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No reino das águas turvas
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Omissão, descuido e jogo de interesses comprometem saúde popular
IMMACULADA LOPEZ
O Brasil ainda enfrenta o desafio de universalizar os
serviços básicos de água e esgoto para toda a sua população. Segundo dados oficiais
de 1999, cerca de 60% dos domicílios brasileiros não têm coleta de esgoto e quase 20%
ainda estão sem água encanada e tratada. Por essa simples razão, milhares de crianças
e adultos adoecem e morrem por males que poderiam ser prevenidos. Segundo a Organização
Mundial da Saúde, cada R$ 1 não investido em saneamento gera o gasto de R$ 5 em
atendimento médico.
O impacto ambiental também é grave. A falta de coleta e tratamento de esgoto tem
destruído a maioria dos córregos e rios dos centros urbanos, o que, além de
desequilibrar o ecossistema, compromete o abastecimento futuro de água.
Para reverter essa situação, os especialistas apontam tarefas urgentes, como criar uma
política clara para o setor, retomar os investimentos paralisados nos últimos anos e
democratizar a gestão dos serviços, dando prioridade ao interesse público.
No começo deste ano, o governo federal apresentou ao Legislativo um projeto de lei para
criação de uma nova Política Nacional de Saneamento. Mas, longe de representar um
consenso, o projeto tem sido intensamente criticado por diferentes grupos sociais, que o
encaram como um apressado pontapé inicial da privatização do setor.
Em fevereiro de 2001, o Executivo enviou à Câmara dos Deputados o projeto de lei 4.147, que define uma nova Política Nacional de Saneamento. Desde a extinção do Planasa (Plano Nacional de Saneamento), em 1986, o país vive sem regras, metas ou prioridades claras para o setor. Nos últimos anos, diferentes projetos foram discutidos no Legislativo, mobilizando representantes dos governos estaduais e municipais, sindicatos, empresas, entidades de defesa do consumidor, do meio ambiente e da saúde. O mais recente foi o projeto de lei 2.763 (ao qual o 4.147 está agora anexado), apresentado em 2000 com base em outra proposta que havia sido aprovada depois de amplo debate com a sociedade, mas que foi vetada integralmente pelo presidente Fernando Henrique Cardoso durante seu primeiro mandato.
Para surpresa de muitos, o governo apresentou no começo do ano o novo projeto e pediu, por três vezes, que fosse votado em regime de urgência. O prazo, entretanto, foi repetidamente prorrogado por pressão de diferentes setores sociais, que defendem que uma proposta tão vital para a saúde da população e do meio ambiente deve ser intensamente debatida antes de qualquer votação.
"De forma antidemocrática, o Executivo ignorou as discussões com a sociedade, desconsiderou seu direito de participar das decisões e tenta impor um projeto de cima para baixo", diz Abelardo de Oliveira Filho, diretor mundial da Internacional de Serviços Públicos (ISP) e secretário executivo da Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental (FNSA), que reúne 17 entidades sociais em prol da universalização do saneamento com qualidade.
A alegação oficial é que a proposta sistematiza outros projetos já existentes e que deve ser votada logo porque não há tempo a perder. "A urgência não é do governo, mas da sociedade brasileira", diz Marcos Thadeu Abicalil, coordenador do Programa de Modernização do Setor de Saneamento, da Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano (Sedu), da presidência da República.
Para a FNSA, a única explicação para essa urgência é o desejo de viabilizar o mais rápido possível a privatização do setor. "Mais uma vez, corremos o risco de sobrepor ao interesse público os objetivos de curto prazo do governo e dos investidores particulares", afirma Antonio da Costa Miranda Neto, secretário de Saneamento do Recife e presidente da Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae).
