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Mercosul ou Alca?

 


Integração: um dilema sul-americano

Em palestra pronunciada no dia 21 de junho de 2001, no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Fecomercio (Federação do Comércio do Estado de São Paulo), o economista Michel Alaby falou sobre a situação atual do Mercosul e as perspectivas de adesão à Alca

MICHEL ALABY – Vou começar com duas colocações em relação ao Mercosul. Primeira: se alguém é pobre e se une com outro pobre, fica mais pobre. Segunda: o Mercosul não é como o jogo do bicho, em que vale o que está escrito.
Vejamos alguns indicadores, principalmente da Argentina. No país vizinho o PIB em 2000 ficou em US$ 290 bilhões e as reservas em maio atingiram US$ 26 bilhões. Grosso modo, eles têm recursos para enfrentar os ataques da especulação. A dívida externa é grande, quase US$ 150 bilhões, e a taxa de desemprego oficial era de 15% em 30 de maio. A recessão já dura 36 meses. O crescimento em 2000 foi negativo: -0,5%. A previsão para 2001 estaria entre -0,3% e -0,5%. A atividade industrial, de maio de 2000 ao mesmo mês de 2001, caiu 3,7%, e o comércio apresentou queda de mais de 12%. O PIB per capita sofreu redução de 9% do terceiro trimestre de 98 ao primeiro trimestre do ano 2000. A dívida pública é 93% contratada em dólar. No caso da dívida privada das pessoas físicas e jurídicas, esse índice é de 83%. O déficit público no primeiro trimestre atingiu US$ 3,1 bilhões, superior em US$ 1 bilhão à meta fixada. Só para se ter uma idéia, estes dados são de 31 de maio: depósitos em pesos de 11,1 bilhões, e em dólares de 43,5 bilhões, porque eles têm um sistema bimonetário e são permitidos depósitos em dólares.
A meta para o déficit do ano 2000 era de 6,5%, com um rombo previsto entre 8,5% e 9%. Em outras palavras, seriam necessários US$ 2 bilhões a US$ 2,5 bilhões este ano. Houve uma troca de bônus bem-sucedida de US$ 29,5 bilhões da dívida de curto prazo para longo prazo, a vencer em 2005 e 2008. A taxa de juros foi de 15,75%, superior aos 11% da taxa máxima paga até então. Eles pretendem fazer uma nova troca, a ser equacionada em euros, em valores entre US$ 1 bilhão e US$ 2 bilhões, o que está bastante complicado.
O déficit em conta corrente é outro dado importante. Em 1999 foi de US$ 12,4 bilhões, em 2000, de US$ 9,4 bilhões, e a previsão para 2001 é de US$ 10,3 bilhões. O que eles precisam para pagar a dívida? Em 2001 o valor foi calculado em US$ 25,7 bilhões, isso já depois da troca. Em 2002, US$ 22,4 bilhões; em 2003, US$ 19,3 bilhões; em 2004, US$ 16,5 bilhões; e em 2005, US$ 13,6 bilhões. Na realidade, o risco maior é em 2002.
A âncora cambial, o currency board, foi implantada pelo ministro da Economia Domingo Cavallo, desde 1º de abril de 1991. Infelizmente, o currency board trouxe alguns problemas: provocou a desaceleração da economia, em função de vários fatores; privou o país de usar a taxa de câmbio para absorver choques externos, como acontece no Brasil; e reduziu a possibilidade de agir contra problemas gerados internamente. Tudo isso porque o único instrumento que restou para controlar a economia foi a taxa de juros.
O quadro atual continua recessivo. Infelizmente, há uma deterioração do valor do peso em decorrência da queda nos termos de troca. A pauta argentina de exportação basicamente é de commodities, e isso fez com que a exportação crescesse não em valor, mas em volume.
Mas por que tudo isso aconteceu? Com o governo Menem, os gastos públicos explodiram, o que provocou um impacto sobre a dívida pública, que era de 29% do PIB em 1994 e passou para 49,5% no ano 2000, um crescimento assustador. Isso trouxe uma alta na taxa de juros e redução da competitividade da economia argentina. Enfim, os custos aumentaram e a competitividade caiu aproximadamente 50%.
Qual é a chave para inverter esse quadro? Crescimento econômico, recuperação do setor de construção civil com pacotes de infra-estrutura, que o governo tem adotado, melhoria dos resultados fiscais, reforço do ajuste fiscal via corte de gastos, o que é um pouco complicado, principalmente em períodos pré-eleitorais, e avanço da simplificação tributária. É evidente que essa reversão também corre riscos que dependem do humor do mercado.
A ajuda do FMI e de organismos internacionais sempre será bem-vinda. Porém até quando? Em 2000 a Argentina recebeu uma blindagem e houve o compromisso de congelar gastos públicos da União e das províncias até 2005. Em 2001 o pacote recebido foi de US$ 40 bilhões. Na realidade, precisavam só de US$ 20 bilhões, mas se comprometeram a privatizar o sistema da previdência e aumentar o limite de idade para aposentadoria das mulheres de 60 para 65 anos, o que ainda não foi aprovado e dificilmente será pelo atual Congresso até 2002.
Em março deste ano, o país aprovou o quinto plano de competitividade. Ele previa alteração da Tarifa Externa Comum (TEC) – o que provocou até um mal-entendido com o Brasil –, redução dos gastos públicos, aumento de impostos e poderes especiais ao ministro Domingo Cavallo. Nas três semanas anteriores a esse plano, houve três trocas de ministros. Quer dizer, conceder poder especial ao ministro Cavallo é mais ou menos como editar uma medida provisória no Brasil. Nesse quinto plano, foi aprovada a lei da competitividade, com o objetivo de cortar o déficit público entre US$ 2 bilhões e US$ 2,5 bilhões em 2002, o que será difícil atingir por causa das províncias. Criou-se a CPMF, a exemplo do Brasil, que começou com alíquota de 4 por mil nos débitos e 4 por mil nos créditos, e nos créditos é compensável com o IVA (Imposto sobre Valor Agregado). Salários e poupança não pagam. A vigência vai até 31 de dezembro, e há notícias de que o ministro já aumentou a taxa para 6 por mil. Ele também determinou que pagamentos superiores a US$ 1 mil devem ser feitos obrigatoriamente com emissão de cheques, uso de cartões e outros documentos (antes o valor era de US$ 10 mil).
Foram reduzidos de 11% para 8% os encargos trabalhistas para empresas que empregam grande quantidade de mão-de-obra. Criou-se um bônus fiscal de 10% no Imposto sobre Valor Agregado para empresas que fabricam bens de capital e fixou-se uma meta de 20% de corte nos custos de produção. O ministro afirmou que esse corte corresponde à sobrevalorização do peso, que seria de 20%. Muitos empresários e a própria União Industrial Argentina dizem que é de 50%.
