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Goiás Velho renasce
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A antiga capital goiana é documento vivo da história do Brasil
VALTENO OLIVEIRA
"... É preciso de saber os trechos de se descer para Goiás: em debruçar para Goiás, o chapadão por lá vai terminando, despenha. Tem quebra-cangalhas e ladeiras terríveis vermelhas. Olhe, muito além, vi lugares de terra queimada e chão que dá som – um estranho. Mundo esquisito."
Guimarães Rosa ("Grande Sertão: Veredas")
Foram quatro anos de trabalho de convencimento. Dossiês, relatórios, uma radiografia completa do município e o cumprimento de uma série de exigências. Mas valeu a pena. A cidade de Goiás, a 130 quilômetros de Goiânia, recebe neste final de ano o título de Patrimônio da Humanidade, concedido pela Unesco. É o sétimo município brasileiro agraciado com a honraria. Encravada aos pés da serra Dourada, a cidade parou no tempo. Os casarões do período colonial, as igrejas, as ruas calçadas de pedras, a velha ponte sobre o rio Vermelho, tudo foi conservado e lembra a época em que o poder se sustentava no ouro das minas.
Com a decadência da mineração, a cidade perdeu importância. A capital se transferiu para Goiânia no início dos anos 30, e Goiás Velho, como ficou sendo chamada, parece ter voltado ao mundo esquisito de Guimarães Rosa.
Além do tesouro arquitetônico – mais de 2 mil casas, 800 só no centro histórico –, a cidade guarda em seus quatro museus e em pelo menos cinco igrejas um acervo de peças do período colonial com destaque para as esculturas de José Joaquim da Veiga Vale, considerado o grande artista da terra, ao lado do pintor Siron Franco. Mas é a poeta Cora Coralina que faz o charme do lugar. A casa velha da ponte onde viveu a maior parte de sua vida se transformou num museu, parada obrigatória de todo turista curioso.
O título de Patrimônio da Humanidade é o reconhecimento internacional pelo trabalho e pela dedicação dos moradores da cidade de Goiás, que agora enfrenta o desafio de receber turistas e ao mesmo tempo permanecer calma e tranqüila. "Não queremos um turismo desenfreado. Não podemos perder a característica de uma cidade onde a pessoa fica numa pousada, descansa em sua rede e encontra aqui a culinária típica, nossos doces cristalizados. Mas tudo com calma, sem o atropelo dos carros, do som exagerado", diz Brasilete Caiado, presidente do Movimento Pró-Cidade de Goiás Patrimônio da Humanidade. A opinião dela é compartilhada por dois em cada três habitantes da velha capital.
Acostumado com o agito de turistas apenas na Procissão do Fogaréu – realizada durante a Semana Santa –, o município agora terá de se adaptar aos novos dias. Desde que assumiu a candidatura a Patrimônio da Humanidade, a prefeitura e o governo do estado de Goiás têm programado uma série de eventos. O mais importante deles é o Fica (Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental), que acontece na primeira semana de junho e já vai para a quarta edição. Mais de 30 mil pessoas se deslocam para a cidade, que tem de improvisar para acolher todo mundo. Com apenas três dezenas de pousadas e hotéis, o turista acaba sendo acomodado em casarões do centro histórico, onde sempre encontra um morador disposto a alugar seu sobrado.
Centro histórico e periferia
Além do desafio de conquistar o reconhecimento da Unesco, a cidade de Goiás terá de trabalhar muito para sustentar o título de patrimônio cultural. O principal problema identificado pelos coordenadores do Movimento Pró-Cidade de Goiás Patrimônio da Humanidade é o distanciamento entre as famílias que moram no centro histórico e as que vivem na periferia. "Eles se sentem à parte, marginalizados", diz o empresário Wanderlei de Alcântara, referindo-se aos habitantes dos bairros mais afastados. Ele e a mulher, Nádia, se mudaram para a cidade de Goiás há dois anos. Arrendaram um restaurante e imprimiram-lhe um novo ritmo de trabalho para atender os turistas com presteza e qualidade. Não levaram ninguém de Goiânia. Garçons e cozinheiros foram todos arregimentados e treinados na própria cidade. O resultado é que a clientela aumentou e eles tiveram de procurar um espaço maior. Este ano alugaram um casarão no centro histórico e abriram um estabelecimento próprio com mão-de-obra local. "É preciso encarar o turismo como uma fonte de renda sustentável", declara Wanderlei, que emprega três garçons que moram na periferia.
Caio Jardim é outro empresário do setor de restaurantes. Faz dois anos que assumiu a liderança de um movimento para treinar garçons, cozinheiros e camareiras. No início, era apenas um trabalho para atender aos turistas que chegavam para o festival de cinema. Em dois anos, foram formados 120 garçons e cozinheiros, todos da cidade. Agora, com a perspectiva do título de Patrimônio da Humanidade, Caio conseguiu apoio de uma ONG local – o Centro de Estudo Integral – e também da Secretaria Estadual de Educação, e juntos acabam de criar uma escola profissionalizante. "Já temos 150 pessoas inscritas, que, além de aprender a valorizar a cozinha goiana, a servir uma mesa, vão também ter noções de português, de história, de língua estrangeira e até de educação física", afirma, entusiasmado, o empresário, que acredita estar colaborando para a geração de emprego e renda para os moradores do município, o que acaba reduzindo a pobreza na periferia. "Não podemos perder essa goianidade. Afinal, quem não gosta de uma abobrinha batida, um frango ao molho, um arroz com pequi... tudo feito sem pressa?", indaga.
