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O reverso da loucura

Espetáculo teatral dialoga com a figura e a obra de Arthur Bispo do Rosário, o homem que era tido como louco enquanto transformava sua vida em arte

Arthur Bispo do Rosário nasceu em Japaratuba, Sergipe, em 16 de março de 1911. Ao menos é essa a data que consta nos registros da Light do Rio de Janeiro, onde trabalhou de 1933 a 1937. No entanto, segundo a Marinha de Guerra do Brasil, onde Bispo serviu de 1925 a 1933, a data de seu nascimento seria 14 de maio de 1909. Porém, a diferença de dois anos é absolutamente irrelevante na vida do homem que personificou a fé - em seu sentido mais amplo -, a obstinação e a certeza de atos. Por mais paradoxal que isso seja, uma vez que aos 30 anos (ou seria 28?) Bispo é internado como esquizofrênico-paranóico na Colônia Julio Moreira, no Rio de Janeiro, cidade para onde se mudara em 1925. "Ele se dizia um enviado de Deus", conta o ator João Miguel, que interpreta "o personagem" Bispo em monólogo homônimo que estará em cartaz no Sesc Belenzinho até 25 de maio. "Ele dizia que tinha a missão de construir um mundo em miniatura e que tudo aquilo que estava articulando seria mostrado a Deus no dia da passagem." Esse "dever divino" resultou na produção de 950 peças que hoje estão expostas no Museu Nise da Silveira, localizado na mesma Colônia Juliano Moreira na qual foi internado como louco. Uma coleção que rodou o mundo impressionando a crítica e que teve seu apogeu em 1995 quando uma vasta mostra de seu trabalho representou o Brasil na Bienal de Veneza.

Diálogo com a obra
O espetáculo, dirigido pelo próprio João e pelo cineasta Edgar Navarro, traz uma leitura "muito particular" - salienta o ator - da febre criativa que acometia Bispo. "Ele consegue articular um mundo através de sua própria loucura", continua. "O que o fez ser catalogado como louco era, na verdade, o motivo pelo qual ele produzia e ficava vivo." As leituras sobre a figura de Bispo - gênio artístico ou simplesmente louco - se ramificam tanto quanto sejam os instrumentos a serem usados para tal. Uma certa esquizofrenia que se reproduz ao serem deparadas as visões psiquiátricas e artísticas a respeito dele. E foi isso que fascinou João e acendeu o pavio que começou a queimar há seis anos e finalmente "explodiu" em 2000, quando o espetáculo estreou. "Tudo começou quando eu li o livro O Senhor do Labirinto, uma biografia escrita por Luciana Hidalgo", retoma João. "A partir do momento em que li esse livro tive certeza de que queria montar um espetáculo sobre Arthur Bispo do Rosário." A partir daí, vários tijolos ajudaram a construir a arquitetura de Bispo, a peça. Entre eles, visitas sistemáticas à unidade Juliano Moreira, de Salvador - terra natal de João Miguel. "Eu criei um palhaço há 12 anos e uma das maneiras de troca que eu tinha com os internos era apresentando esse palhaço em situações diferentes ali dentro", conta o ator. "A partir do momento que eu já tinha o espetáculo em mente, eu pude, por conta dele, ter esse personagem como cartão de visitas dentro do hospício." João conta que isso o facilitou a se aproximar dos internos e criar uma relação com eles, assim como estabelecer diálogo com a diretoria da instituição e com os assistentes sociais, peças importantes no processo. "Eles têm uma entrada menos superficial nos hospícios. Isso me possibilitou esse olhar no olho dos internos."

Juízo final
Criada uma sistemática de pesquisa e experimentação, João Miguel, junto com a equipe responsável pela montagem, chegou aos pontos considerados fundamentais para o espetáculo. Há uma espécie de apresentação do personagem, a intervenção das músicas que remetem "a uma ancestralidade do que seria para nós Bispo" - afirma o ator - e o diálogo com a Virgem Maria, que marca a presença da fé religiosa e também serve de ponte para tratar de outra figura importante para Bispo, a estagiária que trabalhava na colônia, hoje psicanalista, Rosângela Maria Grilo Magalhães. "Quando ele a conhece dedica parte de sua obra a ela", conta João Miguel. "Ele diz que está construindo dois mundos, um para o Pai e outro para ela." No entanto, a presença desses "fatos reais" no espetáculo não faz dele um trabalho biográfico. Bispo é, acima de tudo, uma representação do universo do personagem-título. Uma leitura que tem por objetivo provocar questionamentos. "É um diálogo com a figura de Bispo do Rosário, que é muito complexa e cuja complexidade é, por sua vez, muito propícia para esse mundo no qual vivemos hoje, um mundo esquizofrênico", sentencia João. Em cena, não há nenhum objeto que procure reproduzir alguma de suas obras e o cenário não remete a nenhum ambiente típico de um hospício. Mesmo o manto usado por João Miguel é mais uma revisitação do famoso vestuário criado por Rosário "para encontrar Deus", como ele afirmava, do que uma réplica. "Há umas caixas de madeira suspensas no ar das quais saem cordas, idéia de Marepe, um dos cenógrafos, que são uma metáfora do trabalho de desfiar e bordar que Bispo fazia."
Sobre o artista, além deste espetáculo e do livro de Luciana Hidalgo, há ainda um filme, feito por Hugo Denizart, chamado O Prisioneiro da Passagem. Trechos de diálogos entre Hugo e Bispo são reproduzidos no livro de Luciana. Em um deles, o diretor pergunta ao artista: "Você vai se transformar em Jesus Cristo, como é que é?" No que Bispo responde, firme: "Não vou me transformar, não, rapaz, você está falando com ele." Arthur Bispo do Rosário morreu em 1989, ainda internado no hospício, onde ficou 50 anos. Se ele se encontrou mesmo com Deus, a fim de mostrar sua obra, não se sabe. "A gente incluiu no espetáculo a passagem de Bispo", finaliza o ator. "Nós acreditamos nela."