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Victória Del Amor Inmaculado

Ilustração: Editoria de Arte
Ilustração: Editoria de Arte

3º ato

Logo pela manhã a casa foi invadida por um rumor. Quase como se as asas de todas as aves da pequena Coronel Suarez simultaneamente encontrassem, em pleno voo, a fratura. Isabel entrou no quarto de paredes ocres. Alcançou o alto do armário com o auxílio de um banco. Pegou uma caixa de madeira nobre. Sentou-se na cama e a acariciou com as mãos firmes, por longos minutos. O ar do começo de inverno era denso. Ao abri-la, deparou-se com sua pistola de tiro competitivo. A arma repousava no feltro verde do forro. Pegou-a, inseriu uma única bala no tambor e fez posição de disparo apontando para a janela, depois o espelho, depois a janela novamente. Com este movimento, ganhou a medalha de ouro no campeonato nacional argentino de tiro esportivo em 1915. Pensou nos laranjais da distante Andaluzia. Na travessia do Atlântico, ainda menina, com os pais e as duas irmãs mais jovens. Por um momento, hesitou. Respirou fundo ao passar os olhos no quarto. Viu novamente a própria imagem no espelho. Sobre a cômoda, as cartas. A ação do tempo sobre o papel sempre a encantou. Ainda que fosse Angústias, a irmã do meio, a grande leitora da família, quem amava o cheiro, a textura e a cor dos velhos livros. O mesmo acontecia com as correspondências. Mas aquelas tinham o conteúdo da danação. 

 

1º ato

Armando conhecia tudo sobre a natureza da região. Especialmente os pássaros. Conheceu Isabel na pulpería de D. José. Sobre o balcão, ovos, batatas e cebolas para a tortilla. Ele trabalhava na estação de trem, do outro lado de Coronel Suarez. Ela chegou com Angústias e Lucía, a caçula ruiva e sardenta. Quando cruzaram o olhar, Isabel estremeceu. Seu indicador contraiu, involuntariamente, o movimento de apertar o gatilho da pistola de tiro. Armando deixou cair o copo de Fernet Branca que bebericava. Semanas depois, começaram a se encontrar no entorno da pequena cidade. Amaram-se em segredo por quase um ano com a cumplicidade solitária do comerciante. Na primeira vez, sangue no feno da cama improvisada. E as falas de Armando sobre as aves da região. Os ciclos de acasalamento e migração, a troca da plumagem, o pio ou grasnar de cada uma delas. E os sons que faziam quando em grande revoada. Como fraturas em movimento. A lembrança da última tarde ainda morava em sua boca de mulher – o amargo da erva-mate, as evoluções da língua, os pequenos terremotos na superfície volátil da pele – quando Armando a procurou com lágrimas nos olhos e a carta de transferência. Deveria se apresentar em dez dias na Quebrada de Purmamarca, perto do Cerro de Siete Colores, na Província de Jujuy, norte do país. Juraram amor sem fim. Armando viajou apertando o endereço da estação de Coronel Suarez nas mãos, local para onde enviaria suas cartas até o reencontro.

 

2º ato

Isabel esperou três longos anos. Nem uma linha chegou. A década de 1920 avançava, ebulição no mundo, silêncio no sul do planeta. Por cansaço, cedeu aos apelos de Paco, chefe da estação. Entregou-se à ataraxia possível. Entorpecida, casou. Não desconfiou da complacência do marido com o hímen inexistente. Nada perguntado, nada explicou. Indiferente, noite após noite, pariu Violeta, flor solitária de acalanto, lenitivo da saudade. Seguiu escrevendo com o pseudônimo combinado, Victória del Amor Inmaculado. Angústias levava as correspondências à estação, forma inútil de despistar o triste Paco, que tudo via e era todo muda espera. Postava com o endereço da pulpería, para sempre abençoado D. José, que os enxergou, entendeu e acolheu. Eventualmente, a irmã do meio passava na estação para levar doce de leite ao cunhado, quando aproveitava para correr os olhos nos escaninhos da correspondência. Fora a poeira e o vento frio que sopra da Patagônia, o fim do mundo gelado, a grande planície do nada, havia um naco do vácuo. D. José sempre abanava os braços largos em desalento quando perguntado sobre cartas ou telegramas. Ao correr do quarto ano, desistiu. Escreveu a última carta endereçada ao seu amor. Nela, contava da dedicação à filha, sobre como cortava pacientemente os ingredientes e temperos do puchero, e das tardes silenciosas e cinzentas em que olhava para o norte, quando uma lágrima, salgada como o Atlântico da meninice, escorria na face dura embalada pelo rumor distante de asas. Violeta era a única flor que exalava perfume e ternura. A vida com Paco era burocrática e afásica. Até a semana em que o marido foi chamado a Buenos Aires para uma reunião de trabalho. Isabel resolveu arrumar seu escritório confuso, uma surpresa, um mimo entre tanto silêncio e resignação. Ao girar a chave do baú, aquela que Paco jamais levava à casa, deparou-se com centenas de envelopes abertos. As cartas de Victória del Amor Inmaculado para Felipe Torres, o pseudônimo combinado com Armando. E as centenas de cartas dele para ela. Leu todas ali mesmo. Mergulhou nos anos de espera mútua. Na dor que simultaneamente os afastou. E no documento chancelado em que o Ferrocarril Central Argentino acolhia a recomendação de Paco para a transferência do jovem Armando.

 

3º ato. continuação. fim.

Isabel certificou-se de que Angústias havia levado a pequena Violeta à pensão que administrava com o marido. Antes, sob o olhar carinhoso da irmã, amamentou a filha. Quando ambas dobraram a esquina, entrou no quarto de paredes ocres. Alcançou o alto do armário com o auxílio de um banco. Espalhou todas as cartas de Victória del Amor Inmaculado e Felipe Torres na cama. O beijo gorduroso do cano da pistola tocou o topo do seu seio esquerdo. No instante em que seu dedo repetiu o gesto daquela tarde distante, na pulpería de D. José, finalmente as asas de todas as aves da pequena Coronel Suarez encontraram, em pleno voo, a fratura.

 

Caê Guimarães é escritor e poeta, autor de Por Baixo da Pele Fria (poesia, 1997), Entalhe Final (conto, 1999), Quando o Dia Nasce Sujo (poesia, 2005), De Quando Minha Rua Tinha Borboletas (Crônicas, 2010) e Vácuo (poesia, 2014). Seu primeiro livro foi lançado na Catalunha como Per Sota de la Pel Freda (trad. Joana Castells Savall, 2013). Encontro Você no Oitavo Round (Record, 2020) é seu romance de estreia e venceu o Prêmio Sesc de Literatura 2020.

 

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