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A RESTRIÇÃO A ESPAÇOS PÚBLICOS SOMADA À POSSIBILIDADE DE FRUIÇÃO DE ATIVIDADES CULTURAIS E PRÁTICAS FÍSICAS PELO AMBIENTE VIRTUAL APONTAM OUTRAS FORMAS DE LAZER

Há um ano, o ambiente doméstico incorpora escritório, escola, restaurante, cinema, teatro, academia e até praia. “Quase todos os dias ela me diz: ‘Vamo pá paia?’, e vai buscar o maiô, seu chapéu UV e sua cadeirinha de praia diminuta. Espalhamos almofadas pelo chão, nossa areia improvisada, e então ela abre a cadeirinha em frente ao tapete azul, que faz as vezes do mar”, descreveu o escritor e ator Gregório Duvivier na coluna “A praia no tapete, o cavalo na vassoura, o mundo inteiro na sala de casa”, publicada no jornal Folha de S.Paulo, nos primeiros meses da pandemia. Ressignificamos o espaço de dentro para comportar o desejo de experimentar o ócio do lado de fora. Neste contexto, em que é essencial o isolamento doméstico para contenção da Covid-19, como estamos vivenciando o lazer?

O lar como um ambiente de lazer vem sendo estudado há décadas, segundo o professor Antonio Carlos Braamante, coordenador do Laboratório de Gestão das Experiências de Lazer (Lagel) da Universidade de Brasília (UnB). “Camargo e Requixa, pesquisadores de realce que tiveram as suas bases iniciais no Sesc São Paulo, abordaram o tema nos anos 1980. Eu mesmo, em 1992, em artigo publicado dedicado às tendências do lazer na virada do século, já afirmava que o lar se tornaria o principal centro de entretenimento das pessoas”, recorda.

 

Quebra-cabeças e jogos tradicionais de mesa tiveram um aumento de vendas na pandemia, segundo dados da Organização Mundial do Lazer (World Leisure Organization – WLO) | Foto: Pixabay

 

No entanto, apenas nos últimos anos é que as tecnologias popularizaram outras formas de vivenciar o lazer dentro de casa. Atividades que antes da pandemia podiam ser realizadas em espaços externos, como assistir a uma estreia do cinema, um espetáculo teatral e musical ou mesmo uma exposição, foram adaptadas ao meio digital. “Sem dúvida, um dos maiores impactos (da pandemia) foi o aumento do uso das tecnologias. Foi produzido um incremento para o uso das telas: filmes, séries, jogos”, observa a pesquisadora Cristina Ortega, chefe acadêmica e operacional da Organização Mundial do Lazer (World Leisure Organization – WLO).

Outro impacto significativo apontado pela especialista foi a redescoberta de atividades recreativas praticadas em espaços fechados. “Jogos tradicionais de mesa, como quebra-cabeças, tiveram um aumento de vendas”, acrescenta. “Além disso, em relação a essa redescoberta de atividades, muita gente teve a necessidade de seguir aprendendo, de buscar conhecimento e cultura, como também pudemos observar com o crescimento da venda de livros e um maior interesse em descobrir novas habilidades, como tocar um instrumento musical.”

Segundo pesquisa realizada pelo Lagel (leia boxe Lazer na pandemia), 56% dos entrevistados disseram que não houve a necessidade de fazer adaptações em suas moradias, mas as compras online relativas ao lazer tiveram expressivo aumento: mais de 250% nos instrumentos musicais, 241% em brinquedos e 166% em produtos eletrônicos.

Da mesma forma, práticas físicas e esportivas que aconteciam em parques, praças e outros espaços urbanos foram adaptadas para o ambiente virtual. E um alerta para o sedentarismo foi feito por especialistas da saúde já no ano passado. A Organização Mundial da Saúde aumentou o tempo recomendado para atividade física moderada, que passou a ser de 150 a 300 minutos por semana para a população adulta, quando antes da pandemia era de 75 a 150 minutos. Além dos benefícios à saúde física e mental, a prática de atividades ao ar livre, uma ação também do âmbito do lazer, foi responsável por promover momentos de socialização na pandemia, de acordo com Cristina Ortega.