O novo projeto de lei, segundo seus opositores, prepara o terreno para a privatização das companhias estaduais de saneamento. Mais rentáveis, as regiões metropolitanas são consideradas o alvo principal de potenciais investidores privados. Entretanto, a titularidade dos serviços prestados pelas companhias estaduais está hoje nas mãos dos municípios. Isso significa que, se privatizada, a companhia teria de negociar a renovação da concessão com cada poder local. Uma tarefa que poderia afugentar os futuros investidores. Segundo a FNSA, tudo ficaria muito mais fácil se o titular dos serviços nessas regiões passasse a ser o estado. E é justamente esse o ponto mais polêmico do projeto de lei 4.147: ele transfere a titularidade nas regiões metropolitanas para o governo estadual, alegando que essas áreas são de interesse comum de mais de um município. Em quase 4,9 mil cidades, a prefeitura continuaria com a titularidade dos serviços de água e esgoto, mas, em outras 700, o estado passaria a ser o titular. Para a FNSA, entretanto, a questão da gestão de serviços comuns a mais de uma cidade poderia ser resolvida de outra forma: ela seria exercida pelo conjunto dos municípios, com a participação do governo estadual e da população.
"Depois das siderúrgicas, bancos estaduais, empresas de telefonia e de energia elétrica, a bola da vez da privatização é o saneamento", avalia o sociólogo Artur Henrique da Silva Santos, secretário de Formação Sindical da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e presidente do Sindicato dos Eletricitários de Campinas. Marcos Thadeu Abicalil, da Sedu, entretanto, contesta a afirmação de que o governo federal veja a participação do setor privado como um objetivo em si. "É apenas um instrumento, entre outros, de incentivo à eficiência, aumento da competitividade e ingresso de recursos para financiar os investimentos necessários." Segundo ele, o fundamental é a universalização dos serviços.
Déficit
De um lado e de outro, ninguém contesta que todos têm direito a água de boa qualidade e a uma solução para o esgoto – mesmo que isso não signifique 100% de expansão do sistema, pois em algumas comunidades rurais, ribeirinhas ou indígenas, há certamente melhores opções do que a construção de uma rede de água e esgoto. Mas, descontadas essas áreas, todos também concordam que o Brasil ainda tem um déficit muito grande a enfrentar.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 1999, apenas 80% dos domicílios têm rede de abastecimento de água – na área urbana o índice é de 92% e na rural, de aproximadamente 25%. Quanto ao esgoto, 44% dos domicílios brasileiros têm rede coletora e 21%, fossa séptica (solução adequada em alguns ambientes, desde que observados certos cuidados técnicos). Na área urbana, os índices são respectivamente 53% e 23%, e na rural, 5% e 12%. Segundo dados da Sedu, o tratamento de esgoto atinge apenas 25% da água consumida ou, em outras palavras, inclui 59% do esgoto coletado em rede. Todos os índices apresentam grandes diferenças regionais, com maior déficit nas regiões norte e nordeste.
A melhor explicação para essas carências é, sem dúvida, o caótico processo de urbanização do país. Segundo a Sedu, em 1940, 13 milhões de pessoas – 32% da população – viviam nas cidades brasileiras. Hoje moram na área urbana 140 milhões, ou quase 82% da população, 53 milhões dos quais em regiões metropolitanas. "Além de ser difícil acompanhar a rápida urbanização, temos o desafio de atender a uma população que, por um lado, se concentrou em poucos centros urbanos e, por outro, se dispersou em pequenos municípios", diz Marcos Thadeu. Segundo ele, as cidades com mais de 100 mil habitantes são apenas 4% do total, mas reúnem 51% da população do país. No outro lado, as que têm menos de 20 mil habitantes somam 73% e abrigam apenas 19% da população.
Nesse cenário, a falta de saneamento atinge justamente as camadas mais pobres, que vivem nos municípios esquecidos pelo interior do país ou nas periferias das grandes cidades.
