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Entrevista
Maria Bonomi

A gravadora mais revolucionária da arte brasileira fala de influências em sua obra, de museus e da convivência com Clarice Lispector

A gravadora Maria Bonomi, hoje uma das mais respeitadas artistas plásticas do país, é conhecida por seu empenho na defesa de uma produção artística de qualidade. Nesta entrevista exclusiva à Revista E, Bonomi, cujas obras podem ser encontradas em museus brasileiros e estrangeiros, fala das diferenças entre a gravura e a pintura, do momento vivido pelos museus nacionais e de como a escritora Clarice Lispector influenciou toda a sua obra. A seguir os principais trechos da entrevista:

O que você está fazendo agora?
Eu sou meio perdigueira. Sempre fui atrás do excesso e do extremo das coisas que eu pratico. Quero saber onde fica a ponta e ir para lá. No caso de gravura, nos últimos quinze anos estou tentando correr na frente, foi quando eu comecei a trabalhar com digigrafia na web com um artista plástico amigo meu, que já faleceu, o Emerson Luiz. De repente, essa gravura, cujo sulco passou a ter tanta importância, eu fui levar para as paredes. O vazio do sulco passou a ser o volume quando eu o preenchia com outros materiais. Agora já com as matrizes há algo de interessante. A Clarice Lispector foi a primeira colecionadora de matrizes, isso está na minha tese de doutorado. Esse fato me fez olhar a matriz. Eu passei também a viajar muito para grandes exposições, principalmente no Leste Europeu, porque o Leste tem um conhecimento gráfico mil vezes acima do da França ou dos EUA...

Quais lugares do Leste?
Praga, na República Tcheca; Polônia etc. Todo o Leste. Eles têm todo um avanço... talvez tenha sido a única forma de arte - a linguagem gravura - que não se envolveu com temáticas políticas, mas fez uma linguagem gráfica avançadíssima, além do panfletário, de uma força visual enorme. E de repente eu percebi todos esses caminhos. O painel, que é uma gravura. Se você for ver aquele painel mais comum, ele é totalmente gráfico. Depois vem a história da gravura eletrônica na qual se começa toda uma questão, e foi com Emerson Luiz que eu desenvolvi isso. E nada disso nunca deixa de ser gravura...

Como surge a questão da gravura para você? O suporte gravura surge em qual momento da sua vida?
Foi o primeiro momento. Eu pegava um papel, passava gesso, passava tinta preta e rasgava com uma ponta. Assim eram minhas primeiras gravuras. Eu sempre pesquisei essa coisa do scratch, da raspagem, da incisão... E o que acontece dentro de uma incisão. E de certa maneira a estampa vinha pela cor, vinha por outros fenômenos, essa coisa da incisão da luz... Eu nunca faço uma gravura colorida, é sempre em branco e preto.

Quais as possibilidades que você viu na gravura e não na pintura?
É totalmente outro universo. Existe uma postura gráfica. Na pintura você soma e na gravura você extrai. Você tira a matéria e lida com todo o conceito de positivo e negativo. É como se você fizesse um livro tirando as palavras que estão sobrando... Você vai tirando e fica o livro, que é o princípio da escultura de Michelangelo. Um pedaço de mármore que ele vai retirando...É o princípio de não pôr, mas retirar matéria. O lado esquerdo vai para o lado direito e vice-versa. Então, há a visão espelho, que é também uma postura. Toda a essência da gravura, toda a intimidade, a linguagem, todo o ideário gráfico é anterior à execução. Você pensa graficamente. Existe um pensamento gráfico que não é pictórico, que é lindo e maravilhoso, mas é sempre uma coisa em cima de outra coisa e não dentro. Você abole bastante da surpresa na pintura, é matéria em cima de matéria. E a gravura é idéia em cima de espírito.

Críticos já falaram sobre alguns pintores dizendo que alguns deles não são pintores e que nunca deixaram de ser artistas gráficos. Quase como se fosse uma coisa pejorativa. O que você acha desse julgamento?
Vale o contrário para alguns artistas. O Picasso artista gráfico é superior ao Picasso pintor. O Tolousse Lautrec artista gráfico é completo. Acho que pessoas que dizem isso têm um limite consumista, elas vêem a pintura como sendo uma melhor maneira de compreender o mundo, mais fácil, mais direto e mais decorativo. Não sei... há certos livros que não são lidos...