“Devido ao confinamento doméstico, muitas pessoas decidiram realizar exercícios físicos em suas casas para evitar o sedentarismo. Consequentemente, tomaram consciência da importância da prática e seus benefícios para a saúde e muitas pessoas se tornaram até mais ativas”, destaca a especialista. “Assim, também se produziu um aumento de atividades ao ar livre. As pessoas saem mais para os parques e esportes como ciclismo ou corrida têm aumentado notavelmente em popularidade.” Isso levando em conta as fases da pandemia em que foi permitido o uso de espaços públicos mediante todos os cuidados sanitários necessários.

 

Novas perspectivas

Se por um lado o agravamento da pandemia incrementou ações de lazer no ambiente virtual, segundo Bramante, por outro lado, “continua faltando a essência da liberdade de ir e vir, típica das experiências de lazer”. Nesse caso, além da possibilidade de estar em espaços ao ar livre, convivendo com outras pessoas, o turismo, que faz parte do lazer, também sofreu restrições na pandemia.

“A definição internacional (de turismo) é de ‘ao menos 24 horas em outra cidade ou país’. E o turismo nos dá mais oportunidades de conhecer novas culturas, novos lugares. Ele também nos dá um tipo de liberdade porque estamos longe de casa, às vezes nos sentimos mais à vontade para fazer coisas que não fazemos em casa e, quando estamos distantes, podemos experimentar”, explicou o professor Alon Gelbam, diretor de Turismo e Hotelaria no Kinnert College on the Sea of Galilee, no documentário Ócio, Lazer e Tempo Livre (leia Alcance global), gravado quando participou, com outros representantes, da 15ª edição do Congresso Mundial de Lazer – Lazer sem Restrições, realizada pelo Sesc São Paulo em 2018.

Mesmo antes da pandemia, o turismo vinha se transformando pela demanda de roteiros de experiência e destinos com menor quantidade de turistas. Viagens associadas à busca por aprendizado, por práticas esportivas ou para experimentar a culinária e outras expressões culturais de um local, e em grupos pequenos. “As pessoas procuram por algo mais significativo, atividades e experiências culturais”, destacou Gelbam no documentário.

“Tendo a crer que o setor do turismo vai ter uma recuperação lenta, mas tende a ser bastante valorizado como uma oportunidade autêntica de conhecer outras culturas e localidades”, compartilhou Ricardo Uvinha, professor titular da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo e coordenador do Centro de Excelência em Estudos do Lazer WLCE/USP, no Sesc Ideias Reflexões: Ócio, Lazer e Tempo Livre, transmitido pelo canal do YouTube do Sesc São Paulo. E complementa: “É possível que no período pós-Covid as experiências de contato com os amigos, de visitas a parentes, de ter a oportunidade de atividades físicas e esportivas sejam ainda mais valorizadas, talvez como nunca foram” (leia mais sobre a importância do tempo dedicado ao lazer na entrevista do professor Ricardo Uvinha publicada na edição nº 269 da Revista E, de dezembro de 2018).

 

Yoga e outras práticas que antes aconteciam em parques, espaços fechados ou mesmo em praças, foram adaptadas para o ambiente virtual | Foto: Pixabay

 

Atualmente, de acordo com Cristina Ortega, a maioria das propostas que estão sendo elaboradas ou pensadas para que o ócio não se limite ao ambiente virtual acontecem no âmbito das pesquisas, “porque agora a pesquisa e a orientação de políticas são mais necessárias do que nunca”, reforça. Alternativas concretas para que o lazer volte às ruas também já estão sendo colocadas em prática em algumas cidades mundo afora.

“Como em Seattle, nos Estados Unidos, em que o governo fechou permanentemente mais de 30 quilômetros de pistas de tráfego de automóveis para criar um parque linear voltado a atividades de lazer”, exemplifica Ortega. Ou a adaptação do conceito “drive thru” pelo Museu Boijmans van Beuningen, de Roterdã, Holanda, que oferece aos visitantes a possibilidade de ver obras de arte enquanto conduzem seus automóveis. “Estamos somando cada vez mais dados para dar sentido aos complexos entornos nos quais vivemos e assim desenvolver soluções que podem ser implementadas como políticas públicas que gerem melhores resultados”, acrescenta.