O Plano Avança Brasil, do governo federal, tem como meta a universalização do acesso ao saneamento básico até 2010. Para tanto, segundo estimativas da Sedu, deveriam ser investidos cerca de R$ 44 bilhões em dez anos: R$ 6,7 bilhões para abastecimento de água; R$ 20,2 bilhões para coleta de esgoto; R$ 9,9 bilhões para tratamento de esgoto e R$ 7,4 bilhões para renovação e reposição de redes de água. Por ano, seriam necessários cerca de R$ 4,4 bilhões, ou 0,4% do PIB. Mas, ainda segundo a Sedu, enquanto nos anos 70 os investimentos no setor alcançaram a média anual de 0,34% do PIB, nos anos 80 caíram para 0,28% e na década de 90 não passaram de 0,18%.
Contra-argumentos
A privatização vai trazer recursos para a universalização? Artur Henrique, da CUT, diz que não. Para ele, a experiência brasileira com a privatização demonstra que as empresas privadas não trazem investimentos novos para o país, ao contrário, elas usam recursos públicos. "Se o governo não tem dinheiro para investir em serviços públicos, por que o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) bancou as privatizações até agora?", questiona. Ele informa que US$ 40 bilhões foram emprestados pelos cofres públicos para a privatização do setor elétrico.
Além do mais, segundo o sociólogo, o risco do "apagão" revelou a falta de planejamento e de investimento que acompanha os setores privatizados. Uma ameaça como essa na área de saneamento traria implicações diretas na saúde e qualidade de vida das pessoas, especialmente as mais pobres.
Por outro lado, os especialistas questionam como obrigar o setor privado a investir nas regiões hoje não servidas por água e coleta de esgoto, que justamente tendem a ser as menos rentáveis. "Afinal, faz parte da lógica da iniciativa privada investir nos bairros de maior poder aquisitivo e menor risco de inadimplência", observa Rubens Born, coordenador executivo da organização não-governamental Vitae Civilis – Instituto para o Desenvolvimento, Meio Ambiente e Paz, de São Paulo.
Segundo Marcos Thadeu, da Sedu, essa questão poderia ser resolvida por meio de exigências contratuais claras e uma constante fiscalização dos serviços. Ele esclarece que o projeto de lei 4.147 define que vencerá a licitação quem apresentar a melhor combinação entre tarifa e antecipação de metas de expansão dos serviços nos primeiros dez anos da concessão. No caso de transferência do controle societário das empresas estatais, será ganhador do leilão aquele que alcançar maior pontuação decorrente da ponderação entre a oferta pelas ações e o compromisso de cumprir as metas de investimento e qualidade dos serviços prestados. "Também está estabelecida a obrigatoriedade da garantia do atendimento aos mais pobres, inclusive a fixação de metas específicas", afirma Thadeu. Mas, para Artur Henrique, da CUT, o problema é que essas definições não se concretizam. "As empresas brasileiras têm sido privatizadas antes de se garantir um efetivo sistema de regulação e controle social, que obrigue os investidores a cumprir metas e assumir riscos", diz ele.
Além da expansão, está em discussão a qualidade dos serviços, especialmente da água consumida. Em fevereiro deste ano, o Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) divulgou o resultado de um teste realizado em 113 pontos de São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná, que detectou contaminação por coliformes fecais, baixo teor de cloro e alteração de cor, principalmente em cidades fluminenses (ver texto abaixo).
Outro indicador de qualidade é a regularidade do abastecimento. Em várias cidades ainda são comuns as interrupções, que muitas vezes nem mesmo são comunicadas antecipadamente ao consumidor. Por outro lado, devem ser enfrentadas as perdas e os desperdícios – não só por parte dos consumidores, mas dos próprios prestadores de serviço. Mundialmente, é aceito o índice de 20% de perdas físicas, causadas, por exemplo, por vazamentos. No Brasil, o total de perdas físicas e econômicas (resultantes das ligações clandestinas) chega a 40%. "Todos os esforços foram feitos para estender a rede sem a preocupação de evitar ou reduzir as perdas, quando, na verdade, as ações deveriam ter caminhado juntas", diz Antônio César da Costa e Silva, presidente da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes) e superintendente de uma das unidades da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp).
