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Em pauta - Renato Janine Ribeiro

Bem educado

Antropólogos, especialistas e economistas explicam por que a educação é o principal meio de transformação social

Renato Janine Ribeiro
é professor titular de Ética e Filosofia Política na USP
Nosso enorme déficit em cidadania convive com um superávit, nada desprezível, em recursos humanos. Dispomos de profissionais muito bons, inclusive na área educacional. O problema é que estamos longe de estabelecer a devida ligação entre a necessidade e a disponibilidade, ou, se quiserem, entre a demanda e a oferta. Isso faz parte de um desenho mais amplo, pelo qual os projetos conduzidos no Brasil ficam aquém dos desejos e das necessidades do país, marcando uma espécie de insuficiência do país institucional em face da sociedade.
A educação pode fornecer uma das melhores maneiras de articular nossas necessidades ou desejos, de um lado, e nossas capacidades ou competências, de outro. Assim, por exemplo, as novas tecnologias têm um enorme potencial democrático, que ainda tem sido subutilizado, uma vez que são confundidas com instrumental de mercado: vemos que com a Internet é possível neutralizar trunfos antigos que mantêm a desigualdade social, como a posse de maior riqueza, e substituí-los por novos elementos, como a inteligência, a soma de esforços, a emancipação de setores tradicionalmente oprimidos.
Mas isso depende de uma questão decisiva, que é aquela que dá sentido a uma educação democrática: como fazer o conhecimento chegar àqueles cuja vida ele pode revolucionar? No que se refere ao curso de graduação em Humanidades, que estou organizando na USP para o ano de 2003, procurarei desenvolver o papel da educação de melhor qualidade na construção de um senso de responsabilidade pública e social dos cidadãos. Infelizmente, a relação que ainda se tem com a educação, no Brasil, é a de um instrumento para a ascensão social de indivíduos que se confinam em sua vida e interesses privados. É preciso modificar isso, para que sempre se tenha em mente o potencial retorno social de todo o trabalho que a sociedade investe na educação.
Para tanto, porém, precisamos deixar claro que a sociedade não se restringe ao mercado e a suas forças, que são excelentes quando se trata de produzir bens, mas insuficientes para gerar ou gerir o bem público, as relações entre as pessoas, os valores éticos. E devemos também lutar por uma nova consciência de quem estuda, seja em escolas públicas, seja em particulares, a fim de que todos compreendam que só cresceremos se substituirmos o tradicional individualismo brasileiro - que procura auferir vantagens pessoais das experiências com o mundo mais formal das instituições - por um espírito de cooperação, de rede, que faça renderem os contatos e elos.

Paul Singer
é mestre em Economia e Administração, doutor em Sociologia e professor titular da USP

A transformação econômica ocorre como resultado do desenvolvimento das forças produtivas e da evolução das relações sociais de produção. A partir do século 20, a universidade e o laboratório industrial se tornam a forma dominante de desenvolver novas forças produtivas sob a forma de inovações técnicas, em geral patenteáveis. Nesse processo, a educação escolar formal desempenha papel crucial, pois o conhecimento científico é gerado e sistematizado nas universidades e difundido pelo sistema escolar. A incorporação das inovações técnicas à produção e distribuição exige novas habilidades dos operadores, que são, em sua parte mais geral, ensinadas em escolas, embora com atraso em relação ao ritmo de incorporação das inovações.
A evolução das relações sociais de produção é tangida tanto pelas inovações técnicas como por lutas entre classes e frações de classe. A competição nos mercados separa vencedores e perdedores em classes antagônicas: os primeiros compõem a classe empresarial e boa parte da elite política, intelectual, religiosa, artística, científica etc.; os últimos compõem as classes que dependem de que lhes comprem ou a capacidade de produzir (lhes dêem emprego) ou bens e serviços. Das lutas entre classes ganhadoras e perdedoras surgem inovações sociais, que alteram as relações de produção.
Uma inovação social recente é a economia solidária, provavelmente a mais vasta mudança nas relações de produção no capitalismo contemporâneo. Trata-se da reinvenção de unidades de produção e de distribuição autogeridas e igualitárias, em que todos os participantes trabalham e ao mesmo tempo são donos do capital por igual. Na economia solidária, a competição é substituída, em grande medida, por solidariedade, para impedir a divisão da sociedade em vencedores e perdedores e, portanto, em classes sociais.
A economia solidária exige novas habilidades sociais dos participantes. Eles têm de adquirir conhecimentos sobre o empreendimento solidário que lhes permite participar das decisões - o que produzir, que técnica usar, qual preço colocar, como a receita das vendas deve ser repartida etc. -, que na empresa capitalista são tomadas pelos proprietários. Além disso, os participantes têm de aprender a cooperar entre si sem que um deles tenha poder sobre os outros. Trata-se de aplicar as normas da democracia à atividade econômica, o que foge inteiramente da experiência anterior da maioria dos participantes.
A própria experiência participativa educa os trabalhadores nos valores que regem as relações sociais de produção próprias à economia solidária. Além disso, há um amplo esforço educativo para transmitir aos "cooperadores" bases cognitivas que facilitem o aprendizado da autogestão. Começa-se agora a cogitar também de escolas que preparem as crianças e os jovens para conviver numa sociedade que não exige deles apenas disciplina, obediência e capacidade de suportar frustrações, mas sobretudo iniciativa, responsabilidade, respeito e capacidade de interagir com os outros. É a escola democrática, em que os participantes - crianças, jovens e adultos - formam uma comunidade de iguais, que traça as regras de conduta na escola e encaminha os processos educativos que resultam das iniciativas dos próprios educandos. Assim como na empresa solidária a produção é gerida democraticamente por todos, na escola democrática a aprendizagem se processa por auto-educação individual e coletiva.

