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Maternidade e trabalho

Escritoras, sociólogas, psicanalistas e pesquisadoras analisam a relação entre a mulher, a carreira e os filhos. Será que ainda persiste o clássico dilema que as divide em mães e profissionais?

Trabalhar fora ou se dedicar ao lar e aos filhos? Há bem pouco tempo essa era uma pergunta com uma única resposta: lugar de mulher é em casa, cuidando das crianças. No entanto, hoje, a situação é outra. Segundo pesquisa realizada pela fundação Seade, só na Área Metropolitana de São Paulo (AMSP), do total do emprego gerado na última década, 70% corresponderam a trabalhos gerados por mulheres. Por outro lado, a presidente da ONG Pró-Mulher, a psicanalista Malvina Muszkat, revela em seu artigo que numa pesquisa recente, entrevistando 60 mulheres na faixa etária de 25 a 60 anos, os depoimentos "sugeriram que o exercício da função materna perdeu muito de seu prestígio para o sucesso da carreira." Em artigos exclusivos, o tema é debatido por especialistas.


Leticia Wierzchowski
é escritora e autora do livro A Casa das Sete Mulheres (Editora Record)

Meu personagem arregala os olhos, sem crer que ela teve coragem, enfim, depois de tantos avisos, tantas ameaças vãs. Ela sempre dizia: um dia mato você. Sempre dizia aquilo sobre matar e morrer, sempre apreciara facas. Agora, o personagem sente o metal na sua carne como um sopro frio, e leva a mão ao cabo da adaga ensangüentada. Então, quando vai dizer alguma coisa a ela - talvez sua derradeira palavra -, João chora no quarto ao lado. Pluft! Eu levanto e saio correndo, deixo o personagem imóvel, esperando, esperando, mas é preciso atender o meu filho: ele está com fome, quer um beijo, quer ver as flores, quer me mostrar a borboleta amarela. E eu vou, feliz, porque ele é o texto que se escreve sozinho e tão lindamente.
Desde que João nasceu é assim. A vidinha dele está entre as linhas dos meus livros, está no meu sono e na minha sede. A inspiração agora é quando a casa silencia e os carrinhos de plástico estacionam nas suas ruas imaginárias - é então que eu trabalho. Claro, eu tenho a ajuda de uma babá: ela está por perto quando me ausento, quando viajo, quando o trabalho me chama pra longe do choro e do riso do João. Por causa da D. Maria (que é o nome da nossa vovozinha emprestada) é que meu ofício continua seu ritmo relativamente veloz, é que eu tenho a paz para fechar a porta do escritório e findar com a angústia do meu personagem e sua faca enfiada na barriga.
Mas o causo é que a minha vida é diversa da maioria das vidas. A minha licença-maternidade foi entre um romance e outro. Quando meu filho tinha quatro meses e as outras lactantes estavam voltando ao ofício, eu apenas dei um beijo no rostinho do João e fui escrever na peça ao lado. Ao seu primeiro suspiro, apareci. E assim, gradualmente, a vida foi entrando nos seus novos moldes. Para mim, entre um trabalho e outro, não existe a hora do cafezinho, mas a hora da banana amassada.
A imensa maioria das mulheres não tem esse luxo. E não é fácil. Sair pela manhã, deixar o filho na creche, buscá-lo ao entardecer sem nenhuma idéia das mil coisas maravilhosas que lhe sucederam naquele dia, chegar em casa, ordenar a vida outra vez, dormir para o dia seguinte. A mulher de hoje faz jornada tripla. Há que ser boa mãe, profissional competente, mulher apaixonada. Há que reger a casa como a uma empresa, com suas contas, consertos e compras, há que dar amor ao filho e ensiná-lo a andar, falar e escrever, e ainda estar bonita, as unhas feitas. Da rua para a casa, de casa para a rua, eficientíssima sempre. A Liga dos super-heróis fica onde mesmo?
Eu e o João vivemos bem a nossa vidinha. Ele gosta de remexer as minhas gavetas, meus livros de História vão parar na prateleira dos dicionários, e os dicionários freqüentemente são encontrados embaixo do sofá da sala. Eu levo tempo para organizar essas extravagâncias, escrevo mais lentamente, entre um susto e um piu-piu que passa pela nossa janela, mas vamos felizes. Não aceito viagens para longe, a não ser que João possa ir junto. Não durmo fora de casa - e se eu acordar com medo à noite? Meu marido tem os mesmos princípios, e é uma felicidade a gente estar por perto. Entonces, que este é um depoimento otimista de quem vive de inventar vidas de faz-de-conta. João gosta de livros, está sempre no meio deles. Meus livros gostam do João. Esta é a minha história - quem quiser que conte outra.


