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(In)Justiça e Abolição: 133 anos da Lei Áurea
Por Lívia Sant’Anna Vaz*
Em 13 de maio de 2021, a Lei Áurea, Lei Imperial nº 3.353, completa 133 anos, sem que a anunciada abolição da escravidão tenha, até os dias de hoje, sido capaz de apagar os deletérios efeitos de quase 400 anos de sistema escravocrata.
A Lei Áurea não deve ser vista como um ato de benevolência que concedeu liberdade às pessoas escravizadas. Essa é a história romantizada e subvertida, contada sob a perspectiva do colonizador, e ainda repetida pelos livros didáticos. A declaração da abolição foi resultado de um longo processo de luta e resistência do povo negro – por meio de revoltas, formação de quilombos, fugas em massa, queima de engenhos e destruição de fazendas, suicídios e envenenamentos –, aliado ao movimento abolicionista, além da pressão internacional sofrida pelo Império brasileiro.
Último país do Ocidente a abolir a escravidão, o Brasil adiou ao máximo a emancipação, por meio de leis supostamente abolicionistas, mas que garantiam a continuidade da lucrativa exploração da mão de obra dos escravizados.
Ao contrário do que por muito tempo se propagou, a escravidão no Brasil, longe de ser cordial, foi das mais cruéis do sistema escravocrata colonialista das Américas e gerou resistência desde os primeiros anos de sua instituição, por volta de 1550. A luta pela abolição da escravatura remonta aos quilombos do século XVII, tendo na República dos Palmares – situada na Serra da Barriga, em Alagoas, e liderada por Zumbi – seu mais pujante símbolo. O anseio abolicionista transpôs-se também para o Parlamento, quando se pretendeu, sem sucesso, incluir a extinção da escravidão na primeira constituição brasileira, a Constituição do Império do Brasil. Esta, outorgada por D. Pedro I, em 24 de março de 1824, afirmava a igualdade de todos perante a lei, sem qualquer menção aos termos escravidão ou escravos, convenientemente omitidos do texto constitucional para não destoarem da cláusula igualitária.
O interesse britânico pelo mercado e mão de obra livres – condições que se impunham pelo sistema econômico impulsionado pela Revolução Industrial – reforçava, em âmbito internacional, o processo de extinção do tráfico negreiro e do regime escravocrata. Nesse contexto, em 23 de novembro de 1826, foi assinada uma convenção entre Inglaterra e Brasil para que este extinguisse o comércio de escravos vindos da costa africana, no prazo de máximo de três anos. Ratificado em 13 de março de 1827, o tratado deu origem à promulgação da Lei Diogo Feijó, de 7 de novembro de 1831, que declarava livres todos os escravos vindos de fora do Império e impunha penas aos importadores. A sanção imputada aos importadores era pena corporal, conforme artigo 179 do Código Criminal, cumulada com multa de duzentos mil réis por escravo, e, ainda, com o pagamento das despesas de reexportação do escravo para qualquer parte da África. A Lei – que, à época, significaria a liberdade de pelo menos metade das pessoas escravizadas até então e de mais de um milhão daquelas trazidas até 1850, quando o tráfico foi efetivamente contido – jamais foi aplicada, o que lhe rendeu a alcunha de lei para inglês ver.
Apenas em 4 de setembro de 1850, a Lei nº 581, conhecida como Lei Eusébio de Queiroz, determinou o fim do tráfico negreiro intercontinental – que passou a ser considerado pirataria – sem, contudo, restringir a prática da escravatura no Brasil. Com mais de 500% de lucro, o tráfico de escravos era tão rentável quanto atroz. Por isso, mesmo com a média de 25% dos escravizados que morriam no trajeto ou, ainda, com a perda total da carga – eventualmente afundada para encobrir as provas do tráfico, quando da interceptação por navios britânicos –, era mais vantajosa a reposição de peças do que o custo com a manutenção destas. Diante dessa realidade, a Lei Eusébio de Queiroz chegou a estimular o tráfico, por ter resultado no aumento do preço da mercadoria humana, e, portanto, do lucro dos traficantes brasileiros e portugueses que, durante alguns anos, ainda tiveram na ausência de efetiva coibição, a garantia da continuidade de seus negócios.