Maria Stela Santos Graciani
é doutora em Educação e Administração Escolar pela Faculdade de Educação da USP

Sabemos que o cotidiano das crianças e dos adolescentes que vivem permanentemente nas ruas caracteriza-se e define-se além das adversidades próprias das circunstâncias sociais. De um lado, a paulatina perda de normas e limites adquiridos no ambiente familiar e comunitário. De outro lado, a criação de formas de resistência, de sobrevivência e de subsistência por meio de estratégias e tarefas com normas, regras, linguagem e estilos de vida diversificados. Nesse contexto, torna-se possível a invenção de modalidades de trabalho, de relações e de vínculos diferenciados com setores contrários, como, por exemplo, os policiais, os transeuntes, os vendedores ambulantes, entre outros. Além dos educadores sociais e dos atores sociais emergentes, que os levam a resgatar a identidade e a cidadania quando acolhidos por uma pedagogia adequada.
A simples matrícula na escola, por exemplo, não garante a freqüência das crianças, e o mesmo acontece em abrigos, em oficinas geradoras de renda e de iniciação ao trabalho, ou em casas comunitárias, entre outros, que não estão ao seu alcance. Note-se que a questão vai muito além do ressarcimento dos direitos que lhes foram subtraídos, justificando-se, portanto, uma pedagogia especial para seu atendimento.
A execução competente, organizada e conseqüente da pedagogia social em programas emergenciais e transitórios, ajustada à situação desses meninos e meninas cujo término pode ser previsto, permitirá que outras propostas cuidem de crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social.
As medidas propostas no artigo 90 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que visam à criação de programas de "orientação e apoio socioeducativo em meio aberto, colocação familiar e abrigo", não bastam por si sós. Falta uma etapa prévia, um atendimento inicial altamente intensivo e específico às crianças e adolescentes degradados física, mental e moralmente pela vida. Esse atendimento deve promover a emancipação cidadã pela criação de vínculos que facilitem o resgate da auto-estima, da autovalorização e da autoconfiança. Condições. É isso que denominamos "pedagogia social".
A "conquista", a "sedução" prevê procedimentos, metodologias e estratégias cautelosos, selecionados a partir do diagnóstico específico de cada criança, da grupalização a que ela pertence e, principalmente, do seu grau de degradação, sem lesar, ferir nem violar o seu "espaço vital". Esse limite imaginário que circunscreve o entorno existencial da grupalização e do indivíduo constitui-se uma característica fundamental para a construção e a constituição do vínculo educador-educando.
A pedagogia social é um trabalho, acima de tudo, de conquista e de afeto, que permitirá a permanência do jovem pelo "desejo" de pertencer, de ser considerado, de ser ouvido, de poder expressar seus anseios e suas angústias. Esses momentos, profundamente presentes no cerne do conflito, são as reais possibilidades de emancipação e engajamento a um novo projeto de vida.
O exercício prático de estabelecer regras, normas e limites favorece a compreensão e a aprendizagem de como viver em comunidade, "com-unidade". Esse é um processo educativo árduo e muito conflituoso na medida em que é transpassado pelo autoritarismo e por fatores de exclusão, pela prática vivida e experimentada durante toda uma existência. A flexibilização das regras é feita pelo educador social, que problematiza concretamente, com exemplos do cotidiano, as diferenças entre inclusão e exclusão, não só quanto a aspectos conjunturais, mas principalmente quanto a aspectos estruturais. Assim, o grupo constrói coletivamente regras que, por terem sido geradas e gestadas pelos próprios participantes, deverão ser assumidas conscientemente por todos.

