Postado em
Ficção Inédita
1958
Deonísio da Silva
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Crédito:
Marcos Garuti
|
A luta foi no pátio
do grupo escolar. Talvez eu o vencesse, mas Carlinhos, meu colega de classe,
era muito esperto e começou a bater em mim com um fio elétrico,
deixando minhas pernas cheias de manchas vermelhas. Doeu muito. Mas doeu ainda
mais ser vaiado por seus amigos. Naquele dia todos os meus poucos amigos haviam
faltado à aula.
Carlinhos jogava no time que dali a alguns dias enfrentaria o nosso e não
perderia por esperar. Eu era meia-direita, meu modelo era Didi. Sabia que o
príncipe etíope era uma elegância só. E procurava
imitá-lo em campo. Mas eu só sabia dele pelo rádio e pelas
revistas O cruzeiro, Manchete e Esporte. Jamais eu vira uma única jogada
de Didi, a não ser em fotos imobilizadas, nas páginas seguintes
às das coxas fosforescentes das misses.
Um dia o barbeiro limpou a navalha numa daquelas folhas e lambuzou de creme
e barba as pernas de todas as candidatas a Miss Brasil. Eu esperava para cortar
o cabelo, corri para salvar o que sobrou do estrago e disse: "Ainda bem
que o senhor não lambuzou o Didi e nem o Garrincha, lambuzou só
as mulheres!".
Adiante com esta história que dentro de mim sussurra todos os dias. Meninas
e meninos à beira do gramado para a sensacional peleja, tinha chegado
o dia da minha vingança. O nosso goleiro era Semenrique, enorme e gordo
e, coisa surpreendente, com uma agilidade extraordinária. Seu modelo
era Gilmar. "Agarra, Gilmaaaaaaaar!", ele gritava quando pegava qualquer
bola, por mais fraca que fosse.
Naquele dia, porém, não sei quem foi o espírito-de-porco
que amarrou dois pés de capim à direita de onde ficava o goleiro.
A jogada começou assim: tomei a bola de Arturzinho e passei a Moacir.
Este começou a rir do tombo que Cacildo tomou quando correu em sua direção.
Enquanto ele ria, Carlinhos tomou a bola dele e disparou no rumo do gol. O campo
era pequeno, tudo foi muito rápido. O chute saiu fraco, mas Semenrique,
o nosso goleiro, tropeçou no capim amarrado e caiu com a cara na grama,
de uma forma ridícula. E ainda por cima começou a chorar.
A juíza era uma das professoras, a dona Estela, a primeira a usar calça
comprida naquela cidade. Apitava as partidas vestindo eslaque. Não procurem
no dicionário. Era slack, que em inglês significa "frouxo".
Designava as primeiras calças compridas que as mulheres brasileiras mais
moderninhas começaram a usar desde que terminara a Segunda Guerra Mundial.
Corremos para dona Estela, o nosso Armando Marques de saias. Linda aquela mestra!
Eu tinha paixão pelas professoras, mas a minha preferida era outra, que
tinha um cheirinho bom e me alfabetizara. Seria fiel a ela a vida inteira porque
os prazeres que a escrita me proporcionou, sem exagero posso dizer que poucas
mulheres me deram ao longo da vida. Ou melhor: se não fosse eu saber
ler, não teria aprendido a admirar as minhas amadas. Quem ama de verdade,
antes mira e admira, como se sabe. Antes e depois. E se não tivesse misturado
leituras e prazeres, não teria aprendido a amar nem aquelas meninas de
minha adolescência profunda, nem todas as outras que vieram depois, às
vezes sem sexo, só com toques e carinhos. Uma delas ficou minha namorada
para sempre. Para sempre, eu digo, é até agora. Porque também
na vida, como no futebol, uma jogada de um segundo pode mudar uma partida inteira.
Voltemos a dona Estela. Passou a mão em meu rosto suado, esfregou meus
cabelos e disse: "Aprenda uma coisa, menino, você que não
é tão burro: futebol tem regras e o juiz não pode apitar
falta de capim amarrado, entendeu? O que não é proibido pode fazer!
E não é proibido amarrar o capim que o goleiro pisa!".
Devia ser por razões análogas que ela namorava o farmacêutico,
um homem casado. No regulamento do grupo escolar não havia nenhuma regra
que proibisse dona Estela de namorar farmacêuticos ou homens casados,
nem que os dois ofícios fossem combinados.
E para o segundo gol, qual foi a desculpa de Semenrique? Um frango daqueles,
a bola veio rolando, rolando, rolando e passou entre as pernas gordas de nosso
goleiro. Ele disse: "Eu ia pegar ela, mas ni que eu vi, puft, ela passou
redondinha, vai ser difícil virar esse jogo!".