Em 18 de setembro de 1850, foi aprovada a Lei nº 601, primeira Lei de Terras do Brasil, estabelecendo que, a partir de então, a aquisição de terras só poderia ser feita mediante compra, não sendo mais reconhecida a aquisição por meio de posse das áreas ainda não apropriadas ou doadas pelo Estado. Além de beneficiar a aquisição de terras brasileiras pelos colonos, a Lei tinha como foco a inviabilização da aquisição de propriedade pelos negros libertos e a desocupação dos quilombos já formados.
A Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, denominada Lei dos Nascituros ou Lei Rio Branco – mais conhecida como Lei do Ventre Livre –, considerava livres os filhos da mulher escrava, nascidos no Império, após a data de sua promulgação, sem, contudo, libertar suas mães. A Lei determinava, ainda, que os filhos menores das escravas – chamados ingênuos – ficassem sob a tutela dos senhores de suas mães, que deveriam criá-los e tratá-los até completarem oito anos de idade. Após essa idade, o senhor teria a opção de receber uma indenização do Estado ou de se utilizar dos serviços dos ingênuos até que completassem 21 anos.
A luta pela abolição se propagou pelo Brasil, antecipando a emancipação em algumas províncias. No Ceará, desde 1881, os jangadeiros passaram a negar o transporte de escravos para os navios, ao que se somou, em 1º de janeiro de 1883, a entrega de cartas de alforria a 116 escravizados, na Vila do Acarape – depois denominada de Redenção. Finalmente, no dia 25 de março de 1884, o Ceará se tornou a primeira província do Brasil a declarar oficialmente a abolição da escravatura. No mesmo ano, no dia 24 de maio, foi declarada extinta a escravidão em Manaus, fato que impulsionou igual decisão, em 10 de julho de 1884, na província do Amazonas, segunda no país a declarar formalmente abolida a escravidão. Os acontecimentos nas províncias precursoras abriram caminho para novos atos de libertação, em cidades localizadas no Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro. Recordem-se, ainda, as libertações garantidas a partir de decisões dos Tribunais nas chamadas ações de liberdades.
Nessas circunstâncias de constante avanço da abolição e de intensificação das pressões externas, na sequência legislativa, veio a Lei nº 3.270, de 28 de setembro de 1885 (Lei dos Sexagenários ou Lei Saraiva-Cotegipe), que regulamentava a extinção gradual do elemento servil, libertando, sob as condições nela estabelecidas, os escravos maiores de 60 anos de idade. Digna de nota é a condição estipulada no §10 do artigo 3º, que obrigava os escravos beneficiados pela lei a prestar serviços aos seus ex-senhores, pelo período de três anos, a título de indenização pela sua alforria. Frise-se a inocuidade da medida de libertação, uma vez que a média de vida do trabalho escravo no campo era de 10 a 15 anos, sendo raro que um cativo alcançasse a idade prevista na Lei.
Enfim, a Princesa Isabel assinou a Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888, que, com apenas dois artigos, declarou extinta a escravidão, com revogação de todas as disposições legais em contrário. Símbolo da formalização legal da extinção da abolição da escravatura no Brasil, a Lei Áurea resultou na libertação de apenas 700 mil pessoas, que ainda estavam escravizadas naquele final do século XIX. A tardia lei declaratória da abolição da escravatura formalizava o que, na prática, já vinha se concretizando, desde o início da década de 1880.
Áurea (do latim aurĕu, “de ouro”, que designa nobreza) apenas no nome e na pomposa solenidade que marcou sua sanção, a Lei Imperial não pretendia concretizar valores nobres. Assinada no Paço Imperial – com uma pena de ouro 18 quilates, cravada com 27 diamantes e 28 rubis –, a última lei do Império, talvez a mais curta e mais conhecida da história do Brasil, foi festejada em todo o país. Passada a euforia, a questão principal permanecia escancarada, inocultável pela lacuna legislativa. A tão esperada lei silenciou: nenhuma palavra quanto ao destino dos libertos! Estes não receberam qualquer tipo de reparação, apoio ou recurso pelos quase 400 anos de trabalho forçado, sob tortura e opressão. Ao contrário, tentou-se a indenização aos ex-senhores de escravos, por meio do projeto de lei do Barão de Cotegipe, de 19 de junho de 1888 – que autorizava o governo brasileiro a indenizar os proprietários dos escravos libertos – desígnio que, ao menos, também não logrou êxito.
