mas as inovações trazidas pelas pesquisas no campo da Medicina do sono têm encontrado saídas para essas situações inevitáveis. Empresas que trabalham em sistema de turnos, como fábricas, empresas de ônibus e transportadoras, começam a considerar um trabalho em conjunto com profissionais do sono para minimizar os danos, que muitas vezes atingem toda a sociedade. "O que nós fazemos é regular a escala de trabalho dessas pessoas", retoma Dr. Marco. "Existem os indivíduos chamados matutinos, que são aqueles biologicamente predispostos a dormirem cedo e acordarem cedo; os vespertinos, aqueles que dormem tarde e acordam tarde; e os indiferentes, que se adaptam com facilidade às duas situações. Nosso trabalho é redirecionar cada indivíduo para uma escala de trabalho compatível com seu padrão biológico, levando em consideração, ainda, que existem os curto-dormidores, que dormem menos de seis horas e meia; e os longo-dormidores, que são aqueles que precisam de mais de oito horas e meia de sono."

O sono e as crianças
Contudo, no balé do sono, não são os adultos e os adolescentes que "perdem alguns passos". Ao contrário do que se pensa, sono de criança nem todas as vezes é certeza de tranqüilidade. Por menores que sejam as preocupações da infância, e por menos que o temido estresse as alcance, outros distúrbios, alguns típicos de sua faixa etária, podem prejudicar suas noites de descanso. A já citada apnéia aparece como um dos problemas mais freqüentes. Nos bebês, ela pode ser causada por uma má formação crânio-facial e no adolescente essa obstrução pode vir como conseqüência da obesidade. "Nós atendemos muitas crianças que passaram pela otorrinopediatria", começa explicando a médica neuropediatra Dra. Márcia Pradella-Hallinam, também da equipe de pesquisadores do Instituto do Sono. "São crianças com problemas de ronco, problemas de respiração à noite e crianças que vêm da neurologia - por suspeita de epilepsia durante o sono, um problema que não é tão freqüente, mas que acontece especialmente em faixas etárias mais baixas." Outros problemas que levam as crianças ao Instituto são o sonambulismo e o terror noturno. "Esses distúrbios são chamados de parassonias", volta a pediatra. "Eles variam de acordo com a faixa etária, mas o que a gente percebe no dia-a-dia é que o mais comum é mesmo o sonambulismo. Ele acontece na criança em fase de crescimento, é um problema associado ao desenvolvimento. Por isso, na maioria das vezes, não há necessidade de tratar, já que uma vez terminado o crescimento, isso vai desaparecer. É a mesma coisa com o terror noturno que, embora seja mais exuberante - ela acorda aos berros, apavorada - também é considerado um distúrbio benigno." A médica explica que tanto no sonambulismo quanto no terror noturno o que acontece é o que os médicos chamam de despertar fisiológico, comum a todos os seres humanos e que normalmente deve durar cerca de 15 segundos. No entanto, algumas crianças "estacionam" nesse despertar. "É como se o cérebro 'misturasse' as consciências do acordado e do dormindo", esclarece a médica. "Só que para o organismo, o indivíduo está dormindo, por isso a criança nunca lembra do que aconteceu. Além de não apresentar nenhuma conseqüência disso." Diferentemente da apnéia: "Neste caso, a criança está naquele sono profundo, tem uma apnéia e dá uma acordadinha - ou seja, superficializa o sono, não chegando a acordar de fato -, e volta a dormir. No entanto, ela, muitas vezes, não continua dormindo naquele sono em que estava, indo para o sono mais leve. Isso faz com que ela mude de estágio de sono com muita freqüência e essa mudança rápida de estágios, aliada ao fato de ter muito desses pequenos despertares, fará, no dia seguinte, com que ela tenha sintomas de mau humor, baixo rendimento na escola e problemas de concentração", exemplifica Dra. Márcia. Além disso, é nessa fase de sono profundo, prejudicada por esse distúrbio respiratório, que o organismo solta grandes quantidades de hormônio de crescimento. "Se a criança tiver um sono picado nesse momento, o hormônio também é liberado de maneira fragmentada, não apresentando aquele pico consistente que faz com que a criança cresça. Então, se ela não for tratada e ficar muito tempo com esse problema, pode simplesmente não crescer", alerta a pediatra.