E mesmo com a chegada da vacina, assinala Ricardo Uvinha, “onde se terá o comentado período de transição e onde as pessoas deverão manter muitas das regras atuais de sanitização e distanciamento, vejo uma tendência de uma busca maior pelo lazer em ambientes externos, ainda mais se os diversos equipamentos como parques, shopping centers, teatros, cinemas, shows e demais atividades culturais retomarem suas atividades”.

 

Lazer na pandemia

Dados de pesquisa realizada pelo Laboratório de Gestão das Experiências do Lazer (Lagel) coletados em maio de 2020, da qual participaram 2.278 pessoas acima dos 18 anos de idade, de todos os estados brasileiros e Distrito Federal:

Aumentou ou diminuiu a vivência de lazer antes do isolamento físico/social em comparação com o momento atual?

61% dos respondentes, diminuiu muito/diminuiu a vivência de experiências de lazer antes do isolamento físico/social com o momento atual

26% aumentou/ aumentou muito

13% permaneceu a mesma coisa

 

Quais os tipos de experiências de lazer vivenciadas?

1º lugar  experiências virtuais

2º lugar experiências intelectuais

3º lugar experiências manuais

4º lugar experiências físico-esportivas

5º lugar experiências artísticas

6º lugar experiências sociais

Quase nenhuma menção a experiências turísticas

 

Foto: Pixabay
 

 

Ontem e hoje

DA NATAÇÃO NO RIO TIETÊ À NAVEGAÇÃO NA INTERNET: O QUE MUDOU NA EXPERIÊNCIA DO ÓCIO?

Aberto ao público em 1825, o parque Jardim da Luz, um dos mais antigos da cidade de São Paulo, era um dos poucos pontos de lazer da época. Visitar o rio Tietê, estender uma toalha à beira do curso d’água, também era algo popular até 1950. Moradores que lá passavam seu tempo livre ainda acompanhavam provas de remo e natação. Os cinemas de rua faziam parte da programação, sendo um dos pioneiros o Bijou Theatre, que abriu em 1907, no cruzamento da avenida São João com o Anhangabaú. Depois desse, vieram muitos outros pelo Centro e por outras regiões da cidade. No início dos anos 1960, a região em torno da avenida São João ficou conhecida como Cinelândia pela quantidade de salas de cinema na época.

Já no final dos anos 1960, começam a ser inaugurados os shopping centers, centros comerciais com praça de alimentação, salas de cinema e teatros, em alguns casos. Espaços que antes da pandemia figuravam como um dos mais frequentados em momentos de ócio pelos paulistanos. A partir do crescimento urbano da cidade, além de parques, praças e centros culturais, outros espaços públicos começaram a ser reivindicados e ocupados como destinados ao lazer.

Em 2016 é instituído oficialmente pela prefeitura da cidade o Programa Ruas Abertas, que abre ruas e avenidas para atividades físicas e manifestações culturais aos domingos e feriados.

Divulgada em 2018, a pesquisa Viver em São Paulo: Cultura, realizada pela Rede Nossa São Paulo e Ibope Inteligência, sobre os hábitos culturais dos paulistanos, apontava que os cinemas figuraram no topo dos espaços culturais mais frequentados. Em segundo, os centros culturais, que foram seguidos por museus e teatros e, por fim, as bibliotecas.

Na pandemia, medidas de isolamento doméstico e restrição a espaços de lazer, parques e jardins públicos foram adotadas, e as tecnologias se encarregaram de prover alternativas à fruição cultural. Lives de artistas da música e do teatro, debates com pensadores, aulas online de música, atividades físicas, esportivas e meditação, visitas virtuais a museus e outras ações na internet transformaram a forma como experimentamos o tempo livre. 