Entretanto, não se sustentaria o argumento de que a privatização irá trazer o aumento de qualidade ou ainda uma redução de tarifas. O presidente da Abes lembra que o saneamento é um "monopólio natural", ou seja, diferentemente do que ocorre com a telefonia, não seria viável que mais de uma empresa atuasse em uma mesma área, pois não teria sentido construir duas redes de água ou de coleta de esgoto no mesmo lugar. Para Marcos Thadeu, essa questão se resolveria novamente pela regulação e fiscalização dos serviços por parte do poder público.
De qualquer forma, os opositores à privatização alegam que, mesmo nos setores que não são monopólios naturais, a competição não fez a qualidade aumentar nem as tarifas caírem. Desde 1999, o Idec acompanha de perto os serviços de energia elétrica, telefonia e saneamento nos estados do Paraná, Rio de Janeiro e São Paulo. "Já no começo do processo de privatização, percebemos que os consumidores corriam um grande risco em relação à falta de acesso, perda de qualidade, aumento de tarifas e pouco controle social dos serviços públicos essenciais. Isso infelizmente tem se confirmado", diz Sezifredo Paz, consultor técnico da entidade.
A intensa crítica ao projeto de lei do governo e à proposta de privatização não significa, entretanto, que os opositores estejam satisfeitos com o modelo atual. "Nós sempre denunciamos que o Brasil precisava transformar as estatais – muitas vezes deficitárias e verdadeiros cabides de emprego – em empresas públicas eficientes, controladas pela sociedade", diz Artur Henrique. Para ele, a privatização não é o remédio para os problemas das companhias estatais, pois a opinião pública já começa a perceber as fraquezas dessa proposta. "Há cinco, seis anos, éramos considerados dinossauros por ousar questionar o caminho da privatização. Hoje a população já sente as conseqüências da privatização de outros setores."
Centralização
Com ou sem privatização, entretanto, é urgente uma mudança na gestão do setor de água e esgoto. O artigo 175 da Constituição Federal estabelece que os serviços públicos devem ser prestados diretamente pelo titular – ou seja, o governo – ou indiretamente, mediante concessão ou permissão. De qualquer forma, a responsabilidade de regular e fiscalizar é do poder público.
Historicamente, os serviços de água e esgoto eram executados diretamente pelos municípios, "até que, na década de 70, sob o espírito centralizador do governo militar, foram criadas as companhias estaduais de saneamento no âmbito do Planasa", conta Teia Magalhães, coordenadora da organização não-governamental Água e Vida, de São Paulo. A maioria dos municípios assinou, então, um contrato de concessão dos serviços com as companhias estaduais. São hoje cerca de 3,9 mil municípios nessa situação. "O problema é que eles tiveram de abrir mão de qualquer tipo de controle, planejamento ou fiscalização, pois essa era a condição para receber os investimentos do governo federal", diz Antonio da Costa Miranda Neto, da Assemae, que reúne os municípios que mantiveram os serviços sob sua gestão.
Cerca de 1,6 mil municípios recusaram a proposta do Planasa – seja por não precisarem dos investimentos, seja por resistência ideológica – e prestam diretamente os serviços através de seus departamentos ou autarquias. "E, apesar de o governo federal ainda hoje ignorar esses serviços quando fala no setor, eles são em média melhores do que os das companhias estaduais", diz Miranda Neto. Alguns poucos, cerca de 40, concederam o serviço – total ou em parte – a empresas privadas.
Com prazo médio de 30 anos, a maioria dos contratos assinados estão vencendo. Mas, segundo Miranda Neto, muitos municípios estão renovando as concessões sem aproveitar o momento para rever sua participação. Os próprios prefeitos afirmam que saneamento é um assunto estadual. No geral, a prefeitura não opina, não planeja, não controla nem investe nada, e a companhia estadual, por sua vez, não dá satisfações, define as metas e tarifas e faz toda a arrecadação. De qualquer forma, poucos defendem a municipalização dos serviços. Miranda Neto reconhece a importância das companhias estaduais, mas adverte que elas devem mudar sua relação com os municípios. "O poder local precisa resgatar seu papel no planejamento e controle." Ele argumenta que, quando a prefeitura e a comunidade conseguem acompanhar os serviços de perto, o salto de qualidade tende a ser enorme.