Além do caráter utilitário, não?
Também... A pintura é muito mais utilitária. Embora a gravura tenha sido muito servil. Como não existia fotografia, a gravura, por muitos anos, a substituiu. E foi justamente o momento em que a gravura decaiu. Ela entrou num esquema de produção. Nós temos no Brasil artistas que fazem gravura para atingir o mercado, ou seja, eles fazem quadros muito caros e têm uma segunda atividade que é a gravura, feita de qualquer jeito, que eles assinam e atingem um público maior. O Brasil tem muita gravura e boa. De Norte a Sul. Tem tradição, tem prêmio, tem percurso, tem gente lá fora gravando etc. O mesmo não se dá em pintura. A pintura brasileira é promovida com respiração boca a boca, com grande interesse de galerias, tirando salvas e honrosas exceções. As galerias têm de ter aquele acervo e têm de vender, é claro que você não teria um retorno com gravura tão grande quanto com pintura.

E a pintura oferece artistas da moda também...
Exato. Vamos dizer que a pintura sempre entrou com um caráter consumista e mercadológico. A pintura serve a causas, a gravura não. A gravura serve a ela mesma.
Você disse que o Brasil tem uma tradição de gravura. Qual a origem dessa tradição?
Nós temos a gravura importada, que veio a bordo dos navios, de gravadores que vieram junto com reprodutores e ilustrados, e que se perdeu porque era proibido fazer um trabalho de gravura... E fora isso, nós temos o cordel...

Pode-se dizer que um dos marcos iniciais da gravura no Brasil esteja no cordel?
Está no cordel. E o cordel é permanente. Ele nasce popular, ele nasce para ilustrar os fatos... Você chega numa feira e está, na verdade, comprando informação. Essa tradição popular sempre esteve presente e não pára. Nós não estamos muito a vontade com o que fazem com a gravura lá fora. Nós fazemos a nossa. E vamos lá fora e ganhamos prêmios.
Você acha que a gente poderia estar fazendo mais bonito com a gravura brasileira, mas por conta dessa questão de mercado as pessoas continuam insistindo na pintura?
Poderiam estar com algo muito mais autêntico e legítimo. Tem muita gente que largou a gravura para fazer pintura porque com a pintura o artista conseguiu se veicular melhor. É como tocar música de câmara... Não tem espaço. Eu vendo muito a estudantes; vendo muito para pessoas que estão começando coleções, é engraçado isso.

Como você foi parar no painel?
Foi a impressão da matriz. Eu passei a imprimir a matriz em algo que não fosse papel. Eu primeiro imprimi em poliéster... Veja bem, a matriz é uma coisa muito importante, só que ela se perde, você joga fora. Então eu me preocupei em como fazer para, além da estampa, reproduzir a matriz. Por que ela teria de ser única em vez de ser uma porção? Foi quando eu fiz as famosas Solombras, sempre partindo do núcleo gravura. Eu nunca deixei de fazer gravura, foi ela que gerou essas coisas, que eu chamo de Perene Mutante. Recentemente, voltei a Praga convidada para um simpósio e apresentei um trabalho chamado a Imaterialidade da Gravura. A gravura deixa de ser matéria para ser postura. Aí toca todo o projeto que eu fiz com o Emerson Luiz e que apresentei no Senac. A gente começou a lidar com uma visualidade que não se capta. Ela é simplesmente imaterial, mas ela existe e é gráfica. A gravura vem do cordel e agora está na web e está muito à vontade. Foi esse o trabalho desenvolvido recentemente com esse artista plástico, que deixou uma grande ausência... Fizemos tantas coisas juntos.

Como foi essa história da Clarice Lispector dizer para você usar a matriz?
Ela me pediu uma matriz. Essas coisas eu cito na tese. A uma certa altura, estávamos em Washington, na União Panamericana e eu precisava de um vestido para ir a um jantar na Casa Branca. Isso foi em 1959. O pessoal do Consulado me disse que a mulher de um diplomata poderia me emprestar um. Eu não sabia quem era a tal esposa do diplomata, sabia que se chamava Clarice Gurgel Valente. Ela me emprestou o vestido, eu fui ao jantar, no dia seguinte fui devolver o vestido e ela me convidou para tomarmos um café. Ela me contou um monte de coisa, mostrou algumas coisas que ela escrevia, uma loucura total. E a Clarice é desse momento. Já em 71, eu fiz uma exposição no Rio e a Clarice, que já era minha amiga, fez uma crônica linda sobre a exposição. Eu ofereci uma gravura para ela, que me disse que preferia uma matriz. Aí a ficha caiu. Ela me disse: 'Olha aqui o que tem na matriz e não tem na gravura'. Tem um texto dela sobre isso, muito bonito. Para você ter uma noção, não foi um crítico de arte, não foi um colega, foi a Clarice. É bom que a gente esteja atento, e o gravador é essa pessoa. O gravador não tem certeza. Pelo menos eu não tenho.

