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Peça de Mércia Borges /
Foto: Arquivo PB

Apesar das novidades, jovens artistas ainda sentem falta de apoio

CARLA ARANHA

De algum tempo para cá, a arte contemporânea brasileira vem circulando com mais facilidade no cenário internacional, o que tem lhe garantido maior visibilidade. Não só a Bienal de Veneza, mas também importantes feiras como a Arco, de Madri, na Espanha, e a Basiléia, na cidade suíça do mesmo nome, têm apresentado obras de autores brasileiros. Neste ano, foram abertas três novas galerias de arte em São Paulo, duas no Rio de Janeiro e uma em Belo Horizonte. Para o próximo ano, vem sendo anunciada a inauguração do Instituto de Arte Contemporânea na capital paulista, numa parceria da Universidade de São Paulo (USP) com a iniciativa privada. Além disso, um grande banco multinacional, o Deustche Bank, lançou no Brasil um serviço (o MaxBlue) que existe há muito tempo na Europa e nos Estados Unidos, voltado para os correntistas interessados em diversificar os investimentos, com uma opção específica para aquisição de obras de arte.

Como conseqüência, alguns jovens artistas estão conseguindo sobreviver do próprio trabalho no Brasil, o que era raro até uma ou duas décadas atrás. Porém, esse quadro, que à primeira vista parece tão favorável, encerra uma contradição que compromete o desenvolvimento artístico no país. Se por um lado há mais reconhecimento no exterior e o mercado interno está se ampliando, por outro a falta de políticas de incentivo para as artes plásticas impede que a maioria dos iniciantes siga a carreira.

"Considero-me uma exceção, porque vim de uma família em que a arte sempre esteve presente, mas são grandes as dificuldades para o novato no Brasil, e muitos acabam desistindo", diz um dos mais conhecidos artistas brasileiros da atualidade, o carioca Nelson Leirner, que tem participado de mostras internacionais. Para Beatriz Milhazes, outra integrante da nova geração de pintores que vem expondo regularmente no exterior, a arte no Brasil ainda tem de se enquadrar nas expectativas do mercado, justamente porque não há outro canal pelo qual o artista possa mostrar seu trabalho. "Nos Estados Unidos, há uma série de bolsas de estudo com remuneração que permite o desenvolvimento de um trabalho sem a preocupação com a sobrevivência ou com a venda da obra", exemplifica. "O lado bom é que hoje, com sorte, um artista jovem até consegue viver do que produz no Brasil, o que quase não acontecia até há algum tempo, mas ainda não temos uma cultura de artes visuais no país. Dá para imaginar que o Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro ficou fechado por 20 anos e ninguém reclamou?", pergunta ela.

Se o apoio às artes não pode vir das galerias, que dependem das vendas e, por isso, estão sujeitas ao gosto do público, a iniciativa deveria partir do governo e de instituições ligadas a ele, segundo Beatriz. Na opinião do crítico de arte Jacob Klintowitz, apesar de o mercado ter se ampliado e da abertura de novas galerias, não está havendo uma contrapartida da iniciativa pública. "Estamos assistindo a um grande desestímulo à produção artística", diz ele. "Não há bolsas de estudo, e as escolas não ensinam arte, só tendências de mercado. Para piorar, os críticos que entendiam alguma coisa do assunto não têm mais espaço na mídia", completa.

Incentivos de baixo custo

Alberto Beuttenmüller, membro da Associação Internacional dos Críticos de Arte (Aica), alerta para as notícias que os marchands costumam plantar na imprensa, criando assim uma falsa percepção da situação das artes plásticas no país. Segundo ele, ao ler o jornal, um leigo tem a impressão de que tudo vai às mil maravilhas nessa área, já que a imprensa de modo geral se limita a dar notícias sobre o sucesso de brasileiros em exposições internacionais e o movimento nas galerias. A outra faceta, mais dramática, acaba sendo deixada de lado, no seu entender. "Os galeristas fazem muito alarde. Mas qualquer pesquisa informal com artistas brasileiros pode deixar claro que eles não contam com apoio algum". Segundo Beuttenmüller, o governo brasileiro há muito tempo não faz nada pelas artes plásticas. "Artista não dá voto suficiente, é um pequeno contingente", analisa.

