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Round decisivo

 


Embarque de soja para exportação / Foto: Itamar Miranda/AE

Brasil tenta consolidar posições de liderança na OMC

Aviões, gasolina, leite de coco, frangos, bananas, automóveis, software. Quase já não há mais produtos que o Brasil importe ou exporte que não estejam submetidos às leis da Organização Mundial do Comércio (OMC) e, de alguma forma, envolvidos em disputas comerciais. Pode ser a gasolina brasileira discriminada nos Estados Unidos por supostamente apresentar um nível de chumbo incompatível com os padrões ambientais norte-americanos, ou a queixa dos europeus contra a excessiva cota de frango congelado brasileiro destinada aos consumidores da União Européia. É difícil que passe uma semana sem que surjam novas acusações. Dados da própria OMC, o grande foro do comércio internacional cujo quartel-general está solenemente instalado em Genebra, na neutra Suíça, indicam que desde 1995 já foram registradas 230 disputas comerciais, o que dá uma média de quase quatro queixas por mês. Na maioria dos casos litigiosos o que os países queixosos estão buscando é aumentar suas exportações e, ao mesmo tempo, impedir ou pelo menos dificultar a entrada de produtos similares em seus mercados domésticos. "A palavra de ordem em Genebra é abertura total do comércio mundial, mas, na prática, isso é um sofisma, uma abstração; a OMC está lidando mesmo é com um arraigado protecionismo internacional que se realiza por meio de barreiras e regulamentos cada vez mais sofisticados", afirma o executivo carioca e conselheiro técnico da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), Mauro Laviola.

Mas há também muita reclamação brasileira. É o subsídio oficial europeu às exportações dos produtores de leite que torna a produção nacional menos competitiva, ou a proteção americana ao seu parque siderúrgico por meio de cotas de importação, ou até mesmo a proibição japonesa à entrada de arroz estrangeiro em seu mercado interno. O Brasil vem topando de frente na OMC com as poderosas missões negociadoras, especialmente treinadas por Washington e Paris, na briga pelas patentes de medicamentos para o combate da Aids. A questão vem mexendo com os interesses dos conglomerados farmacêutico-industriais dos EUA e França, que, para exigir royalties do Brasil e garantir o retorno de seus investimentos em pesquisa, agitam as bandeiras da propriedade intelectual nos foros das disputas comerciais.

Nessa batalha cada vez mais complexa pela conquista de fatias maiores do comércio global, o que mudou para os governos e lobbies de exportadores das mais diferentes nacionalidades é o fato de, hoje, eles serem obrigados a recorrer à estrutura vigente na OMC para denunciar práticas consideradas ilegais na comercialização de produtos e serviços ou defender-se delas. Embora no mundo, atualmente, ocorram a todo momento acordos bilaterais e entre os blocos comerciais, como Mercosul e Nafta por exemplo, é por meio da OMC que os governos conseguem encontrar formas legítimas de controle da competição predatória, estabelecendo regras que tenham curso universal.

Aberrações

"Nações de grande estatura comercial global – como é o caso dos Estados Unidos ou Japão – escapam dessas regras ou criam suas próprias leis para, legitimadas na OMC, aumentar sua competitividade nos mercados externos e ao mesmo tempo dificultar a contrapartida, isto é, a entrada dos produtos estrangeiros em seus territórios", declara o advogado em direito internacional Durval de Noronha Goyos Júnior, um dos árbitros brasileiros na OMC. "Apesar do aparato teoricamente neutro da OMC, as potências comerciais têm conseguido impor suas condições e moldado, de acordo com suas prerrogativas, o fluxo global das mercadorias", acrescenta ele. "As áreas agrícola e têxtil continuam, na prática, excluídas do sistema, e os novos setores, como serviços, investimentos e tecnologia, têm normas que asseguram tratamento discriminatório contra os países em desenvolvimento, enquanto aberrações grotescas, como os sistemas antidumping, permanecem em vigor para, arbitrariamente, proteger interesses ilegítimos das potências industriais", afirma o árbitro brasileiro em Genebra.

