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Todo dia é dia de dança
MARILENA ANSALDI ROMPEU BARREIRAS NO TEATRO COM UMA LINGUAGEM HÍBRIDA E DEIXOU LEGADO INCONFUNDÍVEL NA ARTE
Desde 1982, a data de 29 de abril está no calendário mundial como O Dia Mundial da Dança, promovido pelo International Dance Council da Unesco, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. A escolha remete ao aniversário de Jean-Georges Noverre (1727-1810), um dos criadores do balé moderno. Em 2021, quando você mudar os móveis da sala de lugar para tentar um espacate ou uma discreta pirueta, acrescente à celebração a uma homenagem saudosa a Marilena Ansaldi, elegante desbravadora do balé brasileiro, mas não só.
Em 9 de fevereiro, data da morte de Marilena, José Possi Neto, diretor de teatro, coreógrafo e amigo de longa data da artista, usou as redes sociais para se conectar à emoção que a perda de Marilena representa e resumiu o legado dessa dama dos tablados. “Ansaldi é referência e sinônimo de excelência em arte e cultura. Foi dramática e trágica nos palcos, mas foi hilária e divertida na vida (…) foi única e inconfundível na sua arte.”
Cena de Escuta Zé! (1977), dirigido por Celso Nunes | Foto: Djalma Limongi Batista
De plié em plié
Nascida na capital paulista em 1934, Marilena passou infância e adolescência em ares cariocas. Seu início na dança foi aos 16 anos. A profissão dos pais tangenciou sua vida nas artes: a mãe era corista e o pai, barítono. Ainda nos anos 1950, em SãoPaulo, frequentou a Escola Municipal de Bailado, onde, além de estudar, tornou-se professora. No auge do vigor, apresentou-se na Finlândia, em 1962.
Na mesma década, uma experiência de dança na União Soviética se intercalou à admissão no Balé Bolshoi. Primeira brasileira a fazer parte do grupo, tornou-se solista em 1963. Consagração laureada, pois até quem não se arrisca em nenhum rodopio já ouviu falar na companhia russa fundada em 1776. A escola aterrissou com uma filial no país nos anos 2000, na cidade de Joinville.
Do Bolshoi ela retornaria, em 1965, para a Escola Municipal de Bailado. Da estrada entre Rio de Janeiro e São Paulo, sua fase paulistana foi marcada pela criação, em 1969, da Sociedade Ballet de São Paulo. Em 1972, a sala de aula passa a ser a sua própria casa, onde ensina os fundamentos do balé clássico. Essa época lhe reservou o Prêmio de Melhor Coreografia Teatral pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) pelo espetáculo A Viagem. O ano de 1973 foi marcado pelo espetáculo O Corsário, seu último ato como bailarina clássica.
Altiva ativista
Em 1974, investiu arduamente na coordenação da reforma do Teatro Galpão. Em Caminhos Cruzados: Teatro de Dança Galpão 1974-1981 (Edições Sesc São Paulo, 2014), Ansaldi é citada como figura central na criação e no desenvolvimento da ideia daquele teatro. Inês Bogéa, autora do livro, diretora artística e executiva da São Paulo Companhia de Dança, revela como Marilena influenciou a dança na cidade e qual o seu papel nessas iniciativas de expandir o alcance das coreografias: “A carreira dela impactou o circuito da dança na cidade pela sua ousadia, determinação e entrega à arte, não somente nos palcos, mas também na organização de ampliação dos espaços para que a arte pudesse acontecer”.
Inês exemplifica a participação de Marilena na comissão que idealizou um espaço de experimentação dedicado à dança, concretizado com o aluguel da Sala Galpão do Teatro Ruth Escobar, entre 1975 e 1981 (leia perfil de Ruth Escobar na Revista E de março). “Espaço este que viria a se tornar um marco na história da dança”, relembra. A conjunção dessa iniciativa no fio estelar de sua carreira conduziu a bailarina ao título de precursora da dança-teatro no país.
Se em 1973 o espetáculo O Corsário indicou o fim da dedicação total ao clássico, podemos apontar, também, que Isso ou Aquilo (1975) representou a guinada suave à dança contemporânea. Para além da denominação dança-teatro, Inês sugere “dança-teatro-depoimento” para caracterizar a ampliação do horizonte expressivo de Marilena, tratando de esferas que tangenciam a alma e o corpo.