O grande desafio seria, portanto, a democratização da gestão. "Os direitos do consumidor só serão respeitados se for garantido o caráter público dos serviços e se forem instituídos mecanismos através dos quais a sociedade possa participar das decisões sobre os investimentos, a qualidade e as tarifas do setor", diz Sezifredo Paz, do Idec. As decisões devem ser tomadas com transparência e com a participação efetiva de representantes da sociedade civil.
Outro desafio da gestão é sua integração com outras políticas urbanas. Na verdade, o tradicional conceito de saneamento básico (água e esgoto) já deu lugar, entre os especialistas, ao de saneamento ambiental (que inclui também a coleta e destinação do lixo, a drenagem pluvial urbana e o controle de vetores de doenças). Ao mesmo tempo, já se sabe que a gestão do saneamento deve ser planejada em conjunto com as questões da moradia, do meio ambiente, do transporte, da saúde, dos recursos hídricos. Mas nenhuma dessas idéias está contemplada de fato no novo projeto de lei do governo.
Investimentos
Além de mudanças na gestão, o saneamento precisa também de uma retomada dos investimentos por parte do governo federal. "É um ponto decisivo para a expansão e a melhoria da rede de água e esgoto, pois até mesmo as companhias estaduais em boa situação financeira conseguem no máximo expandir lentamente seus sistemas de água", diz Antônio César, da Abes.
Já há alguns anos, no entanto, assiste-se à suspensão de financiamentos com recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) – que foi criado justamente para propiciar a expansão da moradia e do saneamento básico no Brasil. Desde 1999, a Caixa Econômica Federal (responsável pelo gerenciamento do FGTS) não firmou nenhum novo contrato com as empresas públicas de saneamento. Segundo Rogério Tavares, superintendente nacional de Saneamento e Infra-Estrutura da Caixa Econômica Federal, foram investidos no setor, em 1998, R$ 953 milhões. Nos anos seguintes, apenas foram liberadas parcelas de contratos antigos: em 1999, o desembolso caiu para R$ 502 milhões; em 2000, para R$ 280 milhões e, até junho de 2001, limitou-se a R$ 44 milhões. Em tese, só neste ano o país teria R$ 1,5 bilhão para investir no setor – correspondentes aos 40% do FGTS previstos em lei.
A suspensão de novos financiamentos foi uma medida tomada pelo governo federal para cumprir o ajuste fiscal estabelecido com o Fundo Monetário Internacional (FMI) após a crise cambial na virada de 1998. Segundo o acordo firmado, os investimentos feitos por empresas públicas – inclusive as companhias estaduais de saneamento – são contabilizados como despesas e devem ser suspensos para não elevar o déficit público. "Foi um grande equívoco considerar o investimento em saneamento básico um gasto qualquer da administração direta", avalia Antônio César, da Abes. É difícil calcular o saldo social e ambiental causado pela falta de investimento.
Para alguns opositores mais críticos, a suspensão dos investimentos foi mais um golpe político do governo federal para enfraquecer o setor e facilitar a privatização. No entanto, Marcos Thadeu, da Sedu, destaca que os investimentos também se reduziram pela incapacidade de crédito de pelo menos metade das companhias estaduais. De qualquer forma, ele prevê uma recuperação dos recursos já no próximo ano, graças à flexibilização das normas do FMI para contenção do gasto e da dívida públicos, às novas formas de financiamento através do mercado de capitais e à ampliação da participação do setor privado na prestação dos serviços e no financiamento dos investimentos. Ele também garante que serão aumentados os recursos fiscais da União aplicados no setor.
