Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Literatura

Um Brasil que resiste

O escritor paraibano Ariano Suassuna fala da modernidade, de suas visões sobre o país e da literatura brasileira

No Recife, dizem que sou radical, e parece que sou mesmo. Mas, veja bem, sou radical porque as coisas estão se desmanchando. Radicalizam muito para o lado de cá, então eu radicalizo para o lado de lá, para ver se chegamos pelo menos num meio-termo razoável, não está certo?
Uma das coisas que andam me preocupando neste princípio de século 21 é que estão colocando o homem a serviço da técnica, e não o contrário. A tecnologia é muito boa, desde que posta a serviço do homem. Reajo contra isso, e reajo de maneira dura.
Certa vez, um desses "amigos da humanidade" foi me aperrear. Muitas pessoas vão à minha casa para tentar me "converter". Ele perguntou se eu ainda escrevia livros. Eu disse que sim. E ele: "Rapaz, isso está ultrapassado. Hoje é o computador. Se não for computador, não tem mais jeito". Eu não posso, só gosto de ler deitado. Vou ficar embolando na cama com o computador? Não dá. Para mim tem de ser livro. Com o computador não dá. Um bicho frio, antipático. Foi então que peguei fama de inimigo do computador. Ele que é meu inimigo, só faço retribuir.
Agora há um recurso no computador que quando acha que alguma coisa no texto está errada, recusa e sugere. Eu vou lá aceitar sugestão de computador? Uma amiga foi escrever meu nome nele. Ela digitou "Ariano" e o computador aceitou. Quando foi colocar "Villar", ele recusou e sugeriu "vilão". Aí ela foi colocar "Suassuna", ele recusou e, não sei se por causa do número de esses, sugeriu "assassino". Meu nome no computador é Ariano Vilão Assassino. E dizem que eu sou inimigo dele...
E sabe do que mais? Eu vou reagir. Estou escrevendo um romance em um exemplar à mão e, ainda mais: estou ilustrando. Quando terminar, se não tiver jeito, leio para minha mulher, ela ouve e pronto. Agora, se o computador quiser aumentar o número de pessoas que o lerão, aí tudo bem.
Desde os 12 anos tento ser escritor. Meus irmãos mais velhos brincavam muito comigo. Diziam que quando eu não sabia o que fazer com um personagem, eu o matava. Eu era um assassino horroroso. E o pior é que fiquei adulto e continuei. Na minha peça mais conhecida, e considerada a mais engraçada (O auto da compadecida), morre todo mundo. Só quem escapa é Xicó. Esse eu não tive coragem de matar porque tenho uma simpatia danada por mentirosos. Há duas raças de gente com as quais simpatizo: mentiroso e doido, porque eles são primos legítimos dos escritores. O que é um mentiroso? É um camarada que não se conforma com o universo comum e inventa outro. Ora, isso é um escritor. Eu também sou assim. Na minha vida não acontece nada, se eu não mentir o que é que eu vou contar?

Cores do país
Briguei muito com os arquitetos nos anos 1960 e 1970. Certa vez, fiz um artigo em que defendia que a arquitetura brasileira contemporânea nem era arquitetura, nem era contemporânea, pois estava copiando a arquitetura americana e a européia de vinte anos antes. Além do mais, produz uns lugares incômodos para a gente morar. É desumano. Os arquitetos desenhavam uma casa e o camarada que se virasse para morar lá dentro.
Outra coisa que me incomoda é que a arquitetura não tem cor. A primeira vez que fui à Brasília, a impressão que tive foi de que deram um susto naquela cidade. Ela empalideceu. E nunca mais se recuperou, não é? Na arquitetura barroca dos séculos 17 e 18 havia uma beleza de cor, com os azulejos, as cerâmicas e as esculturas em pedra - uma riqueza. Agora são esses caixões - as casas parecem postos de gasolina. Quer coisa mais desumana no mundo do que um posto de gasolina? Principalmente se for para alguém morar.
Minha querida amiga Ana Mariane tem um trabalho que, na minha opinião, é importantíssimo. Ela fez uma documentação das fachadas das casas populares brasileiras. Isso me ajudou muito. Ana mostrou o colorido da arquitetura popular, mostrou como o povo brasileiro tem a coragem da cor.
Ela fotografou as casas populares e me incentivou a continuar procurando uma arte que expresse o nosso país e o nosso povo. Era essa a minha preocupação quando comecei a escrever. Eu não queria copiar o teatro alemão, nem o americano, nem o francês. Eu queria fazer um teatro que expressasse meu país e meu povo. Queria fazer uma poesia ligada à poesia que o meu povo faz, um romance ligado a esse teatro e a essa poesia. Queria tentar expressar o povo brasileiro, que é o meu. Povo pelo qual tenho um entusiasmo muito grande. E isso não é fingimento. Dizem que sou arcaico, ultrapassado, que isso é nacionalismo estreito. Pois se é, vou em frente. Não farei concessões somente porque, se eu mantiver minha posição com sinceridade, meus atos e minhas palavras serão considerados ultrapassados.

Arte indelével
Hoje em dia, há uma visão nos meios de comunicação que considera velho o fato com uma semana. Mas se a pessoa fizer uma boa obra, aí fica. Pode até não ser compreendida em sua dimensão na época, mas se ela for boa será contemporânea eterna de todas as gerações. Ela só é ultrapassada se for ruim. Quando Cervantes escreveu Dom Quixote no século 17, era um romance de vanguarda. No século 18 ainda era vanguarda, no 19, 20 e 21 também. E continuará sendo enquanto existir gente no mundo.
Faço uma distinção entre sucesso e êxito. Sucesso é essa coisa fácil, que marca as obras que envelhecem de um dia para o outro. Qualquer astro da televisão tem mais sucesso que Euclides da Cunha, mas o livro dele tem mais êxito que todos eles juntos. Enquanto Os
sertões existir, o Brasil pode ser traído, vilipendiado, invadido, mas saberemos o que é o Brasil verdadeiro e profundo. Está ali no livro, e esse não passa, pois ele conseguiu penetrar nas coisas mais importantes do nosso povo. Euclides cometeu erros, mas até os erros dele são grandes e generosos. Quando ele deixava falar a grande figura de poeta que tinha dentro de si, acertava. Errava quando se deixava impressionar pela falsa ciência social européia.
É natural que o autor tenha cometido erros que ainda hoje cometemos. Passamos por uma lavagem cerebral e nos formamos até com falta de auto-estima. Tem muito brasileiro que fica meio envergonhado de ser brasileiro, em vez de ter orgulho desse povo maravilhoso, misturado, que resultará numa coisa linda nos séculos 21, 22... Já é bonito e será mais ainda, se Deus quiser. Se Deus quiser e as elites política e econômica deixarem.
Estou perfeitamente consciente da distância entre meus sonhos, e o de todos nós, e a realidade. Sou um escritor que vê o mundo através de emblemas. Acho que o dever de todos nós, escritores brasileiros, é colocar, mesmo que a realidade seja dura e cruenta, um sonho mais belo e alto que possa mover o povo, porque se perdemos até a esperança, não há mais caminho para nós.

Ariano Suassuna
participou da palestra Cultura Brasileira, em abril,
no Teatro Sesc Anchieta