Felícia Reicher Madeira
é socióloga, demógrafa e diretora de Análise Socioeconômica da Fundação Seade, em São Paulo

Os dilemas e as tensões que as mulheres e suas famílias sofrem no ajuste contínuo de combinar vida profissional e maternidade manifestam-se, expressivamente, de diferentes maneiras, em um cotidiano familiar aflitivo. Certamente não estaríamos errando muito ao dizer que é a fonte de preocupação mais recorrente entre mães/profissionais. Logo após concordar em escrever este artigo, a primeira pessoa que encontro no escritório estava saindo às pressas para resolver um imprevisto com suas filhas. Tais angústias costumam se acirrar quando as preocupações são legitimadas por estudos acadêmicos, pois parece provado cientificamente que as crianças apresentam desempenho escolar significativamente melhor quando as tarefas escolares são acompanhadas meticulosamente pelas mães.
Quanto às estatísticas do mercado de trabalho, afinal minha área de atuação, elas refletem este dilema. Os gráficos que costumam demonstrar a intensidade de participação dos indivíduos no trabalho remunerado, por faixa etária, desenham trajetórias completamente diferentes quando se trata de homens e mulheres. No caso dos homens, a curva é basicamente a normal, portanto quase um semicírculo - nas idades muito jovens é baixa a proporção daqueles que trabalham, aumentando em direção às idades adultas (teoricamente todos os homens sadios deveriam estar trabalhando) e voltando a cair mais ou menos em torno dos 60 anos. No caso das mulheres, a trajetória tradicional costuma ser diferente. Na verdade, configuram-se claramente duas curvas: uma corresponde às idades jovens, seguindo-se uma queda significativa nas idades em que as mulheres costumam cuidar de filhos de até 14 anos; e finalmente outra, nova elevação da curva, agora menos acentuada, representando a volta das mulheres ao mercado de trabalho após sua liberação dos cuidados com os filhos. Quanto mais acentuado o modelo de duas curvas com uma queda intermediária, maior é a resistência da sociedade ao trabalho da mulher no período de maior cuidado com os filhos.
O acompanhamento da trajetória dessas curvas possibilita ter noção de como evolui a participação das mulheres no mercado de trabalho e quantas enfrentam este antigo dilema. A trajetória, com queda marcante na idade de cuidado com filhos menores de 14 anos, é ainda presente em alguns países europeus, quase inexistente nos Estados Unidos e marcante no Japão, onde ainda é forte a idéia da importância da mãe no momento de formação educacional da criança.
No Brasil, mais especificamente na Área Metropolitana de São Paulo (AMSP), é surpreendente tanto a velocidade com que cresce a participação da mulher no mercado de trabalho, como da rápida aproximação da curva feminina da masculina. Do total do emprego gerado na última década, nada menos do que 70% correspondeu a trabalhos desempenhados por mulheres. Aliás, a estratégia mais comum utilizada pelas mulheres da AMSP é completar o número de filhos desejados muito cedo (em geral dois) e sair em busca de trabalho. Com pequenas variações, isso vale para as mulheres de todos os estratos sociais. Por aqui, apesar do doloroso dilema, ter filhos é um empecilho cada vez menor à decisão de enfrentar uma carreira e receber uma recompensa salarial e social pelo desempenho de uma tarefa remunerada.