Diferentemente dos financiamentos propiciados pelo FGTS, os recursos fiscais são investimentos a fundo perdido. Ou seja, não precisam ser devolvidos aos cofres públicos. Boa parte dessa verba sai da Funasa (Fundação Nacional da Saúde), ligada ao Ministério da Saúde. Entre 1995 e 2000, o órgão aplicou cerca de R$ 1,3 bilhão na construção e ampliação de sistemas de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto e melhorias sanitárias domiciliares. Até o final de 2002, promete investir mais R$ 400 milhões de recursos próprios, além de R$ 2,3 bilhões do Projeto Alvorada, lançado pelo governo federal para melhorar a qualidade de vida nos municípios brasileiros com menor IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), que poucas vezes têm acesso aos recursos do FGTS para ações de saneamento.
Água e saúde
A discussão sobre investimentos, gestão e regulação do setor revela-se mais necessária quando se considera o impacto do saneamento na saúde da população e no meio ambiente. Ainda hoje, são milhares as mortes e internações hospitalares provocadas pela falta de saneamento básico no país. Segundo dados oficiais de 1998, pelo menos 10 mil brasileiros – a maioria crianças – morreram por doenças que poderiam ser prevenidas pelo simples tratamento de água e coleta de esgoto. No ano seguinte, 606 mil pessoas foram internadas nos hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS) pelo mesmo motivo.
O consumo de água não tratada e o contato com o esgoto provocam doenças como cólera, febre tifóide, hepatite A, tracoma, esquistossomose, teníase, poliomielite, leptospirose, verminoses e diarréias. "Bastaria o investimento em saneamento para combater essas doenças, pois há uma relação direta de causa e efeito entre água e saúde", diz o infectologista Marcos Boulos, professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Na sua opinião, o saneamento devia ser a prioridade dos investimentos do Ministério da Saúde. Segundo cálculo da Organização Mundial da Saúde (OMS), cada R$ 1 investido em saneamento evitaria o gasto de R$ 5 em atendimento médico.
A falta de coleta e tratamento de esgoto também causa "doenças" ambientais. A principal delas é o impacto na quantidade e qualidade da água. "O cenário brasileiro é péssimo", diagnostica o biólogo Samuel Barreto, que durante vários anos coordenou o Núcleo Pró-Tietê, da Fundação SOS Mata Atlântica, de São Paulo, e hoje é responsável pelo Programa de Água Doce da WWF Brasil. Ainda prevalece a prática de usar a água sem evitar desperdícios e devolvê-la sem tratamento, em forma de esgoto, para rios e córregos canalizados. Os ambientalistas alertam que dessa forma ficam comprometidos não só o abastecimento futuro, como o uso da água para irrigação, transporte e lazer. São raras as cidades brasileiras que têm seus rios como cartão-postal ou motivo de orgulho.
"O princípio da sustentabilidade ainda não foi incorporado pelo setor, que vê a água como um produto descartável", analisa Rubens Born, da Vitae Civilis. Segundo ele, a água precisa ser encarada como um recurso natural limitado, que na medida do possível deve ter seu uso reduzido, ser reutilizado e reciclado. Sem investir no tratamento do esgoto, espera-se que a natureza se encarregue de reciclar a água. "Essa renovação acontece em parte, mas não podemos esquecer que a integridade do rio é sempre afetada e que trechos dele são inevitavelmente sacrificados", diz Born. Em São Paulo, por exemplo, ainda se admite que cidades próximas à capital, como Santana de Parnaíba ou Pirapora do Bom Jesus, convivam com a poluição das águas do rio Tietê, até que elas ressuscitem no caminho para o interior.
Rio-esgoto
Acordando para o problema, alguns governos estaduais tentam agora recuperar suas águas. Estão em andamento no país diferentes projetos, como o de despoluição da baía da Guanabara, no Rio de Janeiro, da baía de Todos os Santos, na Bahia, e do rio Guaíba, no Rio Grande do Sul. No entanto, o maior – e mais caro – de todos é o do rio Tietê, onde deságua a maior parte dos rios e córregos da Grande São Paulo.