Quais são os poderes especiais do ministro? Em primeiro lugar, promover a reforma do Estado. Ele pode reduzir benefícios dos servidores e tornar a administração mais eficiente. Quer até passar a arrecadação tributária e a cobrança dos impostos para o setor privado, já que o índice de sonegação chega a 30% do PIB.
Segundo ponto: privatizar. Na realidade, Cavallo não conseguiu ainda transformar certos organismos estatais em sociedades anônimas. É o caso da Receita Federal e da Alfândega. Ele pode também usar ativos do Estado como garantia para a emissão de títulos da dívida, bem como acabar com as isenções fiscais sobre ganhos de capital e juros de investimento, o que ainda não implementou. Isentou do Imposto de Renda o reinvestimento de lucros que tenha prazo de pelo menos 12 meses. Mas os repasses das províncias e os subsídios regionais já existentes não serão atingidos. Aí é que está o grande problema da Argentina: o ministro dificilmente cortará o déficit por causa das províncias.
Em relação à Tarifa Externa Comum, Cavallo alterou a tarifa sobre importação de bens de capital e de consumo originários de terceiros países, o que gerou um mal-entendido com o Brasil. Para os bens de capital, ele zerou a tarifa. São mais ou menos 62 itens da nomenclatura comum do Mercosul e quatro itens do setor de mobiliário, medicina e construções pré-fabricadas. Em bens de consumo, ele elevou a alíquota para terceiros países, até então de 35%. São mais ou menos 1.240 produtos. Ou seja, ele favoreceu o Brasil em detrimento de terceiros nos setores de vestuário, têxteis, calçados, brinquedos, eletrodomésticos, entre outros. Em outra área de bens de consumo, que inclui 273 itens de construção, material médico-hospitalar, odontológico, fotográfico, etc., manteve a alíquota entre 20% e 26,6%, favorecendo também o Brasil.
Já na época desse quinto plano, o ministro argentino propôs que a fórmula de cálculo da conversibilidade se alterasse para euro e dólar, 50% cada um, em relação ao peso argentino. Se ele utilizar essa proposta, a Argentina vai passar de um sistema unitário de currency board para um dual, mantendo ainda a conversibilidade, mas permitindo no futuro oscilações no valor efetivo do peso frente às demais moedas estrangeiras. Com isso teria dado um passo para a flexibilização da política cambial.
É evidente que é uma proposta complexa, que vai ser estudada pelo FMI. O fundo inclusive não ofereceu nenhum aconselhamento. Muito pelo contrário, ele espera para ver o que acontece, assim como o Banco Mundial, o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e outros organismos internacionais. Dentro das regras da OMC (Organização Mundial do Comércio), porém, o que a Argentina fez não é permitido. O Brasil, como qualquer país do mundo, poderia criticar esse sistema de câmbio duplo ou propor uma ação contra ele na OMC.
Como a relação dólar/euro é flutuante, o sistema dual praticamente leva a Argentina a adotar o câmbio flexível. Ele pode gerar impacto nos preços dos produtos no mercado interno e não permitir ganhos imediatos de competitividade na exportação. Em minha opinião, deveriam ser incluídas outras moedas nessa cesta, tais como o real, visto que o Brasil é seu principal parceiro. Assim se amorteceria, grosso modo, a desvalorização do real, permitindo que artificialmente a economia argentina tivesse um ganho de competitividade. Caso haja mudança para o sistema dual, os efeitos imediatos serão nulos, pois os problemas argentinos são o desenvolvimento e a competitividade do país.
Veio depois o sexto plano. Domingo Cavallo adotou o câmbio duplo, utilizando o factor de empalme, que é mais ou menos a convergência entre dólar e euro. Para ele trata-se de uma medida comercial. De certo modo, até poderíamos concordar. Por quê? Porque o importador vai pagar adicionalmente as variações da moeda norte-americana e européia em relação ao peso, e vai subsidiar o exportador. É evidente que não estão inclusas nesse subsídio ou nesse câmbio duplo as exportações de combustíveis e derivados. Sem os combustíveis, o que é gerado na exportação é pago como subsídio ao exportador, sem afetar o Tesouro.
Além disso, o governo argentino reduziu a tarifa de importação de bens de consumo para 27%. Aumentou ainda o limite de isenção do Imposto de Renda para pessoa física de US$ 1,5 mil para US$ 4 mil, para incentivar o consumo. E determinou que o recolhimento do IVA passe a ser feito na data do pagamento da fatura. No Brasil, o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) e o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) são pagos na emissão da nota. Recolher no pagamento da fatura é até mais justo, mas vai complicar enormemente o fluxo de caixa do Tesouro.
Mais: em dois anos, o IVA passará dos atuais 21% para 16% (originariamente era de 18%). Além disso, Cavallo incentivou a construção civil, aumentando a dedutibilidade dos juros hipotecários de US$ 4 mil para US$ 20 mil. Ele vai cobrar o IVA de 10,5% sobre transporte público, mas deu à população o bilhete único. Aumentou também de 11% para 16% a contribuição sobre a seguridade social (o governo tinha reduzido essa taxa). Esse aumento, porém, permite às empresas compensar o valor do IVA, que é praticamente o único imposto.
O governo usa ainda os reintegros, que são os reembolsos aos exportadores. É como uma devolução de impostos para quem produz e exporta. Só vale para terceiros países. Era de zero a 12% e passa para 8% a 12%, porque 8% é o subsídio do câmbio duplo. O preço da gasolina foi reduzido em 7 centavos e o diesel subiu 10 centavos. Mas há a possibilidade de compensar no IVA 0,08 centavos desse aumento. O IVA é assim amplamente utilizado como elemento compensador. No final, em vez de recolher, talvez o governo tenha de pagar créditos. Mais: os exportadores poderão deduzir do IVA 100% das contribuições sociais pagas. Esse controle vai ser muito complicado. A previsão de ganhos fiscais é de US$ 600 milhões e, na minha opinião, a competitividade será medida pelo custo final e não pelo câmbio.