A OMC já controla mais de 90% do comércio mundial e, com o ingresso da China na organização, o único país de grande porte ainda à margem do sistema passou a ser a Rússia. Impedir, portanto, a ocorrência de arbitrariedades e defender-se de ataques na OMC tornou-se item prioritário na agenda de todos os governos, inclusive o brasileiro.

Desde 1995, quando a entidade foi criada, vista na época como uma espécie de "evolução" do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt) (ver texto abaixo), o Brasil vem aumentando sua visibilidade no cenário comercial global exatamente por tentar se impor numa arena amplamente dominada pelas potências do hemisfério norte, o que o torna crescentemente suscetível a queixas e disputas com os parceiros internacionais. Embora ainda com uma participação mínima no trilionário mercado mundial de bens e serviços – apenas 1% de todas as trocas globais vêm ao Brasil ou são provenientes daqui –, o governo brasileiro, no grupo dos países em desenvolvimento, está entre os que mais se envolvem em casos polêmicos – como o da quebra de patentes para baratear o custo do programa nacional de combate à Aids –, que colocam à prova os mecanismos de solução de disputas criados pela OMC. "O Brasil é hoje percebido no mundo como um ‘global player’, país de mercado interno de importância e comércio altamente diversificado", declara o embaixador Carlos Antonio Paranhos, assessor especial para assuntos internacionais do ministro da Agricultura, Marcus Vinícius Pratini de Moraes. "Atualmente não há questões cruciais do mercado mundial nas quais o Brasil não seja ouvido", acrescenta.

Briga de titãs

Hoje partidário da estratégia do "ataque como a melhor forma de se defender", o governo decidiu que a missão brasileira em Genebra, chefiada pelo embaixador Celso Amorim, deve adotar um perfil mais ofensivo. Entre todos os casos rumorosos tratados pela organização do comércio mundial, um dos que ainda ocupam grande espaço na mídia internacional é a briga de titãs entre a Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer) e a rival canadense Bombardier. Essa questão vem sendo recorrentemente citada por analistas de comércio em todo o mundo para ilustrar o conflito entre um país emergente, o Brasil, e uma potência industrial, o Canadá, onde a renda per capita é das mais altas do mundo.

Além do frisson provocado por ser um conflito que envolve o supercompetitivo mercado mundial da aviação comercial, também acabou se colocando em jogo um dos principais mecanismos da própria política nacional de comércio exterior, o Proex, a linha de financiamento destinada a equalizar as taxas de juros internas com as externas, considerado pelos canadenses – e pelas demais potências industriais – uma forma "disfarçada" de o governo brasileiro subsidiar vendas de industrializados, como os aviões da Embraer, no mercado internacional.

"O episódio mostrou ao Brasil e ao mundo como a OMC pode influenciar a política interna de desenvolvimento dos países membros e, desse modo, a importância de avaliar cada linha das propostas apresentadas pelas nações ricas, especialmente as européias e da América do Norte, que, num primeiro momento de consolidação do foro de Genebra, foram as que deram forma à organização", afirma uma fonte do Itamaraty, o órgão de diplomacia do governo brasileiro que administra as disputas comerciais com seus parceiros externos.

A briga Embraer/Bombardier também vem sendo encarada pelo Itamaraty como um marco no rompimento da imagem brasileira de país vinculado ao mercado de produtos de baixa tecnologia. O contencioso, em seus aspectos mais amplos, inserido no chamado conflito norte-sul, mostrou explicitamente, pela primeira vez, um representante do grupo dos mais ricos, o Canadá, tentando, por todos os meios jurídicos, evitar que um representante das nações em desenvolvimento, o Brasil, pudesse ascender a um mercado tradicionalmente dividido pelas potências industriais, o de jatos comerciais.

Constituída para evitar explosões nacionalistas, retaliações unilaterais que num passado ainda recente geraram tantas guerras comerciais e o fechamento do mercado global, a função da OMC é, da mesma forma como funcionam os tribunais de Justiça, exercer o poder moderador, ouvir todas as partes envolvidas, investigar as acusações e decidir com base em provas fundamentadas se as acusações são legítimas e que procedimentos o país infrator deve adotar para sanar as distorções. Tudo estritamente sob as leis do direito internacional. Ocorre que, por sua posição dominante no mercado mundial, os países mais ricos também acabaram controlando a estrutura da própria OMC e instalando juízes tirados de seus quadros nas próprias instâncias de resolução de disputas.