Virar? Tomamos mais dois logo no início do segundo tempo. Fiquei distraído
com aquele carinho de dona Estela e passei a jogar perto do juiz, se é
que me entendem, porque a blusa saiu para fora do eslaque e eu passei o tempo
todo de olho na barriguinha e nas costas de dona Estela. Jamais pensara que
professora também tinha umbigo! No segundo tempo fiquei mais atento ainda
a outros movimentos: o dos seios de dona Estela, balouçando entre os
meninos.
Mais tarde vim a compreender todos os encantos daquela professora, sobretudo
os ocultos, porque o farmacêutico separou-se da mulher, matou um homem
que mexeu com sua amada, saiu dali e foi viver no costão, plantando banana,
milho, feijão, uva. E dona Estela amarrava um lenço na cabeça
e sem perder a elegância ia para a roça.
Tiveram dois filhos. Nos fins de semana, os filhos do outro casamento do farmacêutico
iam visitá-los, a criançada brincava feliz que nossa! O único
que os amaldiçoava era o padre, mas este amaldiçoava todo mundo
que não concordasse com ele. No começo, tinha grande autoridade,
mas depois que o povo descobriu que se encontrava às escondidas com a
mulher do açougueiro atrás do altar, pediram para que o bispo
o transferisse e mandasse um padre velho, porque padre novo dava muito problema.
"Que problema?", ousou perguntar um dia uma senhora desavisada. "Os
problemas da carne", respondera uma senhora do apostolado da oração.
Na época, muitos de nós pensamos em roubo de peso no açougue,
porque o açougueiro era muito amigo do padre e dava carne de graça
para ele todos os dias. Sempre o melhor pedaço. Também era o melhor
pedaço que sua esposa oferecia ao padre nas tardes vazias daquela cidade
tão pequena e, por isso mesmo, tão cheia de fofocas.
Dona Estela chegou-se perto de mim, não precisou se esforçar muito,
eu estivera toda a partida ali por perto dela, e me disse com aquela sua voz
de cetim, seus grandes olhos negros: "E tu? Não vais fazer o teu
gol?". "Tenho medo do Carlinhos", eu disse, "ele é
muito bruto e semana passada me deu uma surra com um fio elétrico".
"Mas aqui no campo é diferente, se ele te bater ou derrubar, é
fau." Naquele tempo não se dizia falta, se dizia fau. O inglês
ainda dominava o futebol. E mesmo Semenrique, quando escolhia a posição,
não dizia goleiro; berrava: "O quíper sou eu!".
Recebi a bola de Moacir. Não pude dominar direito, então toquei
ao lado de um zagueiro deles, corri pelo outro lado, tomei a bola adiante, esse
drible era chamado de meia-lua, o zagueiro escorregou, todos riram muito e gritaram,
segui em disparada em direção ao gol deles, eu queria fazer o
meu de qualquer jeito, o Moacir apareceu de repente ao meu lado, pedindo a bola,
livre dentro da grande área já, mas eu não passei a bola
para ele e - vejam só! - quem aparece na minha frente como o último
menino antes do goleiro? Justamente o Carlinhos! Não sei quanto duraram
aqueles pequenos momentos que eu não sabia ainda medir na vida, frações
de segundo, mas eu era péssimo em frações na aula, aqueles
números em cima e embaixo de travessões me confundiam, não
eram como as letras, que a gente só precisava cuidar bem delas na caligrafia,
num caderno de pautas que trazia dois carreirinhos, um para cada tipo de letra.
Só sei que eu fiz que ia e ouvi o Carlinhos ameaçar "tu faz
que vai, mas não vai e eu te pego pelo outro lado". Mas eu fui pelo
mesmo lado porque num daqueles minúsculos e exatos momentos me lembrei
do Garrincha, que ia para aonde ameaçava ir, pela direita, por onde sempre
saía, fiz o mesmo e chutei com o lado de fora do pé esquerdo,
mesmo não sendo canhoto, porque não dava tempo de trocar. Foi
um chute todo desjeitoso, eu me entortei mais do que os marcadores do Garrincha.
A bola saiu mascada, mas passou pelo Carlinhos, que ainda teve tempo de se virar,
passou pelo goleiro deles e entrou enviesada e torta lá no cantinho.
Foi 4 x 1 para eles, mas o meu eu fiz. Corri para dona Estela e nunca mais me
esqueci daquele abraço.
A psicóloga disse que nasceu aí minha paixão por mulheres
mais velhas do que eu. Não posso vê-las, sinto um aperto no coração,
vontade de celebrar alguma coisa. Na última vez que fiz isso na rua com
uma desconhecida, eu disse: "Posso abraçar a senhora? É sem
maldade!". "Mas aqui?", ela disse, "aqui no meio da rua?".