Para dar certo o plano exigirá certas condições. A principal será manter ou diminuir o salário nominal. Ele já vem sendo reduzido através do tempo. Outra condição é aumentar a produtividade, o que exige investimentos. Para isso Cavallo quer diminuir o imposto de importação de bens de informática e telecomunicações, na tentativa de trazer empresas para investir no país. Outra condição: o crescimento das exportações argentinas, commodities principalmente, o que não se tem visto no curto prazo.
E para o Brasil, quais as conseqüências? Há empresas brasileiras na Argentina com ociosidade, principalmente as que produzem para o mercado local – aquelas que ficaram, pois desde 1999, mais precisamente depois da desvalorização cambial, pelo menos 70 empresas brasileiras e argentinas deixaram o país e vieram para o Brasil, com destaque para o setor têxtil, de autopeças e de alimentos.
E quais são as conseqüências para o Mercosul? A união aduaneira já está comprometida, com 30% do universo tarifário alterado. Se o setor de bens de informática e telecomunicações for incluído, a mudança vai chegar a 50%. Uruguai e Paraguai vão exigir o mesmo tratamento. Criou-se um distanciamento na coordenação macroeconômica. Há necessidade de apoio do Brasil, caso contrário a cisão do Mercosul será fatal. Temos de fazer política industrial, mas do Mercosul, não da Argentina em detrimento do Brasil. É muito arriscado reduzir tarifas de informática e telecomunicações. Com essa redução, não teremos poder de barganha para negociar com Estados Unidos e Europa.
Até 15 de fevereiro do ano que vem vamos montar a metodologia e os critérios de redução das tarifas de importação na Alca (Área de Livre Comércio das Américas). Com a União Européia, penso que é ponto de honra não reduzir, ou só fazê-lo se houver contrapartida.
E é preciso também conter as palavras do ministro Cavallo, que é um marqueteiro de primeira linha, só usa factóides. Aqui ele fala uma coisa, na Espanha fala outra, e nos Estados Unidos outra diferente. Na realidade, a Argentina quer o Mercosul, mas ao mesmo tempo quer Estados Unidos e Europa, principalmente os norte-americanos, por causa do dinheiro.
Vejamos alguns problemas que a Argentina trouxe ao Brasil. A questão do açúcar é uma delas, infelizmente de difícil solução, pois há usineiros no norte da Argentina. Só que o Brasil é o segundo maior produtor do mundo, e os argentinos subsidiam seus usineiros. Temos algumas medidas antidumping, como no caso do frango, de máquinas de lavar roupa, de cabos de fibra óptica, entre outros. E há uma proibição por parte do Brasil, para o ano que vem, de importações de produtos vegetais cultivados em áreas de risco da febre aftosa. Brasília fixou também uma sobretaxa na importação de leite. Além disso, um dos grandes problemas é que, depois de negociar por 12 meses, o Brasil ainda não publicou seu regime automotriz. E agora a Argentina quer simplesmente voltar atrás, o que penso que é até bom para o Brasil, isto é, liberar o regime automotriz total no Mercosul e criar o livre comércio. É evidente que os argentinos querem isso por causa da contrapartida, que seria Brasília concordar em reduzir a TEC para zero por cento para caminhões, ônibus e máquinas agrícolas. Lembremo-nos de que 81% dos caminhões que rodam na Argentina são brasileiros. Do ponto de vista de automóveis e de autopeças, não vejo nenhum problema, porque produzimos seis vezes mais do que a Argentina. A questão são os caminhões, ônibus e máquinas agrícolas.
A Argentina também solicitou à OMC a prorrogação dos acordos de benefícios do regime automotriz, mas isso ainda não foi aprovado. O Paquistão e a Indonésia também têm essa idéia.
Falemos um pouco da Alca. Estivemos em Buenos Aires, em um encontro de mais ou menos 500 empresários brasileiros e entidades de classe. Houve reuniões bilaterais com o setor público, e pude perceber que ainda há interesses conflitantes em relação à Alca. Alguns setores a querem imediatamente, isto é, para 2003, principalmente o têxtil e a agroindústria. Outros só a desejam para 2005, especialmente os de máquinas e equipamentos e de informática. É evidente que postergar em demasia não é a solução, mas antes disso deveríamos pressionar o governo brasileiro, Executivo e Congresso, para concretizar as reformas ou, pelo menos, definir uma política industrial, que não temos ou, se temos, ninguém conhece.
Até o final de 2001, o Chile pretende assinar um acordo de livre comércio com os Estados Unidos, mas isso me parece duvidoso. O presidente Bush dificilmente vai receber o fast track ou via rápida, hoje chamada TPA, que é a autorização para assinar acordos comerciais sem interferência ou sem rejeição do Congresso. (Esta palestra foi realizada antes dos ataques terroristas aos Estados Unidos)
Bill Clinton, antes de sair, aprovou no Congresso dois itens fundamentais. Um deles é a lei do meio ambiente e o outro o "direito trabalhista", ou o direito social. Todos os acordos de livre comércio devem incluir essas cláusulas, como já está previsto no acordo com o Chile. Dificilmente vamos ter fast track em 2001, embora o Executivo venha incentivando os agricultores norte-americanos a pressionarem o Congresso para aprovar essa via rápida.
O que se pode perceber é que a Alca é prioridade do governo Bush. Por quê? Muito mais do ponto de vista político do que econômico, os EUA precisam de aliados na América Latina em contraposição à Europa e Japão. Se não conseguirem o fast track, vão tentar acordos bilaterais com o Brasil e a Argentina principalmente.
Na reunião na Argentina pudemos perceber que do lado governamental avançou-se muito pouco na questão do combate ao subsídio e ao protecionismo. O farm bill norte-americano, votado em 2000 para valer em 2001, concede US$ 70 bilhões de subsídios aos produtores agrícolas locais. Nesse ponto o Brasil não deveria restringir-se a insistir no combate ao subsídio. Precisamos é evitar o subsídio à exportação a terceiros mercados. É aí que sofremos concorrência desleal. No caso do frango, por exemplo, os americanos oferecem um ano de prazo para pagamento com 4% de juro, além de subsidiar o exportador americano em US$ 200 por tonelada. Além disso, os Estados Unidos têm programas humanitários que aproveitam estoques. Por exemplo, doaram ao Iraque a título de ajuda humanitária 100 mil toneladas de frango. Paralelamente proibiram esse país de comprar frango do Brasil.