Higiene do sono

É mais do que provado que, assim como atividade física orientada e alimentação adequada, uma boa noite de sono está diretamente associada à qualidade de vida. "Se a pessoa não consegue obter satisfação com seu sono, ela não acorda renovada", lembra o Dr. Sérgio Tufik. "Não tem dia em que a gente acorda péssimo, se arrasta até o banheiro? Por outro lado, não há dias em que acordamos à toda, tocando corneta e felizes da vida? Então. Uma boa noite de sono resulta num dia maravilhoso. E vice-versa. Um dia muito estressante resulta numa noite ruim." Dr. Tufik alerta que o perigo está em acabarmos entrando numa espécie de círculo vicioso: dia ruim, sono de má qualidade; conseqüentemente, outro dia ruim. E assim, sucessivamente. Para não cair nessa, aqui vão alguns cuidados que podem ser tomados para garantir dias e noite saudáveis. Bons sonhos.
oProcure evitar o uso de produtos contendo álcool, tabaco ou cafeína antes de deitar. Além de serem estimulantes, alguns deles, como o álcool, bloqueiam justamente a fase do sono mais reparadora. Refrigerantes também não vale, pois contém cafeína.
oExercícios físicos próximos da hora de deitar também não são indicados, especialmente para aquelas pessoas que não têm o hábito de se exercitar. A atividade física eleva muito a temperatura do corpo, podendo provocar insônia.
oTelevisão no quarto também é complicado, principalmente para quem já tem problema para dormir. Aqueles filmes de ação, suspense ou terror, embora sejam pura ficção e estejam acontecendo na telinha, "preparam" o corpo para uma reação de alerta, o oposto do estado ideal que o organismo precisa para relaxar.
oProcure associar sempre a cama ao sono, evitando usá-la para estudar, trabalhar ou comer.
oQuarto muito iluminado também não é o ideal. A melatonina, hormônio que, entre outras funções, induz ao sono, só é produzida no escuro.
oO banho em temperatura agradável, nem muito quente nem muito frio, também ajuda.
oJá o famoso chazinho de erva cidreira acalma mais pelo simpático ritual de preparar algo quente para tomar à noite que por suas propriedades calmantes. Mas, mal não faz.
Obs.: Segundo o Dr. Sérgio Tufik, todas essas "dicas" valem mesmo para quem tem problemas de sono. O médico afirma que nada rouba uma boa noite de descanso daqueles que, física, psicológica e biologicamente, têm passe livre para o "mundo dos sonhos". Mas, na realidade, não custa nada garantir uma boa noite.

Melatonina - O hormônio da escuridão
A melatonina é liberada à noite, enquanto dormimos. É um hormônio produzido pela glândula pineal, situada entre os dois hemisférios cerebrais. Em humanos é do tamanho de uma ervilha, e sua forma lembra a pinha de um pinheiro (do inglês pine vem o nome pineal). É considerada hormônio da escuridão, por ser liberada no escuro e inibida pela presença de luz. Embora tenha sido descoberta em 1958, a melatonina é considerada jovem pela ciência. Pesquisa realizada na Unifesp/ Instituto do Sono e coordenada pela Profa. Dra. Lu Seabra, psicóloga e pesquisadora do Instituto dos Sono, em um estudo sobre a toxicologia da melatonina, demonstrou que, em 28 voluntários sadios que tomaram diariamente 10 mg de melatonina, não foram observados efeitos colaterais que comprometessem seu uso clínico, nesta dose. "Algumas patologias apresentam alterações nos níveis de melatonina", explica Dra. Seabra. "O que sugere seu envolvimento na gênese de algumas doenças." Segundo a psicóloga e pesquisadora, vários estudos indicam o uso de melatonina para problemas ligados ou não diretamente ao sono: do tratamento da insônia aos distúrbios do ritmo biológico (jet lag - mudança de fuso horário), passando pelo avanço e atraso de fase (alterações no horário de acordar e dormir); e até como importante coadjuvante no tratamento do câncer.

Dança das ondas - Entenda um pouco sobre a chamada arquitetura do sono
No sono, são identificados dois estados distintos: o sono REM e o não-REM. Esse último é o chamado sono de ondas lentas e tem quatro fases: 1,2,3 e 4. As duas primeiras são fases superficiais, pouco reparadoras, e servem de transição para as demais. Já as duas últimas são representadas nos gráficos da polissonografia na forma de uma onda enorme e de uma freqüência muito baixa. Isso indica um sono bem profundo, também chamado de sono delta, em virtude de sua forma. Já o sono REM é conhecido como o sono dos sonhos: os olhos se movimentam, há a atonia (relaxamento) muscular, a memória é processada, perde-se a sensibilidade à temperatura e, claro, é quando sonhamos. "Esse estado é considerado um momento muito especial da noite", explica Dr. Sérgio Tufik. "Quando dormimos, temos muito mais REM na segunda metade do sono. Por isso a gente acorda tanto sonhando. E nós sonhamos todas as noites. O que ocorre é que, às vezes, não lembramos nossos sonhos." Ainda segundo Dr. Tufik, dormir é uma "troca de consciência". "Uma consciência se retira e entra a outra, que é a dos sonhos. Então, de repente, você acorda e as duas se vêem. E você quer saber do seu sonho, é como se tivesse dois 'eus' dentro de você. Nem sempre você consegue, ele some. Ou, às vezes, o sonho é tão emocional, tão forte, que você pensa que foi realidade."