É unânime, no mundo das artes, a idéia de que existem medidas que poderiam ser implementadas a baixo custo, mas que teriam grande eficácia. Beatriz Milhazes cita como exemplo o fato de muitos artistas de regiões distantes do eixo Rio-São Paulo não conseguirem sequer ver uma Bienal, por falta de recursos. Segundo ela, o governo poderia ceder algumas passagens aéreas para que pelo menos parte desse pessoal do norte, nordeste, sul e centro-oeste pudesse visitar mostras importantes de São Paulo e do Rio de Janeiro, cidades onde são realizadas as exposições mais famosas.

Criar bons cursos de artes plásticas, até mesmo uma universidade específica onde se pudesse estudar também design, história em quadrinhos, decoração e outras modalidades artísticas, é outra medida que não exige muita verba e contribuiria diretamente para o desenvolvimento de novos artistas, segundo Alberto Beuttenmüller. "Só para se ter uma idéia, no Brasil ainda se ensina arte acadêmica, anterior a 1874, nas pouquíssimas escolas de arte que aqui existem." Fomentar a abertura de instituições sem fins lucrativos, onde o jovem possa mostrar seu trabalho, deveria ser outra das prioridades, assim como a criação de ateliês coletivos, segundo o artista Nelson Leirner.

A boa notícia é que, mesmo em meio a um cenário desestimulante, a arte brasileira acabou firmando raízes, movimento após movimento, e se tornou conhecida internacionalmente, o que, segundo Pedro Corrêa do Lago, representante no Brasil da casa de leilão Sotheby’s, não chegou a acontecer com os modernistas. De acordo com ele, dois nomes muito conhecidos no Brasil, como Di Cavalcanti e Portinari, não desfrutam de reconhecimento tão amplo no cenário internacional. Isso faz com que a arte contemporânea seja, em linhas gerais, mais "vendável" do que a anterior em leilões como os da Sotheby’s e da Christie’s.

Investimento na arte

Outro sinal dos tempos é o surgimento de mais colecionadores no país, ainda que a atuação deles seja discreta e por isso não tenha causado impacto sobre o mercado – para isso, afinal, seria necessário um exército de gente comprando arte. Um dos novos investidores e admiradores da produção nacional é o jovem advogado Paulo Vieira, do Rio de Janeiro. Sua coleção começou a ser montada quando ele decidiu levar sua paixão por arte brasileira para a nova sede do seu escritório de advocacia. A iniciativa é inédita no Brasil, apesar de comum na Europa e nos Estados Unidos. Vieira investe em arte contemporânea, em nomes como Beatriz Milhazes, Leonilson, Vik Muniz e Sandra Cinto, entre outros.

Outro colecionador, este mais antigo, o economista João Carlos Figueiredo Ferraz, vê diversos nomes promissores entre a geração atual. Ele próprio compra regularmente trabalhos de jovens artistas. "Espero que este exemplo seja cada vez mais seguido, pois o Brasil tem talentos que só precisam de espaço", diz.

Enquanto esperam por uma oportunidade, muitos vão trabalhando como podem. É o caso de Vera Martins, de São Paulo, que estudou na Alemanha e vai participar da exposição Brasil 500 Anos em Nova York. "Ela é uma ótima artista, mas sem galeria, porque o mercado considera sua produção não-comercializável", diz Saleti de Barreto Abreu, diretora do Clube da Gravura do Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, um serviço que disponibiliza a seus associados cinco trabalhos artísticos por ano (não só gravuras) mediante o pagamento de uma taxa anual de R$ 1,2 mil, numa iniciativa que visa aproximar o universo artístico do público e até formar novos colecionadores.

Vera Martins criou uma técnica diferenciada: ela desfaz a tela, fio a fio, e a reconstrói, em estruturas que servem como suporte para pintura ou instalações. "Fui selecionada para mostrar esse trabalho em Nova York por uma curadora de lá, e não por um brasileiro", diz ela. "No Brasil falta respeito pelo artista, o que se nota até nas transações comerciais. A galeria leva um ano para fazer o pagamento, e mesmo assim parcelado", acrescenta. Segundo Vera Martins, em países como a Alemanha a situação é bem diferente. O governo fornece uma pensão alimentícia para as melhores artistas mulheres que têm filhos pequenos. "Assim elas têm mais liberdade para produzir. Claro que pedir isso no Brasil seria demais, mas por que não tentar alguma forma de incentivo?"