Marilena Ansaldi e o ator Rodrigo Santiago em Por Dentro Por Fora,também dirigido por Iacov Hillel, argumento e textos de Mário Chamie: o conflito entre as rotinas repressivas e a necessidade vital de romper barreiras | Foto: Gerson Zanini
Sem limites
A linguagem híbrida e fluída estimulada por Marilena foi revolucionária e perpassa diferentes gerações de bailarinas e bailarinos, sem limites entre dança, teatro, dramaturgia e performance.
Seu desempenho se estendeu à escrita de roteiros, produção e direção de espetáculos, muitos em parceria com José Possi Neto. Marilena adaptou e dançou obras de Clarice Lispector, como Um Sopro de Vida e A Paixão Segundo G.H. Longe dos palcos, lançou a autobiografia Atos (edição esgotada) em 1994. Em 2005, estreou o espetáculo Desassossego. O ato final como atriz e bailarina foi no espetáculo Depois (2019), com coluna ereta e cabeça erguida, aos 85 anos, numa produção da Companhia de Dança Studio 3.
Dança possível
O balé oferece possibilidades. Essa foi uma das percepções da bailarina, professora e coreógrafa Zélia Monteiro ao assistir Marilena nos palcos. Zélia esteve presente em espetáculos e nas duas últimas premiações recebidas por ela, o Prêmio Governador do Estado de São Paulo (1975) e o Prêmio da Cooperativa Paulista de Dança (2014).
Zélia a viu pela primeira vez nos anos 1980, em apresentação do Teatro Galpão. Assim como Marilena, formou-se em balé clássico, e foi uma surpresa vê-la dançar: “Como uma bailarina clássica podia fazer tudo o que ela estava fazendo? Falando em cena, atuando, empregando movimentos estranhos ao balé”. Dela, então, apoderou-se a sensação de liberdade: “Era possível adentrar perspectivas mesmo sendo uma bailarina clássica. Para mim, como bailarina, professora de balé clássico e coordenadora de projetos de ensino no balé, Marilena vem como um exemplo dessa possibilidade. O balé não engessa”. Hoje Zélia compartilha com seus alunos o entendimento do “balé como uma técnica que abre possibilidades e não o contrário”. Salve, Marilena!
Baila comigo
UMA SELEÇÃO DE ESPETÁCULOS PARA ENTRAR NA DANÇA
Acervo Sesc Memórias
Isso ou Aquilo (1975)
Dirigido por Iacov Hillel, marcou o ano de 1975 e a dança do país. Isso não somente porque representou uma virada na carreira de Marilena, que deixou as sapatilhas de ponta e a dança mais clássica, mas também pelo arrojo da temática e da própria linguagem cênica.
Escuta Zé! (1977)
Dirigido por Celso Nunes, marcou época de modo incomum para um espetáculo, tanto pelas qualidades artísticas, quanto pelo teor inequívoco de resistência política e cultural. Um dos primeiros, se não o primeiro, trabalho no país a romper os limites da audiência específica da dança.
Desassossego (2005)
Dirigido por Marcio Aurelio, um monólogo minuciosamente coreografado. Aqui vivenciamos referências múltiplas do teatro e da dança dos últimos anos, e da carreira e vida de Ansaldi. Cada detalhe, cada gesto se desdobrava, ao mesmo tempo em que buscava uma simplicidade essencial.
Paixão e Fúria – Callas, o Mito (2014)
Dirigido por José Possi Neto, trazia a participação especial de Marilena, representando o ardor cenográfico da cantora lírica Maria Callas. Em vermelho vibrante, a bailarina fez uso da melhor intersecção entre dança e atuação.
Fonte: Inês Bogéa e Teatro de Dança Galpão 1974-1981 (Edições Sesc São Paulo)
Na ponta da página
CRUZE SEU CAMINHO COM A TRAJETÓRIA DO TEATRO DE DANÇA GALPÃO
Divulgação
Deixe-se levar pela beleza dos corpos entrelaçados em cadência na história narrada no livro Caminhos Cruzados: Teatro de Dança Galpão 1974-1981 (Inês Bogéa, Edições Sesc São Paulo, 2014). A linguagem do corpo e a trajetória de bailarinas como Marilena Ansaldi são retratadas no contexto desse local emblemático para a cena cultural da cidade. “Pela primeira vez o governo determinava um espaço para essa arte, onde aconteciam espetáculos, cursos e debates”, resume Inês. Há ainda cronologia completa de acontecimentos e fotos raras, além de depoimentos de diretores e críticos, como Sábato Magaldi, que foi casado com Marilena. Para não perder o ritmo, acompanhe também a programação online de dança nas atividades do #EmCasaComSesc pelos canais @SescAoVivo no Instagram e no canal do YouTube do Sesc São Paulo.