"Desde que a OMC foi criada", afirma Noronha, reconhecidamente uma das maiores autoridades brasileiras no assunto, "vemos que grande parte das decisões que envolvem disputas travadas entre países desenvolvidos e em desenvolvimento tem um final previsível." Em levantamento realizado por ele sobre todas as pendências comerciais que se enquadram nesse gênero na OMC, Noronha constatou que 80% das decisões são favoráveis às nações desenvolvidas. "A vitória é quase sempre dos países ricos", afirma ele. "A situação só é mais equilibrada quando a disputa é travada entre duas nações ricas, ou duas pobres."

Ruy de Salles Cunha, diretor para assuntos internacionais da Associação Brasileira de Executivos de Comércio Exterior (Abecex), compartilha das opiniões de Noronha. Segundo ele, a OMC tem uma tendência a favorecer os países ricos. No caso brasileiro, contudo, Cunha acha que, para fortalecer sua posição no comércio global, o Brasil deveria consolidar as alianças primeiro no Mercosul, ampliando o mercado comum para os demais países sul-americanos. "O Brasil precisa agora é sedimentar sua posição de líder no Mercosul, reforçar o bloco para, com ele, ter melhores condições de barganha com o Nafta, e na própria OMC", afirma o especialista.

Resultado surpreendente

Uma das conseqüências do caso que envolve a Embraer e a Bombardier foi o ônus com que o governo brasileiro teve de arcar, de ver seu comércio com o Canadá alvo de retaliações de aproximadamente US$ 1,4 bilhão – US$ 233 milhões por ano – num período de seis anos. Mais importante que isso, o país foi forçado a alterar seus mecanismos de incentivo às exportações contidos no Proex para atender às exigências da Organização Mundial do Comércio. Porém, graças à habilidade do Itamaraty, o Brasil pôde reagir e, apegando-se a regras em uso na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne cerca de 30 países mais afluentes do mundo, criou o Proex III, uma versão mais afinada com as regras comerciais das nações desenvolvidas.

Sintonizado com a orientação de ser mais ofensivo na arena global, o governo brasileiro também acabou descobrindo "uma mãozinha de Ottawa" para a Bombardier conseguir colocar seus aviões a preços mais baixos no mercado internacional e contra-atacou, exigindo o direito de também exercer retaliação em relação às exportações canadenses ao Brasil. O resultado foi surpreendente. Ao contrário do que previam os analistas do setor, em outubro passado foi a vez do Canadá de sofrer um revés, pois a OMC condenou o governo daquele país pelos subsídios concedidos à concorrente da Embraer, o que pode ser considerado uma vitória brasileira nesse conflito, embora os canadenses ainda possam recorrer da decisão.

Apesar de ter ganho esse round, fontes do Itamaraty já anteciparam que o governo brasileiro não pretende pôr em prática as retaliações a que possa ter direito. Na verdade, de acordo com informações obtidas com o embaixador José Alfredo Graça Lima, o desfecho favorável ao Brasil será utilizado apenas como garantia contra eventuais retaliações canadenses, especialmente as que venham a atingir a indústria têxtil nacional.

Em sua análise, a OMC concluiu pela condenação de dois programas de incentivo do governo canadense – a Export Development Cooperation, que concede financiamento subsidiado, e o Canada Account, um fundo do Tesouro que disponibiliza recursos a juros baixos –, os quais favoreceram a Bombardier na concorrência para a venda de jatos à empresa norte-americana Air Wisconsin, no valor de US$ 2 bilhões, em que a Embraer foi derrotada.

Na avaliação do Itamaraty, a disputa comercial com o Canadá, na verdade, marca apenas o início de uma série de novos litígios internacionais que deverão se ampliar à medida que o Brasil conseguir expandir seu comércio exterior. Desde que Brasília desencadeou o processo de abertura do parque nacional à competição global, os empresários brasileiros perderam sua reserva de mercado, tiveram de enfrentar uma competição internacional muitas vezes predatória e se adaptar, por meio do emprego intensivo de tecnologia e de capital, a uma produtividade do trabalho mais compatível com o grau já obtido nos EUA e na Europa.