Desde 1992, já foram gastos U$1,1 bilhão na recuperação do Tietê – dinheiro vindo dos cofres estaduais, da Sabesp e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Na primeira fase, até 1998, houve a construção de usinas de tratamento e a ampliação da coleta e tratamento de esgoto. Na área da Grande São Paulo atendida pela Sabesp, o índice de coleta subiu de cerca de 50% para 86%, e o de tratamento, de quase 20% para 50%. A segunda etapa ainda não começou e deve se dirigir à ampliação da rede.
"São conquistas lentas e pouco visíveis aos olhos da população. Mas, se deixarmos de jogar tanto esgoto no rio, a água vai se renovar e o ganho de saúde será enorme. Só não podemos ter a ilusão de que poderemos voltar a nadar e pescar no rio", esclarece Samuel Barreto. Na sua opinião, há pelo menos dois grandes desafios para assegurar o sucesso do empreendimento. Primeiro: envolver todas as prefeituras da região, pois neste momento, por exemplo, a cidade de Guarulhos e as do Grande ABC continuam despejando esgoto nas águas do Tietê. Segundo: buscar uma saída para a poluição difusa, como entulho, lixo e poeira, que cai no rio sem nenhum tipo de controle.
Mas certamente melhor do que despoluir é não poluir. O pesquisador Odir Clécio, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, acredita que o tratamento começa a ser compreendido como parte obrigatória da coleta de esgoto. "Ele já não é mais visto como um luxo, especialmente nas cidades com atividade turística", diz o pesquisador. A tecnologia mais usada é a de estações de tratamento por processo biológico, no qual microorganismos se encarregam de reduzir a concentração de poluentes da água com uma eficiência de 60% a 90%.
Odir observa, entretanto, que muitas vezes falta visão aos gestores públicos para optar por soluções compatíveis com a realidade e a disponibilidade financeira de cada lugar. "As prefeituras costumam procurar tecnologia de ponta, que, além de ser cara, é de difícil operação e manutenção, inviabilizando qualquer iniciativa", diz ele. Na sua opinião, é necessário que as cidades busquem soluções mais simples e eficientes para realmente expandir o serviço.
Um total de 113 amostras de água encanada foi coletado e analisado nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná pelo Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) entre agosto e dezembro de 2000. Divulgado em fevereiro deste ano, o resultado espantou os pesquisadores: 49 amostras não estavam de acordo com a legislação. A pior situação foi a do Rio de Janeiro, onde a maior parte da água testada apresentou problemas de potabilidade, como presença de coliformes fecais, baixo teor de cloro, alterações de cor, turbidez e acidez.
Quase todas as cidades de São Paulo e do Paraná passaram no teste de potabilidade, mas em compensação ficou demonstrado que sofrem com a interrupção de abastecimento. As empresas culparam a falta de chuvas pela necessidade de rodízio, mas, segundo o Idec, os problemas de manutenção da rede e os vazamentos de água têm contribuído para a escassez.
A entidade também constatou que não é respeitado o direito de informação do consumidor. Muitas vezes as empresas não comunicam os pequenos cortes de água nem divulgam dados sobre a qualidade do produto consumido.
Por último, o Idec alertou que, em nenhum dos três estados, o poder público desenvolve um programa educativo eficiente sobre o uso racional da água, nem mantém um sistema estruturado para fiscalização da qualidade do produto através dos órgãos de vigilância sanitária.
Exemplo de Penápolis
Exceção entre as cidades brasileiras, Penápolis, no interior paulista, exibe há quase dez anos um índice de 100% de água tratada, fluorada e distribuída, 100% de esgoto captado e tratado e 100% de lixo coletado e destinado a aterro sanitário. O saldo não podia ser diferente: 0% de doenças transmitidas pela água e 0% de cáries dentárias.