ISAAC – De um lado bombardeia e de outro dá comida.

ALABY – Essa é a política. Mas na área governamental vejo pouco avanço na definição de estratégias para negociação. Temos muito de bom-mocismo, quer dizer, queremos ganhar mas não sabemos como e onde vamos ganhar. Determinou-se também naquela reunião que 2005 é a data-limite para aprovar a Alca nos 34 países, com exceção de Cuba, para entrada em vigor no ano seguinte. Definimos os calendários de negociação, metodologia, acordos tarifários, eliminação de restrição de subsídios, medidas de salvaguarda e a tarifa-base para as negociações.
Quanto às regras de origem vigentes no Mercosul, trata-se de uma questão complicada, porque com a globalização não se sabe quem produz o quê, nem onde. Por exemplo, em Nova York vi três tênis Nike iguais, fabricados em três países diferentes, Malásia, Paquistão e Indonésia. Qual é o critério de origem a utilizar? O Brasil exige regras de origem. No Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte), elas são definidas pelos próprios empresários, em comitês ou entidades de classe, e não há controle em demasia. Mas lá a realidade é outra.
Na agricultura definiram a Alca como zona livre de subsídios. É uma norma muito mais teórica do que prática, pois não houve consenso quanto aos subsídios à produção interna. Essa questão, nos Estados Unidos e Europa, vai muito além da agricultura. O produtor rural deve receber apenas 10% dos subsídios e o restante vai para o banqueiro, as multinacionais e todo o grupo lobista. Por exemplo, a Europa usa o subsídio para manter o homem no campo e cuidar da paisagem. Há toda uma teia de interesses.
Temos de pressionar o governo para que a redução tarifária esteja vinculada a contrapartidas. Esse é um ponto. Segundo ponto: até 2015, começando em 2005, pretende-se ter 85% dos produtos transacionados na Alca livres do imposto de importação.
Há mais um destaque em relação à Alca, muito importante. É o desconhecimento do assunto no Brasil. Fizemos uma pesquisa na Adebim, com cerca de mil empresas: 50% delas já tinham ouvido falar da Alca. Destas, 90% tinham medo dela. Por que o medo? Noventa e cinco por cento responderam que não sabiam. E 90% disseram que não haveria necessidade de reformas para o Brasil assinar a Alca. A falta de informação é muito grande. O Congresso nacional atua muito pouco, e tenho a impressão de que ele nem sabe exatamente o que é esse processo de negociação. E nós, empresários, estamos muito mais preocupados em nos proteger do que em agredir comercialmente. A melhor defesa é o ataque, e não é só no futebol. Em vez de unirmos nossos objetivos, temos interesses conflitantes. Por exemplo, na Argentina o representante de nosso setor têxtil, em plena reunião com todos os presentes, se levantou e disse: "Eu quero a Alca em 2003". A posição brasileira é 2005. Se em relação à Alca mostramos esse desconhecimento, imaginem no caso da União Européia. Num encontro no Rio de Janeiro entre União Européia e Mercosul, o total de empresários brasileiros não passava de 10% do número de europeus que vieram. É evidente que devemos estar preocupados com o dia-a-dia, pois não quebrar a empresa é a primeira preocupação. Apesar disso, precisamos ter uma visão um pouco mais de longo prazo. Sei que é difícil visualizar o longo prazo no Brasil, diante da instabilidade econômica, mas é necessário.