Exigências da Unesco
Para conceder o título de Patrimônio da Humanidade à cidade de Goiás, a Unesco fez uma série de recomendações. Uma delas se refere à iluminação pública. Foram construídos 5 quilômetros de rede subterrânea e instaladas mais de 3 mil lâmpadas no centro histórico. Com o racionamento, apenas metade das luminárias em forma de lampião fica acesa. Mas, para os moradores, o problema é passageiro. O que preocupa mesmo é a sinalização. Não há na cidade de Goiás uma só placa indicativa do que quer que seja. Ônibus e caminhões circulam livremente pelas ruas do centro histórico sem que nada os alerte sobre a proibição. Igrejas, praças, ruas, museus fazem parte do dia-a-dia dos moradores, mas os turistas não sabem se estão passando pela Igreja da Boa Morte ou pela Igreja da Abadia.
Segundo a chefe da divisão técnica do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em Goiânia, Cristina Portugal, a sinalização vai começar a ser instalada ainda este ano. A Agência Goiana de Meio Ambiente, juntamente com a Agência Goiana de Turismo, já fez o inventário da região. Faltavam apenas os ícones do patrimônio histórico e cultural, que o Iphan acaba de aprovar. A idéia é que as informações das placas estejam escritas também em inglês e espanhol.
A diretora do Museu Cora Coralina, Marlene Velasco, identifica outras dificuldades. Para ela, sem pessoal qualificado, os museus não têm como abrir as portas nos finais de semana. "Tanto o Museu da Boa Morte e o das Bandeiras quanto o Palácio Conde dos Arcos e o Cora Coralina estão funcionando precariamente. Abrimos sábado pela manhã, mas temos de fechar à tarde, e aos domingos é a mesma coisa." Marleninha, como é conhecida, também faz parte do Movimento Pró-Cidade de Goiás Patrimônio da Humanidade. Apesar dos problemas, ela se alegra em contar que os novos folders do Museu Cora ficam prontos ainda este ano, com textos em francês, inglês e espanhol, além do português. Assim, a maior expressão goiana na poesia, que nasceu e viveu na casa velha da ponte e foi reconhecida por Carlos Drummond de Andrade como a mulher mais importante de Goiás, vai chegar à compreensão de todos em versos como estes do poema "Minha Cidade": "... Goiás, minha cidade.../ Eu sou aquela amorosa/ de tuas ruas estreitas,/ curtas,/ indecisas,/ entrando,/ saindo/ uma das outras./ Eu sou aquela menina feia da ponte da Lapa./ Eu sou Aninha".
Casarões que valem ouro
Com a perspectiva do título de Patrimônio da Humanidade, a primeira conseqüência foi a supervalorização dos imóveis do centro histórico. O município de Goiás tem aproximadamente 30 mil habitantes. Cerca de 90% moram na cidade e perto de 10 mil têm casas na área central. Seduzidas pelas propostas milionárias, algumas pessoas estão se desfazendo dos casarões. O vereador Rodrigo Borges, do Partido Verde, conta que um sobrado que valia R$ 20 mil está sendo vendido por R$ 100 mil. "A supervalorização é incompatível com a realidade. As pessoas estão negociando suas casas no centro e se mudando para a periferia. E isso tem desencadeado um processo de ocupação desordenada também na periferia", denuncia ele.
A preocupação do vereador tem sentido. Uma vez Patrimônio da Humanidade, a cidade estará sempre sob fiscalização. E um dos requisitos para a concessão do título é o patrimônio ambiental, que funciona como uma moldura para a área urbana. Sem uma política de ocupação ordenada dos espaços, o cerrado, a serra Dourada e as nascentes dos rios podem ficar comprometidos. Basta ver as dificuldades enfrentadas para acabar com o garimpo no rio Vermelho. Mesmo assim, o único rio que corta a cidade ainda se encontra poluído por causa dos esgotos domésticos que ali são despejados.
O programa de saneamento básico, uma das exigências da Unesco, está em execução, mas deve levar pelo menos dois anos até sua conclusão. A estação de tratamento de esgoto já foi construída, mas a rede coletora, ainda não. Mesmo assim, peixes como mandi, piau, papa-terra e lambari são vistos no rio, que ainda proporciona condições de sobrevivência para essas espécies.
A política municipal para o meio ambiente está sendo elaborada através de um zoneamento que vai apontar as prioridades. O município já conta com a Reserva Biológica da Serra Dourada, administrada pela Universidade Federal de Goiás, com a Área de Proteção Ambiental, criada pelo governo do estado, e que abrange 35 mil hectares em torno da cidade, e mais recentemente com a área do manancial São João, a 50 quilômetros do centro. O zoneamento vai definir quais atividades poderão ser desenvolvidas na região.