Malvina Muszkat
é psicanalista e presidente da ONG Pró-Mulher

Na pré-história da humanidade, por milhares de anos a fio, a fêmea humana foi identificada com a procriação. Possuía, então, enorme prestígio num mundo de significados mítico-religiosos e sua força criadora e nutriz era reverenciada através de rituais de fecundidade. Nesse tempo, que alguns estudiosos denominaram "ciclo matriarcal", o macho humano nada sabia a respeito de sua progenitura. A descoberta da participação masculina na concepção redundou na criação do "tabu do incesto" e o poder mágico-religioso da mulher cedeu lugar ao poder político-social do homem, consagrando o Pai nessa nova organização social como representante do poder - "ciclo patriarcal" -, tendo ficado a mulher, desde então, submetida a ele.
Desde que os homens se preocuparam em decifrar o laço que os unia a sua progenitura, a fim de garantir o reconhecimento dos filhos por ele engendrados, tornou-se necessário que cada homem reservasse uma mulher exclusivamente para si, garantindo o controle sobre sua sexualidade. A partir daí, os poderes do pai não pararam mais de se expandir. Apenas nos últimos 40 anos, com a crescente inserção das mulheres no domínio público, antes exclusivo dos homens, no campo do trabalho, da política e do conhecimento formal, novas mudanças vêm ocorrendo e uma nova ordem social, agora baseada na equidade entre os sexos, vem se impondo. Nessa nova ordem as mulheres vêm conquistando espaços nunca antes imaginados e, ao que tudo indica, vêm tendo gosto, em se realizar através do mesmo caminho que, até então, representava sucesso no mundo masculino: o caminho da realização profissional.
Numa pesquisa recente, entrevistando 60 mulheres na faixa etária de 25 a 60 anos da classe média paulistana, os depoimentos sugeriram que o exercício da função materna perdeu muito do seu prestígio para o sucesso da carreira. Dentre as mulheres mais jovens, algumas afirmaram não querer ter filhos, outras somente quando suas carreiras estivessem bem encaminhadas e outras, mais velhas, já tinham tido filhos, mas confessavam ter sido muito à revelia, quase que mais para preencher uma expectativa social do que como manifestação do seu próprio desejo.
Como psicanalista me pergunto: se já houve tempo em que ter uma verdadeira ninhada de filhos foi considerado sinal de competência para as mulheres - "ser Mãe é padecer no Paraíso" -, onde foram parar todas as teorias e mitos que justificavam esse imaginário? Tudo indica que essas formas de auto-afirmação estão, hoje, projetadas em outros valores, no caso a carreira, o que reforça a idéia de que subjetivismo e cultura não podem ser dissociados, comprovando a importância da cultura na constituição do desejo. Há, no entanto, um outro grupo de mulheres das camadas pobres da população, que, caminhando na contramão da história, tem procriado cada vez mais precocemente; mulheres que aos 15 anos querem ser mães como expressão de prestígio e auto-afirmação. Será que para estas mulheres a carreira ainda é uma coisa tão distante que o caminho para a realização pessoal continua, como no passado, se restringindo ao exercício da maternidade?


Sandra Unbehaum
é socióloga e pesquisadora da Fundação Carlos Chagas e da ONG Ecos-Comunicação em Sexualidade. Para maiores informações consulte www.fcc.org.br

Ser ao mesmo tempo mulher, trabalhadora e mãe em uma sociedade como a nossa é sem dúvida um desafio. Um desafio que as mulheres brasileiras de alguma maneira parecem estar vencendo, uma vez que são as trabalhadoras casadas, com filhos, aquelas que apresentam o maior crescimento no mercado de trabalho, sugerindo que as responsabilidades familiares não estariam mais constituindo um fator impeditivo ao trabalho feminino de mercado.
O significativo aumento da atividade das mulheres é resultado não apenas da necessidade econômica e das oportunidades oferecidas pelo mercado, em conjunturas específicas, mas também, em grande parte, das transformações demográficas, culturais e sociais que vêm ocorrendo no país. A intensa queda da fecundidade reduziu o número de filhos por mulher, liberando-a para o trabalho. A expansão da escolaridade e o acesso às universidades viabilizaram o acesso das mulheres a novas oportunidades de trabalho. Por fim, transformações nos padrões culturais e nos valores relativos à atuação social da mulher, intensificadas pelo impacto dos movimentos feministas e pela presença cada vez mais atuante de mulheres nos espaços públicos.
Porém, é ainda comum as mulheres ganharem menos e terem maiores dificuldades do que os homens para ascender a cargos de chefia. A constante necessidade de articular responsabilidades familiares e profissionais limita a possibilidade de igualdade de oportunidades para as mulheres no mercado de trabalho. A maternidade, por exemplo, é o que mais interfere no trabalho feminino, sobretudo quando os filhos são pequenos, principalmente se os rendimentos obtidos são insuficientes para cobrir custos com formas remuneradas de cuidado infantil. Talvez, por isso, muitas mulheres estejam adiando a maternidade... Por outro lado, quando a necessidade econômica é tão premente que inviabiliza o exercício da maternidade em tempo integral, como nas famílias muito pobres ou nas chefiadas por mulheres, outros arranjos, envolvendo inclusive os filhos maiores, ou redes de parentesco costumam ser acionados para olhar as crianças enquanto a mãe vai trabalhar.
A insuficiência de equipamentos coletivos como as creches, que atendem parcela muito pequena das crianças brasileiras, contribui para aumentar o peso da maternidade sobre as mulheres trabalhadoras. Por isso, é preciso estimular políticas públicas que fortaleçam a proteção à trabalhadora no que diz respeito à reprodução, o que significa fazer cumprir a legislação trabalhista, que garante, para as trabalhadoras do setor formal, estabilidade no emprego durante a maternidade, licença-maternidade de 120 dias, local adequado para amamentação e creches; estender os direitos trabalhistas para as trabalhadoras do setor informal. Além disso, é preciso pensar em formas de envolver os homens nas tarefas domésticas, nas responsabilidades da gravidez, na educação e no cuidado infantil, numa visão de relações compartilhadas entre homens e mulheres, com benefícios para as famílias, as crianças e as trabalhadoras. Ações que promovam a articulação trabalho/família são um desafio para os formuladores de políticas públicas, mas também para a iniciativa privada. Uma empresa que visa à responsabilidade social deve criar condições para que trabalhadoras e trabalhadores possam conciliar sua atividade profissional com a familiar, principalmente os cuidados com os filhos pequenos, em benefício da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, mas sobretudo em benefício de uma melhor qualidade de vida para a nossa sociedade.