 

Alcance global

PROGRAMAÇÃO ONLINE E PRESENCIAL REÚNE ATIVIDADES COM CONVIDADOS DO BRASIL E DE OUTROS PAÍSES PARA CELEBRAR O DIA MUNDIAL DO LAZER

Essencial ao ser e estar em sociedade, o lazer é um direito garantido pela Constituição Federal e pela Declaração Universal de Direitos Humanos. Por isso, as atividades reproduzidas no tempo livre – práticas associadas à leitura, viagens, culinária, artes, esportes e tantas outras – têm impacto sobre nossos ciclos sociais, nossa rotina e nossa saúde de maneira integral. “O lazer é fundamental para a sociedade, pois desempenha um papel essencial no desenvolvimento individual e comunitário, contribuindo para o bem viver, valorizando as relações sociais e assumindo, muitas vezes, lugar de expressão e engajamento na vida democrática”, afirma o diretor do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda.

Para celebrar e destacar a importância do lazer, será realizada, no dia 16 de abril, a primeira edição do Dia Mundial do Lazer, uma iniciativa da Organização Mundial do Lazer (World Leisure Organization – WLO), que, neste ano, será coordenada pelo Centro de Excelência em Estudos do Lazer da Universidade de São Paulo (WLCE-USP) em conjunto com o Laboratório de Gestão das Experiências de Lazer (Lagel) e o Sesc. “A realização do Dia Mundial do Lazer vem reforçar o lazer como um direito social e sua importância na vida cotidiana, buscando ampliar as possibilidades dessa manifestação e promovendo a reflexão sobre os acessos e barreiras ainda existentes”, complementa Miranda.

 

Registro de 2018, num parque da cidade de São Paulo, no documentário Ócio, Lazer e Tempo Livre, do cineasta Marcelo Machado, exibido pelo canal on demand do SescTV | Foto: MMTV

 

 

A partir de uma programação tanto online quanto presencial, o Dia Mundial do Lazer vai englobar atividades fundamentadas nos chamados conteúdos culturais do lazer, por meio das ações físico-esportivas, sociais, turísticas, intelectuais, artísticas, virtuais e manuais. Para isso os participantes serão encorajados a promover ações que valorizem a cultura local e atividades que possibilitem a troca de experiências, além de estimular reflexões acerca das barreiras socioeconômicas, culturais e físicas do lazer no contexto atual e em perspectivas futuras. “Assegurar o usufruto do lazer para a população pode simbolizar uma importante estratégia de enfrentamento da pandemia causada pela Covid-19, auxiliando numa necessária resiliência diante do presente momento tão adverso”, destaca o professor Ricardo Uvinha.

“Entendo que o Dia Mundial do Lazer colabora com a mensagem de que garantir o acesso ao lazer pode auxiliar na esperança por dias melhores, como estratégia de redução da ansiedade e de fatores de depressão, buscando uma melhor saúde física e mental, influenciando assim decisivamente no bem-estar e na qualidade de vida da população. O evento destaca, assim, a importância do lazer para a sociedade e na vida cotidiana, além de reforçá-lo como um direito social”, complementa o coordenador do Centro de Excelência em Estudos do Lazer WLCE/USP.

Participarão do evento organizações parceiras e convidadas do Brasil e da América Latina, assim como dos demais Centros de Excelência em Estudos do Lazer localizados no Canadá, China, Holanda, Hungria e Nova Zelândia.

Mais informações e outros conteúdos sobre o lazer podem ser encontrados no portal e nas plataformas digitais do Sesc São Paulo: www.sescsp.org.br.

 

debate

Dia Mundial do Lazer

No lançamento da programação do Dia Mundial do Lazer, dia 26 de março, o Sesc São Paulo realizou um debate online, transmitido pelo canal do YouTube do Sesc São Paulo. Dele participaram o Prof. Ricardo Uvinha – WLCE/USP (Centro de Excelência em Estudos do Lazer), o Prof. Antonio Carlos Bramante – Lagel (Laboratório de Gestão das Experiências de Lazer), o Prof. Anderson Dalbone (Departamento Nacional do Sesc) e a Profa. Cristina Ortega (Organização Mundial do Lazer - World Leisure Organization - WLO), com mediação de Maria Luiza Souza Dias. Assista ao vídeo: www.youtube.com/sescsp.

 

documentário

Ócio, Lazer e Tempo Livre

O que é o lazer e quais as principais restrições à sua prática? O documentário Ócio, Lazer e Tempo Livre traz reflexões sobre o tema a partir da fala de acadêmicos e estudiosos do Brasil e de outros países que estiveram presentes na 15ª edição do Congresso Mundial de Lazer – Lazer sem Restrições, no Sesc Pinheiros, em 2018. O filme é dirigido pelo cineasta Marcelo Machado e realizado pelo Sesc São Paulo. Assista no canal de streaming on demand do SescTV: www.sescsp.org.br/sesctv.