Paulo José Cunha
é diretor de documentários e editor-chefe do programa radiofônico Escola Brasil

A maioria das abordagens sobre a questão da responsabilidade da mídia em relação à educação deságua no erro original de considerar uma e outra como compartimentos isolados, apenas eventualmente comunicantes, evidenciando arraigados preconceitos de parte a parte, que foram se consolidando ao longo do tempo e que só contribuem para uma visão deformada de uma realidade em que as duas categorias deveriam ter espaço assegurado de convivência.
Não há mais como falar de mídia sem falar, concomitantemente, de educação. Assim como não há mais como falar de educação sem falar necessariamente de mídia. A sala de aula, antes infensa à presença dos mídia no espaço social ou pelo menos mantida à prudente distância de sua influência, há muito tempo transformou-se em campo de experimentos midiáticos. E a mídia, há vários anos, vem sendo considerada por diversos estudiosos o principal componente do processo educacional, desde que, a partir do primeiro terço do século 20, o planeta começou a experimentar a revolução criada pela chamada sociedade da informação. O espaço de exercício da política saltou das casas legislativas para o território virtual de discussão criado pelos mídia. A pracinha do interior deixou de ser o ponto de encontro e interação, substituída pelos shoppings. Os mídia instituíram uma nova ágora, tornando-se de fato instrumentos de "mediação", substituindo com sucesso espaços "sagrados" como a igreja e o sindicato.
Dessa forma, convém repensar a insistência com que agentes de políticas públicas continuam compartimentalizando mídia e educação, como se ambas não fizessem parte de um mesmo processo social. A antiga organização do espaço "educacional", que limitava a transmissão de conteúdos à sala de aula, deslocou-se para o espaço virtual definido pela informação eletrônica. Uma criança de qualquer cidade média no Brasil passa mais tempo diante da tela da tevê do que ouvindo as perorações do professor. O que se aprende na sala de aula pela manhã é desmentido à noite pelo noticiário.
Por tudo isso, é fundamental a consciência de que a questão mídia-educação comporta hoje uma abordagem holística capaz não apenas de examinar como se processa o tráfego de influência mútua entre as duas áreas, mas, sobretudo, de como a formação do "novo homem" depende da compreensão de que é necessária, sim, a criação de conteúdos específicos visando a uma "mídia para a educação". Mas, igualmente e ao mesmo tempo, é preciso pensar em alternativas capazes de estabelecer parâmetros para uma "educação para a mídia". O que significa afirmar que não existe caminho de mão única, uma vez que o equacionamento da questão exige abordagem que contemple seus múltiplos aspectos.
Tornou-se imperativa a necessidade de intervenção da sociedade civil na definição dos conteúdos, sobretudo nos que se referem ao setor de entretenimento, que hoje responde por quase 80% das emissões de tevê de sinal aberto no Brasil. Essa afirmação é redundante com o próprio preceito constitucional sobre as finalidades culturais e educativas dos meios eletrônicos de exploração privada por meio de concessão estatal. Ao mesmo tempo, dentro da visão holística acima referida, não se pode mais recusar a adoção de providências visando a uma "educação para a mídia", seja através da criação de disciplinas exclusivas a partir do ensino fundamental, seja ainda pela abertura de espaços públicos de discussão - tipo Observatório da Imprensa -, capazes de detonar um processo de análise e reflexão permanentes, exigência de um mundo cuja conformação imaginária passou a ser construída diariamente pela tela da tevê.
O tempo do professor como transmissor "oficial" de conteúdos educativos já vai longe. Âncoras, animadores, apresentadores e ídolos da tevê ocuparam esse papel. Ao professor, cada vez mais, cabe outro: o de motivador e orientador. A sala de aula do futuro - se é que vai haver sala de aula, espaço físico consagrado pela tradição à transmissão de conhecimento - tende a se transformar, cada vez mais, em espaço de debate, avaliação e discussão dos conteúdos disseminados pelos mídia, esses criadores do novo e mais atraente formato de absorção de conhecimento. Se considerarmos que, neste instante, ainda não existe ação efetiva do estado no sentido de definir nem sequer uma classificação etária da programação nem nenhum aceno na direção do cumprimento do princípio constitucional relativo aos conteúdos culturais e educativos da mídia eletrônica de concessão estatal, perceberemos que o buraco é mais embaixo e que o assunto tem sido tratado como se fosse da casa da mãe Joana, ou da casa dos artistas, o que dá no mesmo.