Quando "caiu a ficha" para você, como ficou a sua relação com a gravura?
Mudou. Veja como o escritor e outras pessoas entram na vida do artista. Não exatamente o crítico que está procurando alguma coisa, ou o colega ou o professor. Eu simplesmente comecei a olhar essa matriz e pensar na parte que antes eu jogava fora. Como eu poderia trabalhar com ela? Como reproduzi-la? Foi quando eu fui para os painéis. Depois disso, havia as pessoas passando na frente dos painéis, aí veio o vídeo... Depois eu fui para a Internet. Eu estou nesse caminho. Agora eu acho que gravura é imaterial. Mas o produto permanece.

O que te divide mais em termos de formas? São impressões, sensações... ou a pura naturalidade?
Ah, não. É muita emoção. É quase um jornalismo, as coisas que estão acontecendo. A série política, por exemplo, tem uma chamada Balada do Terror, que é uma gravura que descrevia um certo tipo de tortura a que foi submetida uma amiga minha. Então, é quase representativo, é quase uma metáfora visual. Uma forte emoção, um forte impacto, um devaneio, a minha temática é muito autobiográfica, mas não no sentido do que acontece comigo, mas do que acontece em torno, em volta de mim, o que vejo, sinto, o que está insuportável naquele momento, o que é aquele momento, para todos e para mim. Eu brinco muito com esse sentido do que é para todos.

E em que momento aparece a escultura?
Eu não faço escultura, eu faço altos e baixos-relevos. E os coloco em superfícies que se movem, ou não, e onde há um vazio, e esse vazio passa a ser a terceira dimensão. Por exemplo, aquela obra que tem no Arquivo do Estado que se move, que gira com o vento, eu vejo vento e fico contente porque sei que a aquilo está se movendo. Tem a ver com o lúdico também, que eu acho muito importante.

Como está a arte brasileira hoje na sua opinião?
A arte brasileira é muito boa, tem muita coisa interessante, principalmente na área de instalações, acho algumas da maior importância. E há algumas coisas oficiais, que são sendo promovidas porque interessam a certos grupos de poder, os próprios museus etc. Você não vai saber como era a arte brasileira atual hoje, você vai saber daqui a trinta anos. Eu não estou falando de gravuras e sim de arte brasileira. Não está havendo exposições da melhor arte brasileira, mas sim exposições importantes, mais criadas e forçadas... aqui e fora. Porque se você tem que alugar um museu lá fora e pagar não sei quantos milhões de dólares para mostrar que nós tivemos o barroco, acho que isso indica que está havendo uma falha com a nossa comunicação, com a nossa museulogia, e essa não é a maneira de se mostrar do Brasil.

Você acredita que da mesma forma que há um movimento político e econômico para abafar a gravura há um movimento político de reescritura desses nomes da arte brasileira?
Eu acho que existem pequenos grupos que abrangem curadores, interesses de circulação etc. que precisam criar valores para existirem. As pessoas precisam criar valores para poderem escrever livros sobre esses valores. E tem coisas que estão sendo, digamos, analisadas forçadamente. Há artistas bons que estão sendo totalmente esquecidos em favor de outros que, muitas vezes, forçam sua própria obra para poder aparecer. E na rabeira disso vem uma mercadologia e uma série de outras coisas estranhas não muito legítimas com a arte. Historicamente estão existindo gastos desnecessários e pouca consistência. Pensa-se mais em evento do que permanência. E o que seria permanência? Um bom catálogo, um bom livro. E não grandes coquetéis e viagens mirabolantes nas quais seguem um monte de cartolas e também nas quais o produto que é veiculado não é exatamente a obra de arte, mas sim uma série de outras coisas. Agora ainda há a onda do museu como local de divertimento muito mais que de conteúdo. A aproximação com o público não tem de ser só o pagode, o público é muito melhor que isso.