ISAAC JARDANOVSKI – Gostaria que você examinasse algumas questões. A primeira diz respeito a uma crítica que está surgindo quase generalizada em relação ao câmbio duplo, segundo a qual ele é um convite, uma porta aberta à corrupção. A segunda questão é sobre o câmbio no Brasil. Já começam a surgir vozes que afirmam que o sistema flutuante está se esgotando e há pessoas que preconizam a volta a um sistema de câmbio fixo ou de bandas. A terceira e última questão, talvez a mais delicada: você vê alguma chance real de sobrevivência do Mercosul?

ALABY – Com relação ao câmbio duplo na Argentina, o Brasil já tentou isso várias vezes. Ele tem curta duração. O próximo passo do câmbio duplo é a desvalorização mesmo da moeda. Na Argentina a mudança ocorrerá pelas bandas cambiais, como no Paraguai. O Uruguai já passou da banda cambial de 3% para 6% de variação. O Chile também já fez essa alteração.
Com relação à situação brasileira, para utilizarmos câmbio flexível deveríamos ter pelo menos condições macroeconômicas que permitissem o equilíbrio entre oferta e procura. Ou atuações constantes dos operadores, de tal forma que não houvesse grandes desvalorizações. Em minha opinião, o Brasil fez outra maxidesvalorização. Penso que devemos discutir se esse modelo está ou não esgotado. No entanto, voltar para um regime de bandas sem o equacionamento das outras variáveis econômicas vai somente manter o erro.
Com referência ao Mercosul, tenho a impressão de que, com a chegada da Alca, acaba o Mercado Comum do Sul. Hoje, devemos salvar o Mercosul com medidas, como dizem os argentinos, muito pontuais, mas sem favorecer em demasia os interesses do país vizinho, em detrimento do mercado brasileiro, quer dizer, nem tanto ao céu nem tanto à terra, senão vamos quebrar a espinha dorsal da indústria nacional e seremos simples exportadores de commodities, como é a Argentina. Não podemos quebrar a indústria brasileira para recuperar o padrão industrial argentino.
Quanto a câmbio e corrupção, é evidente que, se houver câmbio duplo, pode-se subfaturar a exportação e a importação, transformar câmbio financeiro em comercial. Enfim, fica tudo aberto, como aconteceu no Brasil quando tínhamos câmbio duplo: sempre se usavam políticas informais. Mas esse sistema não terá durabilidade.

JOSUÉ MUSSALÉM – A Argentina é nosso segundo grande parceiro individual, mas os Estados Unidos são o primeiro e, em termos de bloco econômico, a União Européia é o maior centro de comércio exterior para o Brasil. Será que dependemos tanto assim da Argentina? Outro ponto: o senhor tem razão quando fala da dificuldade brasileira para exportar. Isso faz parte da história econômica recente do país, dado o processo de substituição de importações que fechou o Brasil durante 60 anos. Não é fácil encontrar um empresário brasileiro com capacidade real de exportação, principalmente na área de média, micro e pequena empresa. Pergunto: a União Européia não poderia ser vista como um contraponto à pressão norte-americana para a formação da Alca, apesar das barreiras não-tarifárias que existem na Europa?
Finalmente, uma dúvida que me deixa intrigado: existirá Alca sem a participação do Brasil? Será que temos condições de não entrar na Alca?

ALABY – O Brasil é uma noiva disputada por dois pretendentes. Só que a noiva não está sabendo jogar corretamente para tirar partido de ambos. É evidente que dificilmente haverá Alca sem o Brasil. Mas também é evidente que o país, com o mercado interno que tem e tudo o mais, deveria negociar com a União Européia e Estados Unidos pelo menos algumas vantagens. Não dá para ganhar tudo, mas podemos perder o mínimo, e perder nos setores em que sabemos que não vamos ganhar. Por exemplo, vendemos a banda C para a União Européia e não obtivemos nada em troca. Agora temos a discussão da TV digital. Imaginem o mercado que o Brasil representa nessa área. Estamos ganhando alguma coisa? Nada. O governo brasileiro não usa seu poder de barganha, tem muito de bom-mocismo. Enquanto os concorrentes viajam com grandes comitivas e o presidente do país leva um contrato para o anfitrião assinar e comprar avião, o presidente brasileiro vai para Timor Leste, Coréia do Sul, enfim, mercados não importantes para o Brasil. Um exemplo: já devia ter ido à China pelo menos dez vezes. A Índia é outro mercado emergente. Enfim, mercados que pudéssemos ter como aliados ou como alternativos para colocar nossos produtos.