Todos os serviços são prestados aos 54 mil moradores da cidade pelo Departamento Autônomo de Água e Esgoto de Penápolis (Daep), uma autarquia ligada à prefeitura municipal, criada em 1974. A arrecadação independente permite que todo o montante das tarifas – R$ 300 mil mensais – seja aplicado na manutenção e ampliação dos projetos do setor. "Nossas conquistas de saneamento são fruto de uma visão política", diz Edson Bilchil Girotto, diretor executivo da autarquia.
Com a ajuda de verbas do Comitê da Bacia do Alto Tietê, a cidade está conseguindo ampliar seus projetos. Desde o ano passado, faz coleta seletiva do lixo e recicla grande parte do material com a participação de uma cooperativa formada por catadores que costumavam invadir o aterro da cidade. Agora a nova meta é a construção de uma usina de compostagem para a reciclagem dos resíduos orgânicos.
Desde 1993, também funciona na cidade um Centro de Educação Ambiental, com projetos destinados especialmente às escolas. A participação popular nas decisões do setor também está garantida no fórum municipal de saneamento, que acontece a cada dois anos.
Na periferia e na floresta
Os moradores de Cidade Ademar, bairro da periferia sul da capital paulista, fazem parte dos milhões de brasileiros que vivem sem água encanada ou coleta de esgoto. Entre as casas e barracos, um labirinto de canos e mangueiras liga as torneiras improvisadas à rede oficial mais próxima. Quem não consegue fazer uma ligação clandestina tenta cavar um poço, sem nenhum tipo de controle. Para completar o cenário, canos saem das casas e despejam o esgoto num canal a céu aberto ou no córrego vizinho, onde também é jogado o lixo.
Entretanto, essa situação logo vai mudar para pelo menos 20 mil moradores de quatro favelas do bairro. Às margens da represa Billings, a área foi licenciada pelo governo estadual para participar do plano emergencial de recuperação de mananciais. Até o final deste ano, devem ser realizadas 6 mil ligações de água e esgoto, além de obras de microdrenagem. O projeto foi iniciado no ano de 1998.
O primeiro passo foi apresentar o plano, discuti-lo com a comunidade e realizar uma pesquisa censitária para conhecer a realidade local. Com a participação popular, novas idéias foram surgindo, como um Festival de Arte Ambiental e um mutirão de arborização da região. A criatividade também foi necessária para encontrar soluções técnicas para o desordenado traçado das casas e vielas.
Com uma equipe de arquitetos, engenheiros, assistentes sociais e arte-educadores, o Grupo Técnico de Apoio (GTA), organização não-governamental parceira do projeto, pretende promover um salto na qualidade de vida e cidadania dessas comunidades. "É uma chance valiosa para que todos se conscientizem de seus direitos, melhorem a organização comunitária e criem uma nova relação com o ambiente onde vivem", explica Geraldo Juncal Júnior, do GTA.
O respeito pela realidade local também orienta a atuação da organização nas comunidades indígenas do alto rio Negro, no Amazonas. Desde o ano passado, um projeto vem sendo elaborado em parceria com a Associação Saúde sem Limites, que atua na região e enfrenta um grande número de casos de diarréia, parasitoses digestivas e tracoma. Atualmente, está em andamento um projeto piloto com 17 comunidades dos rios Tiquié e Uaupés e, a longo prazo, outras 400 devem ser alcançadas. Os recursos estão sendo liberados pela Fundação Nacional da Saúde (Funasa), do Ministério da Saúde.
"Nosso maior desafio é compreender a cultura indígena e buscar, junto com as comunidades, alternativas adequadas que também levem em consideração o meio ambiente local", ressalta Juncal. O governo já tentou reproduzir em outras áreas o modelo urbano, e o fracasso sempre foi grande.
Tradicionalmente, as famílias da região do rio Negro usam a água do rio e da chuva, e não há banheiros, que nunca seriam aceitos dentro das casas. "Depois de conversarmos bastante, estamos propondo a construção de uma central de captação de água da chuva, onde ela será tratada e distribuída através de fontes", conta Juncal. Na mesma construção, estão previstas unidades sanitárias com bacias turcas e miniestações de tratamento para uso de cada família.