 

Leia aqui a íntegra das entrevistas com:

Ricardo Uvinha, professor titular da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo e Coordenador do Centro de Excelência em Estudos do Lazer WLCE/USP

Antonio Carlos Bramante, coordenador do Laboratório de Gestão das Experiências de Lazer (Lagel) da Universidade de Brasília

Cristina Ortega, chefe acadêmica e operacional da Organização Mundial do Lazer (World Leisure Organization – WLO)

 

Entrevistas

Ricardo Uvinha, professor titular da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo e coordenador do Centro de Excelência em Estudos do Lazer WLCE/USP

Os impactos da pandemia sobre o Lazer poderão (ou já estão a) gerar mudanças, inclusive, na forma como habitamos o espaço urbano? De que forma?

Desde o dia 11 de março de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde decretou oficialmente uma pandemia global causada pela Covid-19, tal situação modificou abruptamente a rotina diária de atividades humanas ao redor do mundo, especialmente nos países mais afetados. O surto da doença forçou os governos a impor políticas de distanciamento social por período prolongado de tempo, resultando no confinamento de grande parte da população ao redor do mundo, e, consequentemente, impactos sobre a saúde mental, o bem-estar e a qualidade de vida da população.

Assim, destaco que a pandemia de Covid-19 tem se mostrado um evento traumático para muitas pessoas, levando ao aumento exponencial do sentimento de medo e estresse. Reforça-se a percepção de que os brasileiros têm sofrido drasticamente o período de quarentena/lockdown, em especial pela privação de atividades de lazer fora do ambiente doméstico.

Há propostas e projeções sendo feitas para uma nova experiência do Lazer tendo em vista as contingências da pandemia? E do Turismo?

No Estado de São Paulo, em que vem se tentando conter o avanço das taxas de ocupação dos leitos de UTI e número de mortes causadas pela Covid-19, apenas os chamados serviços essenciais foram liberados, restringindo serviços como bares, restaurantes, shopping centers, eventos e demais atividades culturais. Tais atividades estão diretamente articuladas ao lazer no tempo livre da população, em que se parece não medir esforços para usufruir das mesmas, ainda que correndo sérios riscos de contaminação.

As pesquisas que temos realizado no âmbito do Centro de Excelência em Estudos do Lazer WLCE/USP reforçam que uma expressiva parcela dos brasileiros parece experimentar o que se convencionou chamar de “coronafobia”, em que políticas de lockdown e quarentena estão intimamente associadas às elevações dos níveis de ansiedade e depressão, trazendo uma vulnerabilidade da população quanto à sua saúde física e mental com forte intolerância sobre a incerteza e a percepção da doença.

A privação de atividades de lazer se insere neste contexto, e o “risco” de se aglomerar em festas, frequentar praias e conviver com amigos e parentes em espaços outdoor, mesmo com as restrições, parece fazer sentido para tais pessoas num lazer reclamado como necessário para enfrentamento da situação de privação causada pela pandemia, mas muitas vezes realizado sem qualquer responsabilidade com si próprio e com os demais membros da sociedade.

Quanto ao Turismo, é consenso que o setor vive sua maior crise desde a Segunda Guerra Mundial. O Turismo foi duramente afetado durante a pandemia. Novas variantes do vírus causaram restrições de viagem ao exterior para brasileiros, principalmente nos Estados Unidos e Europa, dificultando a retomada da atividade para agências e companhias aéreas. Mesmo o turismo doméstico ainda sofre duras perdas, mesmo que haja a situação de promoções de viagens. O setor de hospitalidade teve que fechar as portas impondo restrições diversas. Vejo que ainda temos uma significativa situação de risco e todas as medidas de prevenção e sanitização já amplamente divulgadas devem ser tomadas quando se propõe a visitar um destino, seja no Brasil ou no exterior.