HÉLIO DE BURGOS-CABAL – Estamos, por assim dizer, pressionados por vários dilemas. Desesperamo-nos porque o Brasil, conforme o senhor afirmou, não conquista este ou aquele mercado. Todavia, é preciso lembrar que eles não se conquistam com lembranças, mas sim com competitividade. Infelizmente, quando deixamos de penetrar no mercado indiano ou em algum outro, isso não acontece porque não queremos fazê-lo, mas em razão de não podermos, pois nossos concorrentes já estão instalados lá. Enquanto o Brasil não elevar sua capacidade competitiva, tudo o mais serão ilusões, desejos ingênuos.
Em relação ao câmbio múltiplo, não é verdade que tenha ocorrido no Brasil apenas por um lapso de tempo. Na realidade ele permaneceu do final do segundo governo Getúlio Vargas até praticamente a década de 1990. Foram 40 anos de câmbio múltiplo. Curiosamente, no passado, como diz Domingo Cavallo, não houve contágio entre o câmbio múltiplo e a taxa cambial, que se conservou basicamente inalterada até o fim do governo Vargas. Só depois é que o câmbio múltiplo se alterou, pouco a pouco, em função da desvalorização cambial. Foi ele que permitiu ao Brasil manter o equilíbrio de sua balança comercial e balanço de pagamentos. Não deve, portanto, ser tão malsinado assim.

ALABY – Era na época da Sumoc, a Superintendência da Moeda e do Crédito. O sistema, apesar de funcionar, tinha contingenciamentos, cotas e corrupção. Mas hoje a realidade é outra, e não permite controles tão claros como naquela época.

BURGOS-CABAL – De qualquer forma, a corrupção a que se alude é um fato ou tendência que permeia toda a vida nacional, desde o descobrimento até hoje. Referir-se, portanto, a este ou aquele fato porque afeta a estabilidade ética não é correto. O que nos falta são outras coisas. A corrupção pode ser propiciada por este ou aquele fator, mas na realidade ela se deve ou à inexistência de leis ou à não-execução delas. Um exemplo: durante dez anos se extraíram verbas do Tesouro para pagar obras que não se faziam de um edifício inexistente. Ninguém via isso? O que existe é uma administração inorgânica, descoordenada, desamparada. Assim sucede com todas as coisas. Não se deve temer isto ou aquilo por causa da corrupção, desde que haja lei e regras que sejam cumpridas.

ALABY – Veja a desorganização no comércio exterior. Não existe um comando único, cada um fala uma coisa. Há pelo menos dez ou 12 órgãos que atuam, e o mais forte é a Secretaria da Receita Federal.

BURGOS-CABAL – O ministro Nelson Jobim, há poucos dias, se despiu da sua toga para criticar a eleição de deputados e senadores no Brasil. Eles cuidam dos seus interesses. O Congresso nestes quatro últimos anos só aprovou pouquíssimos projetos próprios – basta ver que 94% são do Executivo.
Qual a perspectiva para o Brasil? A Alca tem uma importância enorme para os Estados Unidos, tanto econômica quanto política. Mas não podemos dizer que os norte-americanos precisem do mercado do Brasil ou da Venezuela para sair da crise da superprodução. Não é bem assim. Afinal de contas, eles já controlam 25% de todo o mercado mundial. A Alca é essencial para eles por razões principalmente de cunho político. Para nós é necessária para que se possa estabelecer no país uma era nova de modernidade.

OLIVEIROS S. FERREIRA – Não há na história das relações Brasil-Argentina um governo que tenha cedido mais aos interesses argentinos do que o de Fernando Henrique Cardoso. E quando digo isso, quero dizer Fernando Henrique Cardoso chanceler.

ALABY – Foi em 1994, com o acordo em Ouro Preto.

OLIVEIROS – Não, não. Quando Carlos Menem estabeleceu a taxa de estatística de 7%, o Brasil concordou. Ele era chanceler, e daí para diante tudo o que a Argentina pediu nós fizemos, com a justificativa de que "se a Argentina for mal, nós vamos mal". Isso é algo que temos de discutir.
Com relação à Alca, pergunto se não estamos esquecendo um elemento interno da maior importância, que é a eleição de 2002. Se for eleito um presidente ou um Congresso que não goste da Alca, o que acontecerá?
Quanto ao futuro do Mercosul, há algum tempo tive uma idéia absolutamente doida. Dizem que na 1ª Guerra Mundial entregaram a um general francês uma difícil tarefa e ele disse: "A direita cedeu, a esquerda capitulou, o centro recua, eu ataco". Pergunto: se temos todas essas dificuldades, por que não atacar, por que não propor a idéia da Confederação do Prata para criar uma política de defesa, uma política externa e uma macropolítica econômica comum?