A jovem artista Rochelle Costi, que é representada pela galeria Brito Cimino, de São Paulo, está no rol dos profissionais do setor que têm de lidar com a falta de verba. Ela diz que a execução de seus trabalhos é cara e, como não existe nenhum tipo de apoio institucional, ela mesma se vê obrigada a arcar com todos os custos. "Há concursos e prêmios, mas geralmente o dinheiro é um estímulo, não basta para concretizar uma obra do começo ao fim", explica. Ela monta painéis com fotos de grandes dimensões, que geralmente demandam mais de R$ 3 mil para sua finalização. Rochelle está participando da exposição itinerante Ultraborrocue, que dos Estados Unidos segue para o Canadá.

Segundo o crítico Alberto Beuttenmüller, os jovens realmente acabam tendo de lutar sozinhos. "As galerias, além de não investir no artista, que arca com as despesas de catálogo e coquetel, ainda levam 50% do valor da venda da obra", diz ele. Nesse aspecto, a situação de outras áreas artísticas, como o cinema, é mais vantajosa, já que há incentivos governamentais à produção nacional, destinados inclusive a iniciantes. O cinema, diferentemente das artes plásticas, gera empregos. "Trata-se de uma indústria que emprega muita gente e, portanto, garante muitos votos", declara Beuttenmüller.

Para Pedro Corrêa do Lago, a esperança pode estar no maior interesse do público por arte, o que começa a acontecer no Brasil. "De uma maneira ou de outra, há mais pessoas com vontade de conhecer a arte brasileira e até de comprar obras", afirma.

O MAM de São Paulo aproxima os associados do mundo artístico por meio do Núcleo Contemporâneo. Isabella Prata, a coordenadora, conta que o grupo visita exposições, assiste a palestras e conversa com artistas plásticos. "O objetivo é tornar o universo artístico mais próximo do dia-a-dia das pessoas", diz. Segundo ela, a maioria dos associados está na faixa etária dos 35 anos e é profissional liberal. Um público parecido com o que almeja diversificar os investimentos, de acordo com João Adamo, diretor do Deutsche Bank.

Renato Gouvêa Magalhães Júnior, consultor de arte, diz que a maior parte do público ainda vê a produção artística como algo elitista, reservado a um punhado de entendidos. "No entanto, as galerias tratam bem qualquer um, não é necessário ser um iniciado para visitar uma mostra e fazer perguntas", afirma ele.

Falta educação artística

Segundo Beatriz Milhazes, como nas escolas brasileiras não há no currículo a disciplina história da arte, ao contrário do que acontece em outros países, realmente são poucas as pessoas que têm acesso às informações artísticas. A conseqüência mais óbvia, de acordo com ela, é que essa forma de expressão não chega ao grande público, que não se interessa por ela. "Nesse contexto, não é de estranhar que as artes plásticas sejam vistas como algo elitista." Outra decorrência desse distanciamento é o abafamento de possíveis novos talentos, por falta de incentivo na infância. "Minha mãe é professora de história da arte, cresci num ambiente propício, mas conheço muitos jovens artistas que só vão ter informações dessa área depois de adultos, como a maioria absoluta dos brasileiros."

Para Saleti de Barreto Abreu, a expectativa é que, com a maior participação de brasileiros em mostras internacionais, o quadro atual comece a mudar, ainda que lentamente. "A arte contemporânea nacional está em alta, apesar dos problemas, e acredito que vá continuar assim", declara Saleti. Segundo ela, os anos 80 contribuíram muito para aproximar mais os leigos do universo artístico. Artistas como Tunga e Leda Catunda, dessa geração, começaram a expor no exterior e a aparecer nos jornais, mostrando que a arte brasileira está mais viva do que nunca. Para Saleti, isso preparou o terreno para as gerações posteriores, que encontram agora uma boa aceitação de seus trabalhos – mesmo que, por vezes, mais no exterior do que propriamente no Brasil. Rochelle Costi, por exemplo, diz que lá fora é até mais fácil participar de exposições do que em solo nacional.