Não bastasse o silêncio tão eloquente quanto conveniente da lei, a fase pós-abolição foi marcada por uma política de embranquecimento da população – fundada no racismo científico eugenista –, associada à imigração subvencionada de europeus. Era necessário embranquecer o país, para livrá-lo da mancha negra e garantir a purificação do sangue brasileiro. Os imigrantes europeus ocuparam os postos de trabalho e tiveram o acesso à terra facilitado, prerrogativas que não foram garantidas aos recém-libertos. O trabalho dos africanos e de seus descendentes foi explorado até a última gota de sangue e suor. Mas quando sua mão de obra não mais interessava às elites escravocratas, descartáveis, foram substituídos pelos imigrantes europeus.
Nesse momento da história, impede-se a formação e consolidação de uma possível classe média negra no país. Criam-se obstáculos intransponíveis à inserção dos negros na sociedade brasileira, muitos dos quais permaneceram nas terras dos seus senhores em condições precárias de trabalho e, até mesmo, sem nenhuma remuneração, apenas para assegurar o que comer e onde morar. Foram lançados à própria sorte, ou melhor, ao próprio azar; empurrados das senzalas às favelas; criminalizados e perseguidos; relegados à miséria, à fome e ao encarceramento em massa. Como afirma Abdias Nascimento, foi assim que a abolição exonerou de responsabilidades os senhores, o Estado e a Igreja, atirando os africanos e seus descendentes para fora da sociedade, condenando-os à escravidão em liberdade.
O Estado brasileiro, entretanto, não foi apenas omisso. Ele participou, por meio de seu aparato jurídico-político, da construção dessa sociedade racialmente hierarquizada na qual ainda vivemos. Desse modo, tem a obrigação de desconstruir essa realidade de racismo estrutural e institucional que se arrasta até os dias atuais, refletindo-se em fenômenos bio(necro)políticos como o extermínio da juventude negra, o encarceramento em massa, o aumento do feminicídio de mulheres negras, maiores taxas de mortalidade infantil e materna entre as pessoas negras. Enquanto a raça for um fator que condiciona o acesso das pessoas aos direitos fundamentais, o Estado deve continuar pautando a questão racial para promover igualdade em direitos e de oportunidades.
Se pensarmos na abolição da escravatura como um processo de concretização de efetiva liberdade, percebemos, então, que a Lei Áurea declarou uma pseudo abolição; iniciou um processo de abolição ainda inacabado. A desigualdade racial que afeta o acesso de mais de 50% da população brasileira aos direitos fundamentais, como saúde, moradia e educação, atinge diretamente e de forma muito intensa a própria liberdade das pessoas negras. Estas não possuem, na prática, o mesmo direito de liberdade, seja de ir e vir, seja de escolher suas profissões, seja de acessar os espaços de poder, dentre eles as universidades, o sistema de justiça e os cargos políticos.
Assim, o dia 13 de maio não é uma data a ser celebrada. Revela uma ferida aberta, jamais cicatrizada. Mas essa data também não pode mais passar em branco. É preciso resgatar nossa memória esquecida, amnésia coletiva; desvelar nossa vergonha. É momento de refletir sobre o quanto ainda precisa ser feito para reparar a dívida histórica que o Estado brasileiro possui com a população negra. É tempo de continuar a luta, recontar nossas próprias histórias, seguir abrindo caminhos para a liberdade com nossos passos (que vieram de tão longe!) inspirados em nossa realeza ancestral.
* Lívia Sant’Anna Vaz é Promotora de Justiça do MP-BA. Mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Reconhecida, em 2020, como uma das 100 pessoas de descendência africana mais influentes do mundo, na Edição Lei & Justiça (Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition).
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Este conteúdo faz parte do projeto Do 13 ao 20 – (Re)Existência do Povo Negro, ação do Sesc São Paulo que faz alusão aos marcos 13 de maio e 20 de novembro e busca o fortalecimento e o reconhecimento das lutas, conquistas, manifestações e realidades do povo negro. Conheça a programação aqui.
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