ALABY – Concordo com a sua colocação. Nós sempre cedemos, e lembro que a cessão começou em 1993 e vem até hoje. Essa história de salvar a Argentina porque assim se salva o Brasil é utópica. Não estamos preservando nem um nem outro. Ao contrário, estamos afundando. Quanto à idéia de macropolítica do Prata, é evidente que a integração latino-americana começou de forma errada em 1960 com a Alalc (Associação Latino-Americana de Livre Comércio), quando se defendiam interesses particulares em prejuízo do interesse global. Desde então só se pensava no comércio.
Com relação às eleições, se existe hoje governo de esquerda ou de direita, mineiro ou baiano, o que deve ser colocado na mesa é o interesse maior do país. Mesmo que o próximo governo não queira a Alca, a pressão será tão grande que ele vai ter de aceitá-la.

ROBERTO PENTEADO – Gostaria de saber algo sobre o contrabando de fronteira, particularmente para que lado esse fenômeno seria mais vantajoso.

ALABY – O contrabando é maior na fronteira com o Paraguai, em Ciudad del Este. O que me preocupa não é o de eletrônicos, produtos de informática ou bebidas, mas o de armas e drogas, que independe do câmbio.

PENTEADO – E o gado?

ALABY – Na realidade, falta para o Mercosul um plano de vigilância sanitária. Controlar as fronteiras do Brasil, da Argentina, do Uruguai e do Paraguai em relação a gado é difícil, a não ser que exista um plano desses. A febre aftosa ocorreu no Rio Grande do Sul infelizmente porque havia um problema político entre o ministro da Agricultura e o governador do estado, na pessoa de seu secretário da Agricultura, José Hermeto Hoffmann. Eram duas bandeiras políticas na disputa para o governo do estado. Perdemos pelo menos US$ 200 milhões, e rapidamente. Na Argentina, vão gastar no mínimo US$ 1,5 bilhão para vacinar todo o gado, e o Brasil já ofereceu dinheiro para isso. Acho até razoável, mas seria melhor um plano do Mercosul para evitar o contrabando.

JULIAN CHACEL – Sempre fui muito cético em relação à viabilidade do Mercosul, em função de duas precondições inexistentes. Como levar avante um projeto a partir de países que, além da disparidade de dimensão, têm sistemas cambiais e fiscais distintos? Sem resolver essa precondição, tenho a impressão de que só podemos mesmo pensar na Confederação do Prata sugerida por Oliveiros.
Em relação à Alca, considero que a maior preocupação de certas áreas do pensamento econômico brasileiro é que, ante a irreversibilidade do fenômeno, o Brasil venha a ser condenado a ser um eterno produtor de manufaturas intermediárias e não tenha a possibilidade de fabricar bens tecnológicos de alto valor agregado. Para mim essa é a principal restrição que hoje se faz no Brasil em relação à Alca.

CARLOS ALBERTO LONGO – Uma curiosidade: por que a Argentina exigia que toda transação acima de 10 mil pesos fosse em cheque e agora pede que seja acima de mil? É por causa da corrupção ou do contrabando?

ALABY – Na realidade é devido à lavagem de dinheiro. E permitem somente um endosso no cheque.

LONGO – Justamente para impedir que se transforme em dinheiro. Outra questão: por que os Estados Unidos não liberam a agroindústria, preocupados que estão com a Europa, que subsidia pesadamente esse setor?

ALABY – Os Estados Unidos sempre dizem que só vão liberar o mercado da agroindústria quando a Europa o fizer. Então ninguém libera. É uma grande e inútil discussão.

LONGO – Mas em que sentido essa política da Europa se torna prejudicial?

ALABY – A Europa subsidia pesadamente sua agroindústria e afirma que faz isso para evitar a prática desleal. Enquanto não houver uma rodada multilateral da OMC para fazer cumprir o Acordo de Marrakech de redução de subsídios, vai ser muito complicado trabalhar isso. O que acho que devíamos fazer, já que não conseguimos reduzir o subsídio norte-americano e europeu, é dizer que então há um interno, só que não vale para exportação. E só deixar o subsídio verde, ligado ao meio ambiente. Mas isso vai ser muito complicado.

LONGO – Mas a Europa não subsidia o setor agrícola industrial para exportação, é mais um subsídio interno.

ALABY – É interno, mas cria problemas para nós, como por exemplo no caso do açúcar, pois subsidiam violentamente a beterraba. Vejam o café solúvel. A Colômbia, que pretensamente combate o narcotráfico, entra livremente lá, e nós não.

SAMUEL PFROMM NETTO – Tenho notado que as discussões e análises estão muito centralizadas no comércio, e é justo que assim seja. Há muita ênfase em bens de capital e de consumo, mas não parece estar sendo dada a devida atenção a um aspecto que no contexto do Mercosul avançou, pelo menos no setor a que estou ligado, o da psicologia. Refiro-me ao exercício das chamadas profissões liberais, como medicina, engenharia, psicologia, odontologia, etc. Tivemos ao longo dos últimos anos um lento progresso que foi traduzido principalmente pela realização de encontros, ora no Brasil, ora na Argentina, no Uruguai, etc., para discutir a forma de integrar esse processo pelo qual o médico ou dentista brasileiro poderão trabalhar livremente em outros países do Mercosul. A pergunta é: como fica essa situação na Alca?

ALABY – A Alca é zona de livre comércio só de mercadorias, não entra essa área de serviços. Se já é difícil num setor, imagine no outro.