Maria Odete Salles
é estatística e gerente-adjunta de Estudos e Desenvolvimento do Sesc/SP.

Tradicionalmente, o papel da mulher na sociedade foi o de protetora dos filhos e de sua família. Sua função resumia-se a cuidar da casa, cozinhar, lavar e passar. Um eterno trabalho repetitivo e alienante e que, na prática, nada resultava em termos mensuráveis. Sequer era valorizado pelos homens e mesmo pelas próprias mulheres. Era simplesmente um fazer e fazer. Nada mais.
A evolução dos tempos modificou o perfil da sociedade. O espaço que a mulher passou a ocupar, aliado à sua capacidade de trabalho e produtividade, permitiu-lhe, no decorrer dos anos, alcançar posições e postos destacados na estrutura das organizações em geral. Chegamos a um momento no qual a força de trabalho feminina apresenta níveis equivalentes, ou até superiores, à força masculina em alguns setores de atividade.
Se por um lado isso significou emancipação, competitividade, liberdade e participação igualitária em decisões e ações, por outro significou uma certa renúncia ao tradicional papel que havia sido reservado para as mulheres.
Por mais ilógico ou irracional que pareça, a mulher, ao mesmo tempo, além de trabalhar, de ser profissional, necessita - e é cobrada por isso -, ser a mãe, a companheira, a dona de casa.
Como conciliar as facetas da nova mulher? Ou, será mesmo que se tem de conciliar alguma coisa? Quais as possibilidades de optar por uma ou por outra alternativa? Como ser profissional de sucesso e não ser mãe? Ou, ser mãe e esposa, dona de casa, e não ser profissional?
Por vezes, questões nos afligem e nos tomam em sobressalto. Especialmente aquelas relacionadas às situações mais corriqueiras do dia-a-dia, como levar filhos ao médico durante o expediente, ir a uma reunião escolar, a uma festinha do dia das mães marcada para as 9 horas da manhã de uma sexta-feira, ou mesmo quando chegamos atrasadas porque simplesmente nossas crianças emburraram pela manhã. Como impedir que a nossa imagem de profissional não seja abalada e conseguir conjugar nossas obrigações profissionais com os deveres de mãe?
Acabamos por ser cobradas por nós mesmas, pela organização na qual trabalhamos, pelos nossos maridos e pelos nossos filhos. É uma eterna cobrança! Se tivermos de levar os filhos ao médico, participar da festinha da escola, ir à reunião de pais e mestres, acabamos por ficar em situações no mínimo desconfortáveis com relação aos nossos chefes e com relação à empresa. Pelo fato de estarmos fora de casa o dia inteiro, naturalmente estamos longe de nossos filhos. Como conseguir equilíbrio na educação deles sem o mecanismo da compensação, tal como deixá-los assistir televisão, ou ficar na internet até mais tarde, ou ainda dormir em sua cama, ou tomar banho só no dia seguinte? Afinal, que mal isto pode fazer? Ou fará?
Como satisfazer nossas necessidades emocionais e físicas? Como conciliar filhos e vida profissional? É possível ser mãe e alcançar sucesso na vida profissional? Em que medida a sociedade, as empresas e as instituições estão dispostas a colaborar, ou melhor, a não criar barreiras para o desenvolvimento da carreira profissional da mulher que possui família?
A mim parece que ser Telemãe ou Mãe à Distância nem sempre é a melhor opção. Por outro lado, também não me parece justo criar e envolver toda uma rede de parentes: avôs, tios e irmãos na administração dos filhos, ou na sua educação.
Como responder a tantas perguntas, dúvidas e inquietações? São todas questões polêmicas ligadas à presença feminina no mercado de trabalho. Pode a mulher, atualmente, desempenhar plenamente seu papel de mulher, mãe e trabalhadora?
Acredito no nosso potencial e força de trabalho, na qualidade de nossas ações e no profissionalismo que detemos para o desenvolvimento de nosso trabalho e profissão. È possível, ampliar, ainda mais, o espaço de trabalho feminino na sociedade e encontrar a fórmula adequada para conciliarmos trabalho e maternidade.
Mas há algo em que não só acredito, tenho plena convicção: a qualidade da dedicação é mais importante que a quantidade de tempo com os filhos.