De qualquer forma, o artista brasileiro não tem mais necessidade de morar no estrangeiro para conseguir divulgar seu trabalho, segundo Alberto Beuttenmüller, diferentemente do que acontecia até há algum tempo. Ele cita dois bons exemplos: João Câmara, que continua vivendo em Olinda, e Siron Franco, que mora em Goiás, ambos atuantes e com prestígio firmado.

Com um empurrão decisivo do governo, por meio da criação de escolas, bolsas de estudo e mostras heterogêneas patrocinadas com recursos públicos, o setor poderia deslanchar, acreditam os críticos de arte, artistas e consultores. "Tudo isso é papel do governo", afirma Jacob Klintowitz. "Vamos esperar que se faça luz rapidamente, até porque já está passando da hora", acrescenta Beatriz Milhazes.


Arte que vem do barro

Em Joanópolis (SP) artista tenta romper barreiras do isolamento

HENRIQUE PITA

O ateliê é um barracão amplo e iluminado por luz natural. Nas paredes, nas estantes, no chão, por todos os cantos, anjos, querubins, duendes, santos, presépios, animais e enfeites de todo tipo. Tudo de barro, retirado do próprio quintal, um pequeno sítio localizado em Joanópolis (SP), cidade de 10 mil habitantes a 120 quilômetros da capital do estado.

No jardim, espalhados em meio às plantas, arbustos e árvores, diversos objetos de arte compõem a decoração, disputando espaço com as flores. Na casa de Mércia Borges, tudo respira arte. Nas paredes, nos móveis, na varanda, amostras eloqüentes de grande criatividade. Até os tradicionais penduricalhos que se colocam na porta da geladeira são especiais: pequenos duendes, ou simpáticos casaizinhos se beijando.

Autodidata e artesã por excelência, Mércia, cujo nome verdadeiro é Mercedes, brinca com o barro desde criança. Sua distração de menina que morava na cidade pequena do interior era fazer casinhas com a argila utilizada pelo pai, Salvador Borges, um exímio artesão que entre outras coisas fabricava tijolos, foices, enxadas, móveis e ferraduras.

Das casinhas passou a produzir figuras diversas, principalmente formas humanas. Hoje as peças preferidas são os magníficos anjinhos em poses tranqüilas, como que descansando de uma tarefa recente. Mas não faltam imagens da Virgem cercada de querubins a seus pés, a exemplo das estátuas barrocas. E peças mais ousadas, como um Cristo estilizado, o copo-de-leite que brota de um prato, um sapo, duendes, quadros em relevo e os presépios.

"Parece um sonho, mas as peças vão fluindo de minhas mãos", diz ela modestamente, quando lhe perguntam de onde tira tanta criatividade, sensibilidade e força de expressão artística.

Mãe de dois filhos, Mércia gosta de ver os três netos também brincando de fazer arte, oferecendo-lhes o que nunca teve, isto é, aulas de escultura. Sem formação artística, ela é um exemplo clássico do artesão popular brasileiro descoberto por acaso, e que nunca recebeu incentivo algum, de quem quer que seja, muito menos de instituições públicas. Mesmo assim pôde seguir teimosamente, aos trancos e barrancos, uma carreira sofrida. Se é que se pode chamar de carreira tantos anos de desconhecimento, com aparições fortuitas na Casa do Artesão de Joanópolis.