Nesse contexto, a entrada da China na OMC, apesar das divergências com os Estados Unidos, era defendida pelo Brasil como uma prioridade. Sem ser governada pelas leis que regem a OMC, a China vinha infringindo todas as regras para alcançar o consumidor mundial com seus produtos muitas vezes fabricados com mão-de-obra não remunerada. A China ainda era notória por não respeitar as leis internacionais de patentes e produzir em massa artigos de grifes famosas. Dessa maneira, ficava totalmente impossível competir com os chineses quer no mercado interno, quer fora dele.

Líder emergente

Os esforços para uma nova rodada de negociações da OMC destinada a corrigir imperfeições do sistema têm a pretensão de avançar em várias das questões pendentes para uma melhor convivência do comércio global, inclusive com a entrada da China na organização. O Brasil, enquanto isso, está podendo sentir como os conflitos travados com os canadenses, norte-americanos e europeus estão levando o país a uma posição de líder de fato entre as nações emergentes. A enorme repercussão na opinião pública mundial da posição defendida pelo Brasil, desamarrando o nó das patentes norte-americanas para poder dar continuidade ao programa nacional de combate à Aids, impulsiona Brasília a encabeçar a batalha pela revisão de condições desfavoráveis em acordos na OMC, que limitam a expansão das exportações de produtos industrializados provenientes de nações em desenvolvimento. Segundo os analistas da organização, depois dos chamados quatro grandes – EUA, Canadá, União Européia e Japão –, Brasil e Índia são os países que mais têm poder para influenciar a OMC.

Até recentemente, o Brasil deu prioridade à liberalização agrícola, porque o governo entendia que esse setor era mais importante para a nação. Desde o conflito com o Canadá e os confrontos com os EUA, o país decidiu engajar-se também na revisão do Acordo de Subsídios e Medidas Compensatórias, que vem sendo usado pelas potências industrializadas para impor barreiras à competição global em áreas onde o Brasil é mais competitivo, como calçados, papel e celulose, aviação e manufaturados de aço.

Celso Amorim, o embaixador brasileiro em Genebra, vem sendo porta-voz da idéia de que os países emergentes precisam construir uma agenda comum para "corrigir o déficit de desenvolvimento que existe na OMC", ou seja, revisar os acordos, cujos termos foram estabelecidos pelas nações industrializadas, que criaram uma camisa-de-força para as regiões menos desenvolvidas. Amorim chegou a sugerir que Índia e Brasil poderiam constituir uma comissão de frente: "A Índia não produz avião, mas tem uma poderosa indústria de software e conhece de perto a situação de um país emergente quando desperta incômodo em um industrializado".

Outras importantes mudanças de atitude começaram a ser notadas na missão brasileira: um relacionamento mais cordial com as ONGs, especialmente depois do episódio do enfrentamento com os EUA na questão farmacêutica, e o fim da eterna reverência ao mundo desenvolvido, que poderia estar marcando uma nova postura nacional, livre do ranço colonialista, na OMC.

Aparentemente para tentar sedimentar a posição de liderança há pouco adquirida, o Brasil decidiu partir para o ataque também na questão agrícola, uma das grandes pendências da OMC, ao lado da liberalização do setor de serviços. Para o ministro da Agricultura, Marcus Vinícius Pratini de Moraes, não há como rever nenhum acordo em vigência na OMC sem que, antes, a questão agrícola mundial seja exaustivamente negociada.

Em jogo, na questão agrícola, segundo os especialistas, está a própria manutenção da atual estrutura de poder em potências hegemônicas como EUA e União Européia. Como ambas usam e abusam de seu amplo poder financeiro para subsidiar a produção e exportação de produtos agrários, os agricultores dessas regiões ganharam uma poderosa força reivindicativa que, em última instância, pode chegar a paralisar a atividade econômica dessas nações. Nos Estados Unidos, o lobby agrícola também define posições no Congresso e pode abalar dramaticamente o poder Executivo.