Mesmo com a chegada da vacina, onde se terá o comentado período de transição e onde as pessoas deverão manter muitas das regras atuais de sanitização e distanciamento, vejo uma tendência de uma busca maior pelo lazer em ambientes externos, ainda mais se os diversos equipamentos como parques, shopping centers, teatros, cinemas, shows e demais atividades culturais retomarem suas atividades.

Que reflexões e atividades vão compor a programação do Dia Mundial do Lazer?

Eu gostaria de destacar aqui a importância das atividades associadas ao lazer em suas mais variadas possibilidades (físicas, artísticas, sociais, turísticas), desde que realizadas de maneira responsável e respeitadas as já conhecidas formas de prevenção. Assegurar o usufruto do lazer para a população pode simbolizar uma importante estratégia de enfrentamento da pandemia causada pela Covid-19, auxiliando numa necessária resiliência diante do presente momento tão adverso. 

Entendo que o Dia Mundial do Lazer colabora com a mensagem de que, garantir o acesso ao lazer, pode auxiliar na esperança por dias melhores como estratégia de redução da ansiedade e de fatores de depressão, buscando uma melhor saúde física e mental influenciando assim decisivamente no bem-estar e na qualidade de vida da população. O evento destaca assim a importância do lazer para a sociedade e na vida cotidiana, além de reforçá-lo como um direito social.

 

Antonio Carlos Bramante, Coordenador do Laboratório de Gestão das Experiências de Lazer (Lagel) da Universidade de Brasília

De que forma a sociedade brasileira está vivenciando experiências de lazer em tempos de pandemia, tendo em vista pesquisas realizadas (ou em processo) pelo Lagel?

Respondo a essa pergunta nos dias em que o Brasil tem tido os maiores números de casos e mortes por Covid-19, depois de um ano de pandemia. Da mesma forma, especialmente nestes tempos, é importante contextualizar de que Brasil estamos falando. De uma vasta maioria que, no momento, luta pela sobrevivência ou de uma minoria que pode ainda, mesmo com as restrições de distanciamento físico e social, usufruir das mais variadas experiências do lazer? Isso posto, devido aos limites dos contatos pessoais, a maioria das pesquisas até então publicadas no país foi realizada por instrumentos online, ou seja, provavelmente para aquela minoria anteriormente citada.

A coleta de dados para a pesquisa realizada pelo Laboratório de Gestão das Experiências do Lazer (Lagel) foi feita em maio do ano passado, quando passávamos por um período crítico da pandemia no país. Ela contou com a participação de 2.278 pessoas acima dos 18 anos de idade de todos os estados brasileiros e do Distrito Federal, respondendo a 52 questões. Inicialmente, para fins de análise e posterior envio para publicação, trabalhamos em três dimensões do lazer: tempo, espaço e experiência de lazer vivida, sob a perspectiva da gestão. Além desses três artigos já submetidos, também fizemos uma análise das pessoas com idade acima de 60 anos, a qual foi, igualmente, submetida para publicação. Portanto, temos ainda um volume de dados sob a atenção de dez pesquisadores do Lagel participantes desse trabalho.

Apenas para destacar alguns resultados, no período pesquisado, quase 80% afirmaram ter tido tempo para vivenciar o lazer, com objetivo de, em primeiro lugar “ocupar, distrair e/ou relaxar a mente”, seguido por “descansar o corpo” e “desenvolver-se pessoal e/ou profissionalmente”. Ao comparar à vivência de experiências de lazer antes do isolamento físico/social com o momento atual, para 61% dos respondentes, diminuiu muito/diminuiu; para 13%, permaneceu a mesma coisa e para 26%, aumentou/aumentou muito.

Quanto aos tipos de experiências de lazer vivenciadas, adotamos a taxionomia proposta por Dumazedier, corroborada e ampliada por Camargo e Schwartz, com os seguintes resultados: em primeiro lugar, as experiências virtuais, com quase 100% de adesão, seguidas pelas intelectuais, vindo em terceiro lugar as experiências manuais, com mais de 70%, e as experiências físico-esportivas em quarto lugar, com aproximadamente 60%. As experiências artísticas foram apontadas por aproximadamente 40% e as sociais por menos de 20%. Como era de esperar, devido às contingências vividas, não houve quase nenhuma menção às experiências turísticas.