Antonio Porto Pires
é administrador e gerente do Sesc Santos

No artigo Ganhei Coragem, da Folha de S. Paulo (05/05/02) o escritor Rubem Alves discorre sobre a facilidade de se enganar o povo, e que lhe causa medo o jargão "O povo unido jamais será vencido..." Choca-nos sua frase "O povo é uma prostituta que se vende a preço baixo". Assim termina o artigo: "Raramente, o povo fica bonito. Mas, para que isto aconteça, é preciso que um poeta entoe uma canção, e o povo escute Caminhando e Cantando e seguindo a canção ... isto é tarefa para os artistas e educadores".
A verdade é que o Brasil, país terceiro mundista, conta com um sistema de educação de sub-terceiro mundo. Até Argentina, Chile e México, do mesmo grupo, têm sistemas melhores. O nosso é ruim na educação básica, graduação e pós-graduação, sendo pior nas duas pontas.
O ensino de Pós-Graduação padece de falta de verbas, parcos Institutos de Pesquisa, política de produção científica fragmentada, elitismo, distanciamento da extensão, poucas publicações aproveitáveis e muitas teses sobre "o intenso contraste de cores nas asas das borboletas do sul do pantanal". A Graduação, embora tenha melhorado nos anos noventa, ficou trinta anos perdida nas disciplinas sem bibliografia, ausência absoluta de trabalhos escritos, falta de professores qualificados, além do arrocho ideológico sofrido pela Universidade Pública e a desordenada proliferação de faculdades particulares, em geral de baixíssimo nível.
Contudo, os maiores problemas se acham no primeiro grau que, para existir, necessita de três pilares estruturais.
O primeiro: integração com a comunidade e convívio sociocultural. Conhecer as instituições locais, explorar o espaço público e sua história aliados a teatro, música e artes fazem parte do interagir com a comunidade. Visitar museus, ver exposições, explorar sítios históricos e agregar práticas esportivas, tudo isso faz parte da estrutura sociocultural.
O segundo pilar: educação para a cidadania vai do asseio pessoal à preocupação com o meio ambiente. Compreende entender o espaço de cada um no contexto das obrigações, direitos e deveres coletivos até à plena consciência de que uma comunidade melhor implica vida melhor para todos.
O terceiro é o binômio ensino-aprendizagem: programas, disciplinas, conteúdos, didática, métodos, formas de avaliação e promoção, enfim a parte acadêmica do processo.
No mundo real, as escolas afastaram-se das suas comunidades, e até as temem e rejeitam, tanto faz serem escolas públicas ou particulares. Estas, meros empreendimentos que visam retorno financeiro, funcionam em franquias ou como ponta de lança de culturas estrangeiras. Aquelas demonstram uma absoluta carência da ideologia da educação. Atente-se entre outros fatores a mestres mal remunerados e treinados que por darem aulas em diversas escolas, não pertencem a nenhuma.
Tais distorções fizeram com que as escolas públicas e particulares, na sua quase totalidade, assumissem como educação básica somente o binômio ensino-aprendizagem dissociado da realidade local, tornando todo o processo um conjunto vazio. Nas particulares, há o exagero dos conteúdos, provocando um estresse desnecessário. Nas públicas, é o contrário, o estresse do abandono.
Do outro lado do balcão, ficam os alunos da educação básica, representados por seus pais, os quais por conveniência, ignorância ou ambas, declaram nos clichês: "Consegui matricular meu filho na Escola DanteAmericanoCervantes Americo dos Bandeirantes, porque lá só fica quem quer aprender", ou "Vou tirar meu filho do estado e pôr no particular, nem que tenha que me endividar". Tais frases revelam que a classe média e a média alta, assumiram a distorção. Com um agravante: Tal como as bolsas Louis Vuitton, estas escolas transformaram-se em objeto de desejo. Nas públicas, há o mesmo fenômeno com pais sem poder aquisitivo algum, tentando encontrar "aquela escola na Frequesia do Ó, onde a diretora é rigorosa e pelo menos se aprende alguma coisa."
O leitor perguntará: "Não posso procurar uma escola melhor para meus filhos?". Pode. Mas convém lembrar que a educação é direito universal a que todos devem ter acesso. As escolas devem ter qualidade similar, estar vinculadas às comunidades locais e formar cidadãos, para que no limiar da idade adulta, todos possuam as mesmas chances como princípio fundamental da democracia. Prevalecendo a situação atual, indignemo-nos sem nos surpreender quando, de um carro de luxo, jogam lixo na rua... Quando na periferia a chuva devolve às casas o que foi atirado nos córregos. Assistindo, impotente, aos delitos que tornam as cidades insuportáveis, não discordo de Rubem Alves. Antes, porém, de culparmos o povo pelos baixos níveis de cidadania, lembremos que este anti-sistema de educação básica tem feito com que todos confluamos para um mesmo conjunto vazio.