CECÍLIA PRADA – Há um aspecto nessas reuniões, seja da Alca, seja do Mercosul, que é a cultura. O Mercosul não visava apenas uma união econômica, dizia-se que seria uma união cultural da latinidade. Houve inclusive o desejo de uniformizar as leis de direito autoral, das profissões, a intenção de criar intercâmbio entre as editoras. Agora, se de repente o Mercosul se desagrega, como fica isso na Alca? Vamos ter uma imposição ainda maior da cultura norte-americana com sua tradicional hegemonia?

ALABY – Mais do que a gente já tem? Bem, existe um projeto do deputado federal Aldo Rebelo de proibição do uso de idioma estrangeiro.

CECÍLIA – Isso não resolve.

ALABY – É evidente que a imposição cultural vem interligada à comercial. Viajei muito à Argentina e ali ouvia, por exemplo, músicas brasileiras, Titãs, Daniela Mercury, etc. Eles podiam não entender o que cantavam, mas a venda de CDs era absurda, enquanto a influência argentina ou da América Latina no Brasil é muito pequena. Penso que perdendo a identidade do Mercosul, perde-se também a identidade cultural. Por outro lado, creio que na área cultural e sociocultural o Mercosul não fez absolutamente nada.

CLÁUDIO CONTADOR – Lembro-me de que, quando se estava discutindo a organização do Mercosul, a primeira fase seria a integração comercial. Mas havia outras fases, e uma delas preocupava muito: a integração financeira.

ALABY – De Bolsas, para dar um exemplo.

CONTADOR – De Bolsas e de títulos. Na época havia muita preocupação porque o Brasil tinha uma dívida interna grande e qualquer colocação de títulos provocaria problemas. Como ficou essa situação?

ALABY – Como o Brasil tem Imposto de Renda e controle cambial, e os outros três não, e pouco se avançou na integração das Bolsas, por exemplo, esse assunto estacou. Se eu aplicar recursos lá, estarei livre, mas, se eles vierem investir aqui, vão pagar CPMF e Imposto de Renda sobre o rendimento. Estamos nos distanciando cada vez mais da coordenação macroeconômica.

JOSEF BARAT – Quando se analisa a evolução da União Européia e a comparamos com o Mercosul, guardadas as proporções evidentemente, podemos observar que o projeto europeu surgiu nos governos, ou seja, com bases institucionais. As empresas entraram depois, nos anos 80, quando aconteceram as grandes fusões, a tal ponto que hoje ficou difícil definir de que país determinada empresa é. No Mercosul ocorreu o oposto. Começou com indústrias que, por facilidade de localização, optaram por se instalar aqui ou ali. Os governos vieram atrás. A impressão que me dá é que, se dependesse dos governos do Brasil ou da Argentina, o Mercosul não teria saído nunca do papel.

ALABY – Saiu por força das empresas, principalmente do setor automotriz.

BARAT – E é interessante notar que, nas reuniões do Mercosul, as pautas são muito mais de empresas do que de governo, o que explica, enfim, todos esses pontos que foram discutidos aqui. Se o Mercosul decorreu de um processo como esse, é evidente que ele vai ser substituído pela Alca, porque ela vem com uma força muito maior. Não é isso?

ALABY – Perfeito.

BARAT – Porque não há preparação dos governos. Você afirmou que nenhum governo latino-americano está se preparando para a Alca. As bases institucionais vão ficar muito enfraquecidas ou serão determinadas pelos Estados Unidos. Como é que você vê isso?

ALABY – Concordo plenamente. A idéia da União Européia começou em 1950, com o Plano Schuman, do carvão e do aço. Depois veio o Tratado de Roma, etc. O arcabouço institucional antecedeu a integração comercial. No caso do Mercosul, em 1985 assinaram-se 27 protocolos comerciais, nas áreas de indústria química, automotriz, etc. E não havia muito o que fazer. Nossa estrutura jurídica é fraquíssima, tanto que os governos nem cumprem os instrumentos aprovados, o Código Aduaneiro, etc. No caso da Alca, a estrutura jurídica é muito mais clara. Há uma preocupação inicial com o arcabouço jurídico.

BARAT – Mas essa clareza vem de onde? De fora?

ALABY – Vem de lá, perfeitamente. Daqui é impossível. Tanto é que um dos itens principais que o governo brasileiro não quer de maneira nenhuma na Alca ou no Mercosul é o tribunal supranacional. Eu fui inclusive instruído a não votar a favor da instituição desse tribunal. O governo alega que é para não perder a independência. Mas não se trata disso.

IRANY NOVAH MORAES – Samuel Pfromm falou das profissões liberais, e vou falar da medicina. Somente os maus médicos do Brasil irão mudar para a Argentina, e apenas os piores profissionais argentinos virão para cá. O Conselho Regional de Medicina já andou adotando alguns cuidados, porque temos um excesso de médicos mal formados no Brasil, e subempregados. Então penso que vai demorar muito para dar certo qualquer tentativa de integração nessa área.

MÁRIO AMATO – A União Européia se fortalece pela teoria de Leontief, a das vantagens comparativas. Os argentinos têm trigo e petróleo, por exemplo. A indústria vem quando existe demanda. Ela nasce da necessidade de produzir por causa das barreiras, senão seria mais barato comprar máquinas fora. A necessidade e os serviços fizeram com que a indústria se estabelecesse no Brasil e houve uma defasagem em relação à Argentina.