Vale destacar, para fins da gestão de comunicação, as respostas à pergunta onde as informações foram buscadas para o desenvolvimento ou participação nas experiências de lazer neste período de isolamento social. As respostas foram YouTube, com quase 20%, WhatsApp, com mais de 10%, e Aplicativos em geral, com mais de 10%. Para fins de gestão do lazer, em uma área de grande sensibilidade, os meios tradicionais de comunicação tiveram um percentual reduzido de menções.

Que impactos já estão sendo notados na saúde e no bem-estar das pessoas que neste momento tiveram o lazer restrito ao ambiente doméstico e por meio de telas (televisão, celulares, computadores), seja para prática de atividade física, seja para fruição cultural, seja para socialização?

Um dos atributos essenciais para vivenciar as experiências de lazer é a percepção de liberdade em um dado tempo/espaço/atividade. Depois de um ano de restrições ditadas pela pandemia, pesquisas têm demonstrado que a saúde e o bem-estar físico e mental das pessoas têm sido bastante afetados. Observa-se um desequilíbrio nos diversos atributos relativos à qualidade de vida, como na alimentação, na prática das atividades físicas, nos comportamentos preventivos, nos relacionamentos e no controle do estresse, para utilizar o “pentáculo do bem-estar” proposto pelo professor Markus Nahas.

O lar, como um ambiente de lazer, vem sendo estudado há décadas. Camargo e Requixa, pesquisadores de realce que tiveram as suas bases iniciais no Sesc São Paulo, abordaram o tema nos anos 1980. Eu mesmo, em 1992, em artigo publicado dedicado às tendências do lazer na virada do século, já afirmava que o lar se tornaria o principal centro de entretenimento das pessoas.

Com o agravamento da pandemia, cresceu essa vertente da indústria do entretenimento online e ampliaram-se as possibilidades de as pessoas adquirirem pequenos implementos para as práticas corporais, por exemplo. Certamente houve um acréscimo significativo nas horas frente a telas, mas continua faltando, no entanto, a essência da liberdade de ir e vir, típica das experiências de lazer.

Os impactos da pandemia sobre o lazer e o tempo livre poderão (ou já estão a) gerar mudanças, inclusive, na forma como habitamos o espaço urbano?

Como afirmado na primeira pergunta, nossa pesquisa sobre o tema indicou que mais da metade dos respondentes afirmou que o espaço utilizado para as experiências de lazer dentro de casa já era utilizado para esta finalidade? Interessante notar que para 56% não houve a necessidade de fazer adaptações em suas moradias, mas o aumento de compras online relativos ao lazer tiveram expressivo aumento, como mais de 250% nos instrumentos musicais, 241% em brinquedos e 166% em produtos eletrônicos. O que se observou também foi uma mudança de foco em relação aos espaços urbanos e equipamentos de lazer, de fora para dentro do lar, muito embora os estudos de uso público das áreas verdes urbanas mereceram grande destaque nesse período.

Constatou-se que o lar ampliou seu escopo para além da moradia, assumindo importante papel como novo ambiente para o trabalho (home office), para os estudos (aulas online), assim como no lazer. Os estudos realizados pelo Lagel em relação ao espaço doméstico na pandemia mostraram que novos empreendimentos poderão incorporar uma melhor estrutura física nas residências, com mais iluminação natural e mais arejada, com uso de novas tecnologias de captação de água e de geração de energia alternativa, entre tantos outros avanços.

 

Cristina Ortega, Chefe acadêmica e operacional da Organização Mundial do Lazer (World Leisure Organization – WLO)

Quais são os impactos mais significativos da pandemia sobre o lazer?

Já é um fato que a Covid-19 tenha alterado drasticamente nossa vida diária e, consequentemente, nossos planos. A atual crise sanitária tem passado por transformações em grande parte imprevistas. Algumas dessas impactam notavelmente o campo do ócio como setor que contribui para o desenvolvimento econômico e social. Este novo período nos levou a repensar a forma com que trabalhamos, como nos comunicamos e usamos nosso tempo livre. Não há dúvidas de que um dos maiores impactos foi no plano emocional, uma vez que se nota o aumento da ansiedade, do medo e da insegurança. O ócio junto ao apoio psicológico, grandes demandas da atualidade, está ajudando as pessoas a sair desses estados de desânimo.