O Diabo Velho
As origens históricas de Goiás estão intimamente ligadas à corrida do ouro empreendida pelos bandeirantes paulistas. Entre 1682 e 1684, uma expedição chefiada por Bartolomeu Bueno da Silva atravessou um imenso território, à época conhecido como sertão dos goyazes, ou gentio goya, à procura do ouro supostamente abundante nos córregos da calha do rio Vermelho. Do contato com os goyazes, o bandeirante recebeu a alcunha de Anhangüera, que na língua dos nativos significava Diabo Velho. "Bartolomeu Bueno era ignorante, mas valente, astuto e de caráter perseverante. Uma prova de sua rara presença de espírito demonstrou ele uma vez ante o perigo iminente, quando se salvou das mãos dos índios com a ameaça de que, se não satisfizessem suas exigências, incendiaria todos os rios. Depois da ameaça, pôs fogo numa tigela de aguardente, ao que os pobres índios ignorantes ficaram tão aterrorizados, que consentiram em tudo", narra Johann Emanuel Pohl, em Viagem ao Interior do Brasil.
Em 1722, seu filho, também Bartolomeu Bueno, seguindo os passos do pai, retornou ao sertão, em busca daquelas fontes auríferas. Vagou por três anos antes de redescobrir os ricos aluviões do rio Vermelho e de seus afluentes. Para prestar contas de seu sucesso, retornou a São Paulo, de onde, favorecido pelo título de capitão-mor e por muitos privilégios pessoais, no ano de 1726 partiu para uma nova bandeira para o interior, fundando vários arraiais, entre os quais o da Barra, o do Ferreiro, o do Ouro Fino e o de Santana, que viria a ser a cidade de Goiás.
A arte de Veiga Vale
Apesar de o barroco ter se expandido no território brasileiro, as construções goianas, que datam dos primeiros 50 anos da colonização local, expressam um estilo caracterizado como colonial brasileiro, mais simples e despojado que o barroco português. Somente no interior das igrejas se notam traços de um barroco tardio, expresso em imagens, talhas e pinturas encomendadas aos poucos artesãos e pintores residentes na região.
O artista mais representativo dessa época é Veiga Vale. Natural de Pirenópolis, antiga Meia Ponte, nasceu em 9 de setembro de 1806 e foi para a cidade de Goiás em 1841, onde se casou. Requisitado por todos, Veiga Vale trabalhava quase sempre com cedro, madeira de sua predileção por ser macia, cheirosa e de grande durabilidade. O resultado são imagens de santos feitas com tal delicadeza e esmero que encantavam a nobres e plebeus tanto da província de Goiás quanto de outras localidades brasileiras. Segundo Élder Camargo de Passos, um dos maiores estudiosos de Veiga Vale, "... a madeira, segundo costume antigo, era abatida na lua minguante, conforme sabedoria popular, isso porque é a época em que a seiva se encontra na raiz do vegetal, uma das proteções contra o caruncho. Depois de desgalhada a árvore, o tronco permanecia deitado em repouso por seis a oito meses, só então é que seria examinado e preparado para o uso. Depois, os cepos de madeira eram cortados em vários tamanhos e passavam por um processo rudimentar de imunização, que, segundo consta, consistia no seu cozimento, em grande tacho de cobre, em água preparada em infusão de vários vegetais, objetivando retirar as resinas ainda existentes e promover uma maior dilatação nos poros da madeira para que, futuramente, não viesse a sofrer rachaduras em razão da inclemência de nosso clima tropical e seco" (in Veiga Vale, Museu de Arte Sacra da Boa Morte, cidade de Goiás).
Bom número de suas peças compõe-se de estátuas não inteiriças. Braços, mãos e faces eram esculpidos à parte e posteriormente encaixados. Segundo Élder Camargo, estima-se que cerca de 200 obras de Veiga Vale estejam em mãos de particulares. No Museu da Boa Morte há 42 trabalhos do artista, que só ficou conhecido a partir de 1988, quando houve uma exposição de suas peças no Museu de Arte de São Paulo (Masp), e mais recentemente na Mostra Brasil 500 Anos, em que foram exibidos 15 trabalhos dele. Ao que tudo indica, Veiga Vale não tinha noção exata do valor de suas obras. Basta ler a carta enviada por um sobrinho seu de Mato Grosso encomendando algumas imagens: " ... Tenho também de pedir-lhe que me aprompte com brevidade, uma Imagem de Jezus Maria José, que é encommenda de uma minha parenta a quem muito dezejo servir; e previno a Vossa Mercê que não peça pouco dinheiro não só pelas outras, como por esta última Imagem; por que do contrário, é Vossa Mercê não dar merecimento ao seu trabalho, o qual não é só de muita delicadeza, como também por ser gênero que ninguém repara preço... Joaquim de Faria Albernaz".