Foi nesse local que teve a sorte de ser descoberta, há cerca de dois anos, pela professora Neide Rodrigues Gomes, pesquisadora de arte e presidente da Associação Brasileira de Folclore e do Museu de Folclore Rossini Tavares de Lima, em São Paulo, antiga freqüentadora da cidade, onde costuma reunir, em agradável sítio, amigos, artistas e ex-alunos de música. Graças à iniciativa da professora, Mércia teve a chance de apresentar suas peças a um público maior, o que aconteceu em setembro na última edição do evento Revelando São Paulo, um megaencontro de artistas populares e artesãos de diversas cidades do interior paulista, promovido pelo governo do estado no Parque da Água Branca, na capital. Entre desfiles de carros de boi, shows de música caipira e folias de reis, inúmeros stands ofereciam aos paulistanos a mais genuína produção de artesanato. Em um deles, silenciosa em seu canto, cercada de esculturas, Mércia recebia os visitantes, todos admiradores de sua arte, com sorriso tímido, enquanto suas mãos davam forma angelical a mais um pedaço de argila negra. Para produzir suas peças, não usa modelos nem livros. Vai tirando as figuras de sua imaginação inesgotável, embora, sempre atenta, não deixe de observar o que se passa a seu redor. Enquanto esculpia uma peça, pôde perceber, rapidamente, um garoto abaixado amarrando o tênis. Feliz com a cena, não perdeu tempo: o anjinho que nascia em suas mãos ganhou as feições do garoto, com o corpo debruçado sobre os pés, e as mãozinhas amarrando um sapato imaginário.

Sua única passagem por uma escola de artes foi efêmera. Apenas quatro meses no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, para aprender a técnica de esculpir cabeças. O resto, como a proporção, movimento, feições, expressão corporal, tudo isso ela tira do nada, com incrível criatividade. "Estou aprendendo coisas maravilhosas", diz humildemente, como se um mestre invisível dirigisse suas mãos a cada nova escultura.

O ateliê de Mércia é um salão nos fundos de sua casa, escondida em um pequeno sítio. Um declive do terreno protege o forno, ao lado de outro barracão menor, onde ela prepara o barro, extraído dos barrancos próximos. Aprendeu sozinha a preparar a argila, livrá-la das impurezas, batê-la numa peça improvisada de metal, que já foi centrifugadora de mel. Depois é deixá-la descansando antes de transformá-la em pura arte, seguindo os caprichos de sua sensibilidade. Criativa, prática, incansável, utiliza quaisquer recursos domésticos para completar seu trabalho. Facas de cozinha, palitos, pedaços de arame e até sabugo de milho são objetos de uso comum, para dar à peça o acabamento mais adequado.

Conhecer a obra de Mércia Borges é surpreender-se com a qualidade, imaginação e técnica da artista. A surpresa cresce quando ela conta sua história de autodidata, pessoa humilde que não freqüentou escolas, galerias ou ateliês famosos, nem teve mestres e muito menos marchands. Mas com toda essa qualidade artística, por que a dificuldade de conseguir um lugar ao sol? Coisas de Brasil, certamente, país em que sobreviver de arte talvez seja a mais difícil das artes.

A terra do lobisomem

Joanópolis, onde fica o sítio-ateliê de Mércia, faz questão de ser conhecida como "a jóia da Mantiqueira", um slogan, aliás, criado pela professora Neide. Estância turística, deve o nome a São João, padroeiro do município desde os tempos em que era apenas uma vila de Piracaia. A cidade se orgulha de suas atrações naturais, como as matas, muitas cascatas, entre as quais a mais famosa é a cachoeira dos Pretos, uma das maiores do Brasil, com 154 metros de queda. O município fica encravado na serra da Mantiqueira, onde, de um lado, uma curiosa seqüência de morros forma a figura de um gigante adormecido. É a divisa entre Joanópolis e Extrema, já no estado de Minas Gerais. Na região montanhosa há vizinhos ilustres, como Monte Verde, São Francisco Xavier e Campos do Jordão.

Enquanto os folhetos e cartazes divulgam a jóia da Mantiqueira, os moradores e visitantes preferem chamar a cidade popularmente de "a terra do lobisomem". O mito brasileiro, na verdade, transformou-se em excelente propaganda para o município. Tudo começou em 1983, quando uma pesquisadora local, Maria do Rosário Tavares de Lima, publicou um estudo folclórico denominado Lobisomem: Assombração e Realidade. Desde então, o personagem adquiriu cidadania e ares de simpática malandragem, tendo sido escalado oficialmente para representar a cidade e atrair os turistas, em vez de assustá-los.

Quem sabe essa figura, meio homem, meio lobo, em breve divida o espaço que ocupa no imaginário da cidade, e Joanópolis fique também conhecida como a terra em que Mércia Borges faz milagres com pedaços de argila.