Um dos impactos mais significativos foi o aumento do exercício físico, tanto para se manter em forma como para socializar. Por um lado, devido ao confinamento doméstico, muitas pessoas decidiram praticar exercícios físicos em suas casas a fim de evitar o sedentarismo. Consequentemente, começaram a tomar consciência da importância dessa prática e de seus benefícios à saúde. Dessa forma, muitas pessoas se tornaram mais ativas. Dessa forma, se produziu um aumento de atividades ao ar livre. As pessoas frequentam mais os parques ou as montanhas, e esportes como ciclismo e corrida aumentaram consideravelmente em popularidade até o ponto de alcançar uma mais e mais gente para a prática dessas atividades. Por outro lado, a atividade física já não serve apenas para ficar em forma, mas também, por causa da pandemia, se transformou num evento social. Ela é realizada não apenas por seus benefícios físicos e psicológicos como também para socialização.

Outro impacto significativo tem sido a redescoberta de atividades, sobretudo recreativas praticadas em espaços fechados. Jogos de mesa tradicionais, como quebra-cabeças, tiveram um aumento de venda. Além disso, em relação a essa redescoberta, muita gente teve a necessidade de seguir aprendendo, buscando cultura, como podemos observar com o expressivo aumento de venda de livros ou o interesse por aprender novas habilidades, como tocar um instrumento musical.

Sem dúvida um dos maiores impactos foi o aumento do uso das tecnologias. Vimos um crescimento quanto ao uso das telas: filmes, séries, games… Acontecimento que, em última instância, poderia levar ao ócio sedentário. Este fato também trouxe à luz uma lacuna da tecnologia e, consequentemente, uma maior desigualdade. O aumento do uso de meios digitais ressaltou a desigualdade, que se acentuou em todos os países, pela falta de acesso à tecnologia entre a população mais vulnerável.

Por último, outro grande impacto é constituído pelas consequências econômicas, pois existe um grande risco de perda de milhões de postos de trabalho em nível mundial. Não só de profissionais da área do lazer, mas também de indústrias e serviços relacionados, o que inclui o turismo, infra estruturas ou meios de comunicação, entre outros, pois, ainda que muitos governos estejam implementando medidas de apoio financeiro, os recursos seguem escassos.

Que propostas estão sendo sugeridas ou pensadas para que o lazer não se limite ao ambiente virtual?

Este novo momento nos mostrou que, apesar de todo conhecimento científico, não conseguimos ainda compreender o fenômeno do lazer em todo seu potencial, assim como sua capacidade para adaptações exitosas ou não, principalmente porque os acontecimentos se deram de maneira acelerada. Consequentemente, muitas questões ainda estão sendo analisadas. Por isso, a maioria das propostas que estão sendo elaboradas e pensadas para que o lazer não se limite ao ambiente virtual estão acontecendo no âmbito da pesquisa. Agora mesmo, essas investigações e orientações de políticas são mais necessárias que nunca.

Sendo assim, ainda que existam propostas concretas fora do cenário digital (a cidade de Seattle fechou permanentemente mais de 30 quilômetros de avenidas para o tráfego de carros e assim criou um parque linear voltado a atividade de lazer).  “Conciertos burbuja” são oferecidos pelo grupo Flaming Lips em Oklahoma. “Drive-thru” idealizado pelo Museu Boijmans van Beuningen de Roterdã e o centro de congressos e eventos Ahoy também oferece a possibilidade de se ver obras (de arte) enquanto os visitantes dirigem seus próprios automóveis. Estão sendo compilando mais dados para dar sentido ao cenário complexo em que estamos vivendo a fim de propor soluções e implementar políticas que gerem resultados, já que essa digitalização está se manifestando na criação e na maneira como experimentamos o lazer, o desenvolvimento de audiências, o marketing, a exibição e a distribuição de produtos do ócio como ficou claro durante a pandemia com plataformas como Google Arts and Culture ou mesmo a celebração de eventos como este congresso World Leisure Organization, que ocorrerá de maneira híbrida. 

 

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