"Aonde a senhora quiser", eu disse. Ela, me olhando de soslaio, falou:
"Você disse que era sem maldade!". "Mas é sem maldade",
eu disse, "pode ser ali naquele cantinho, perto do Banco do Brasil, em
frente ao correio."
Entardecia. Agarrei aquela mulher de blusa branca e saia preta, de cabelos molhados,
ela também me abraçou e disse: "Eu não entendo mais
os homens". Eu disse: "Eu também, eu não entendo mais
os homens, nem o mundo, como ele é diferente do que eu imaginava em minha
infância!". "Sua infância?", a mulher perguntou.
"Sim", eu disse, "sim, sim, sim", eu repeti bem agarradinho,
"sim, dona Estela, eu jamais esqueci a senhora!"
Por que fui dizer isso? Estraguei tudo, como homem é bobo, mulher gosta
de segredo, é por isso que todas escondem a idade, para terem pelo menos
um segredo, e eu só confio em mulher que esconde a idade porque é
capaz de guardar uma confidência. Ela me empurrou, soltou-se daquele abraço,
porque abraçado a gente só vê as costas e a bunda da pessoa,
e ela queria me olhar nos olhos, e me disse com seus dois grandes olhos negros
molhados daquela luz eterna que a alumiaria a vida inteira: "É você?".
Eu falei: "Sou eu, a vida continua de 4 x 1 para eles, mas o meu gol eu
fiz, a minha parte eu venho fazendo sempre que posso! Não me ache arrogante
ou orgulhoso, dona Estela, pelo amor de Deus, eu venho fazendo a minha parte
porque não há, jamais houve, alguém que fizesse ou a faça
por mim, sou eu mesmo quem tem de fazer, sempre! É só por isso
que eu falo assim, a senhora compreende?". "Você era um menino
que eu sempre compreendi, mas você era difícil e complexo, por
isso eu sempre desejei que você contasse com alguém a seu lado
para cuidar de você, tomar certas precauções, mas os teimosos,
depois dos tímidos, são as pessoas mais difíceis de serem
ajudadas."
Dona Estela saiu caminhando pela calçada, depois que me deu seu telefone.
Os mesmos saltos, o mesmo taque-taque nas pedras. Jamais tive oportunidade de
dizer a Garrincha, a Didi e a Vavá que eles me ajudaram a ser escritor,
a ser professor, a estudar, a lutar, a virar partidas, ou ao menos a fazer o
nosso!
Mas a memória que em mim brota todos os dias às vezes mistura
as datas. 1958 repetiu-se, com variações, em 1962. Foi quando
Amarildo, um menino ainda, teve a responsabilidade de substituir ninguém
menos que Pelé. Substituiu e fez gols decisivos. Demos um baile nos campos
do Chile, repetindo o glorioso feito da Suécia. Depois de 1966, veio
1970, no México, e foi como repetir uma sobremesa com algum atraso. Devem
estar fazendo Comissões Parlamentares de Inquérito até
hoje na Suécia, na Tchecoslováquia e na Itália para levantar
os verdadeiros culpados daqueles três países que entregaram o jogo
para a gente. 5 x 2 na partida final na Suécia, contra os donos da casa.
3 x 1 em cima da Tchecoslováquia. 4 x 1 sobre os italianos em 1970, no
México. Nos Estados Unidos, quando ficamos tetracampeões, não
teve a mesma mágica porque já andávamos muito exigentes
num tempo em que não podíamos exigir tanto, e também porque
empatamos com a Itália, decidindo o título nos pênaltis.
E sabem o que dona Estela me disse a última vez que nos encontramos?
Que Carlinhos é cartola! "Ele era boiola", eu disse, "ele
e o Semenrique, todos sabiam". "O Semenrique é cabeleireiro
numa cidade aqui pertinho, eu já arrumei meu cabelo lá."
"Ele deve ser um grande cabeleireiro", eu disse, "se bem que
com a senhora é fácil deixar seu cabelo bonito, porque a pessoa
inteira é." "Pára com isso", ela me disse, "você
disse que era somente um abraço." "Agarra, Gilmaaaaaaar!",
eu disse, mas dona Estela ponderou: "Cuidado, o outro ficou boneca".
"Não ficou quem sempre foi", eu disse.
E tudo isso escrevo para dizer que eu nasci em 1958. Dez anos depois de ter
vindo ao mundo.
Deonísio
da Silva é autor,
entre outros livros, de Orelhas de aluguel (Mandarim)