Para o Brasil e os parceiros do Mercosul, também exportadores de produtos agrícolas, o mais importante é tornar as relações comerciais internacionais, nesse setor, tão liberalizadas para a competição global como estão, por exemplo, nas áreas de aviação comercial, indústria automotiva ou de software, em que as potências industriais exercem seu domínio. O contra-ataque das nações em desenvolvimento, numa próxima rodada de negociações, deverá selar o destino da OMC.


Efeitos do terror

Mais de um mês após os atentados terroristas nos Estados Unidos, ainda é difícil avaliar qual será o impacto desses acontecimentos no fluxo mundial de comércio. Segundo a vice-diretora gerente do FMI, Anne Krueger, previsões nesta fase de reacomodação ainda são prematuras e sujeitas a imprecisões. "É como atirar num alvo em alta velocidade", diz a economista. A própria Krueger, no entanto, deu uma pista ao afirmar que, embora esteja descartada uma recessão econômica generalizada, o crescimento do PIB global, neste ano, será bem mais lento do que se previa inicialmente. A economia mundial deve perder cerca de meio ponto percentual na taxa de expansão e, segundo dados do FMI, ficará na faixa de 2,5%.

Contudo, essa desaceleração econômica, aparentemente mínima, tem potencial para comprometer, segundo especialistas da OMC, cerca de 20% das trocas internacionais. Uma estimativa inicial dos prejuízos de exportadores de todas as partes do mundo, inclusive do Brasil, já alcança a cifra de US$ 800 bilhões.

Além da perda de ritmo da economia, traduzida em menos consumo interno e, portanto, menos importações, o comércio global voltou a ficar sujeito a um refluxo na livre circulação de mercadorias. Outro efeito devastador dos atentados poderá ser uma nova onda de fechamento de fronteiras comerciais, especialmente nos Estados Unidos. "Corremos o risco de perder mais de meio século de avanços na liberalização do comércio mundial", afirma uma fonte da OMC.

Preocupado com esse rumo, Robert Zoellick, chefe do escritório de comércio exterior dos Estados Unidos, o USTR, conhecido dos brasileiros por ser o porta-voz das queixas norte-americanas contra exportações nacionais consideradas anticompetitivas, declarou em Washington, recentemente, que agora, mais do que nunca, é necessário defender o livre comércio global. "Fechar as velhas fronteiras", disse ele, "não vai ajudar ninguém e muito menos apaziguar os terroristas."


Quem pode mais...

Poder econômico dá as cartas na OMC

Integrada por 144 países, a Organização Mundial do Comércio é um organismo multilateral em que os próprios países membros tomam todas as decisões diretamente e por consenso. Teoricamente, a OMC difere do Fundo Monetário Internacional (FMI), por exemplo, cujo poder está nas mãos de quem detém as maiores cotas, ou seja, as potências ricas. Na prática, contudo, o poder econômico é quem dá as cartas na OMC.

Diante da complexidade de assuntos, o emaranhado de leis e a sinuosidade dos processos de resolução de disputas – são cerca de 2,5 mil reuniões por ano –, o país que tem uma equipe numerosa e estável instalada em Genebra acaba obtendo uma vantagem considerável sobre os demais. Norte-americanos e europeus procuram não mexer em suas missões em Genebra, mas o mesmo não acontece com as nações em desenvolvimento, Brasil incluído, que constantemente trocam seus representantes.

Dirigida por Mike Moore, a OMC é uma espécie de primo pobre das organizações internacionais. Tem 530 funcionários e um orçamento de US$ 78 milhões, menor que as despesas para viagens do FMI. Apesar da orientação de dar assistência a qualquer país negociador, e esse é um dos problemas estruturais mais graves da OMC, a maioria dos funcionários é recrutada em nações desenvolvidas, todas do hemisfério norte, e as missões dos governos mais pobres reclamam que, na hora H, os funcionários acabam sempre ajudando a terra natal. Além disso, e essa é outra queixa dos países pobres, a OMC tem um programa de assistência técnica que deixa muito a desejar. A divisão de pesquisas, por exemplo, limita-se a compilar dados de outras organizações para publicar estimativas sobre o comércio mundial.

Resultado de sucessivas rodadas de negociações multilaterais comerciais – como as rodadas Kennedy, Tóquio e Uruguai –, todas no âmbito ainda do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt), criado no pós-guerra para regulamentar as trocas de mercadorias internacionais, a OMC nasceu em 1995 como o fórum permanente para negociações e resolução de disputas dos países associados, destinado a derrubar barreiras tarifárias e não-tarifárias, como os subsídios e restrições sanitárias, e tornar o mundo um lugar onde o comércio possa fluir livremente e o consumidor, em última instância, possa ser o grande beneficiário dessa liberdade, comprando o que há de melhor pelo preço mais justo.

A OMC é também uma exigência do mundo globalizado, e esta tem sido uma das bandeiras levantadas pelos grupos e organizações que vêm sistematicamente protestando nos encontros de organismos como a própria OMC, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Com a interligação crescente entre os países e a hoje difícil fronteira física entre as nações, o mundo precisa cada vez mais de uma legislação comercial de alcance planetário.

Além disso, a OMC, por tratar de questões essencialmente multilaterais, torna obsoleto o regionalismo, e disputas bilaterais, que anteriormente poderiam evoluir rapidamente para conflitos às vezes armados, estão sendo aos poucos substituídas por civilizadas sessões de debates na não menos civilizada Genebra, na Suíça, país escolhido para ser a sede da OMC, assim como já era desde a época do Gatt, por sua tradição de neutralidade político-ideológica. Um status que, hoje, muitos dos participantes da OMC contestam, especialmente por ser a Suíça palco recente de vários escândalos que envolveram operações ilegais de remessas de dinheiro sujo.

Estrutura complexa

Na OMC as decisões são tomadas em três níveis: o órgão superior é a conferência ministerial, que se reúne a cada dois anos. Durante esse intervalo, o órgão máximo é o Conselho Geral, a instância política, composta de chefes de delegações. É onde decisões e interpretações de acordos são tomadas.

O segundo nível é o jurídico, que é o órgão de Solução de Controvérsias, onde se dá na prática o embate entre países que entram em litígio por conta de algum setor do comércio externo. No terceiro nível estão os grupos de técnicos das nações participantes, que se dividem em comitês e grupos de trabalho para supervisionar a implementação dos acordos e, principalmente, o cumprimento das medidas decididas pelo órgão de Solução de Controvérsias.

Basicamente, é a partir da articulação dessas três instâncias que as regras comerciais vão entrando nas regulamentações internas dos 144 países membros, incluindo o Brasil. Historicamente, a viga mestra de todo o sistema é o órgão destinado a resolver as disputas. Funciona em duas etapas: primeiro é formado o que em inglês se chama de panel (uma comissão de investigação), integrada por três especialistas, normalmente diplomatas sem interesse direto no conflito. Em seguida, há recursos que podem dar entrada no Órgão de Apelação, formado por sete juízes fixos, com mandato de quatro anos.

Em ambos os casos a divisão jurídica da OMC, dominada, segundo denúncias de especialistas como o advogado Durval de Noronha Goyos Júnior, por integrantes de origem anglo-saxã, acompanha e aconselha os "panelistas". Por isso é que surgem reclamações de que nesse mecanismo impera a tradição norte-americana na forma como o tribunal faz as leis. Tanto a situação não é tão transparente como deveria ser que, quando há duas potências industriais envolvidas em algum litígio, como EUA e União Européia, por exemplo, a questão se complica e as decisões são sempre seguidas de contestações e apelações que acabam fazendo com que as disputas voltem à estaca zero.

Críticos do sistema utilizado na OMC argumentam que as pendências são analisadas quase sempre do ponto de vista puramente técnico: tudo acaba se transformando numa questão de direito e regras, e, dependendo do caso, esquecem-se os problemas de âmbito mais amplo, como por exemplo o que pode representar para países da América Central a exportação de bananas para a Europa. Os europeus acham-se no direito de exigir dos centro-americanos metas de qualidade e especificidades do produto quase impossíveis de alcançar, mas, com a força da União Européia, as soluções pesam sempre a seu favor. Não há, por exemplo, uma instância que também avalie o impacto econômico que determinada lei possa provocar sobre populações inteiras, cujo ganha-pão acaba sendo ameaçado pelo tecnicismo de diplomatas circunscritos à realidade de Genebra.