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Música Para: lugar de música é em todo lugar
Por Eduardo Roberto*
Os últimos vinte anos foram uma doideira para a indústria da música: ela talvez tenha sido a primeira das linguagens da cultura de massa a sentir estética e economicamente o impacto da Internet. No final dos anos 1990, a rápida popularização do acesso à web, a consequente e intensa troca dos arquivos MP3 e a capacidade de gravar CDs de forma caseira viraram do avesso as estruturas de produção e distribuição da música no mundo inteiro.
A recuperação do baque foi lenta e aos solavancos. Desde 1999, ano da fatídica disputa entre os medalhões do rock Metallica e o famigerado Napster, o primeiro serviço de compartilhamento online de arquivos a conquistar multidões, os próximos anos da indústria fonográfica foram difíceis. A busca por um novo modelo na relação com artistas e público foi cheia de conflitos e na base da tentativa e erro. Mas essa disputa também abriu novas possibilidades, e, entre inúmeras iniciativas surgidas ao longo dessas duas décadas, a que vingou de forma aparentemente definitiva foram os serviços de streaming.
Aos poucos, o acesso à tecnologia móvel foi sendo ampliado no mundo inteiro. Essa relativa democratização possibilitou que o streaming fosse lentamente ocupando o espaço principal na distribuição e consumo de música. Para se ter uma ideia do quão difundido é hoje a música na nuvem, segundo a Recording Industry Association of America, 75% da receita da indústria musical nos EUA vêm dos serviços de streaming.
O celular, peça central desse movimento socioeconômico, é uma das criações mais importantes da história recente da humanidade. Apesar de fazer parte do nosso cotidiano há relativamente pouco tempo — no sentido histórico, pelo menos —, ele já é o instrumento central na vida de muita gente, e já é possível termos alguma ideia de como a sua utilização em larga escala alterou toda a dinâmica de como a música é produzida, distribuída e consumida.
Esse protagonismo do celular é especialmente percebido no consumo de música, e também possibilitou que diminuísse a distância entre a expectativa do público e oferta de serviços com a coleta e análise de dados de consumo digital. Uma tecnologia que permite que o serviço conheça os hábitos de quem o usa e se adapte rapidamente a eles.
Um desses novos comportamentos de consumo compreendidos pela indústria é de que hoje, para uma grande parcela dos usuários, a música passa ocupar um lugar que vai além da relação fã/artista. A possibilidade de se ouvir praticamente qualquer som quando você quiser fez com que, ao longo dos anos, uma grande parcela dos ouvintes passasse a enxergar a música não como um fim em si, mas como a trilha sonora que ajuda a formatar um ambiente para a realização de determinada atividade. O gênero musical começa a perder espaço pro humor da música.
Essa visão utilitária da música já vinha sendo explorada no mundo da arte desde o começo do séc. XX. O compositor francês Erik Satie, que você provavelmente conhece sem saber por conta da influente simplicidade de “Gymnopedie No. 1”, cunhou o termo “música de mobiliário” para classificar alguns trechos de composições suas, em 1917. Reza a lenda (uma das lendas, na verdade), que Satie, após se ver obrigado a se retirar de um restaurante em que jantava com o pintor Fernand Léger porque a orquestra do local tocava muito alto, comentou a situação:
Sabe, há uma necessidade de se criar música de mobiliário, ou seja, música que faria parte dos ruídos do ambiente e que os levaria em conta. Eu vejo essa música como algo melodioso, mascarando o barulho de facas e garfos sem afogá-los completamente, sem se impor. Ela preencheria os silêncios constrangedores que ocasionalmente ocorrem aos convidados. Ela pouparia as banalidades habituais. Além disso, neutralizaria os ruídos da rua que, indiscretamente, se forçam nas situações.
Para muitos, essa observação de Satie é a pedra filosofal da música ambiente. Uma visão que considera a utilidade da música como ativador de sensações e climas mesmo que indiretamente. É claro que hoje, um século depois desse inspirador chilique do compositor francês, essa abordagem para a música não soa como novidade, afinal, o cinema, por exemplo, faz desde então amplo uso de texturas e acordes, justamente para de uma forma ou de outra guiar a leitura de uma cena. Mas, ao longo do séc. XX, os avanços na tecnologia permitiram que esse utilitarismo pudesse ser aplicado também na esfera privada da fruição musical.
Brian Eno e a Arte do Utilitarismo
A chegada dos instrumentos eletrônicos na música pop a partir dos anos 60 mudaram completamente a paisagem da cultura musical praticamente do mundo inteiro. Sintetizadores, teclados e, eventualmente, computadores passaram a ocupar um lugar cada vez maior na produção de música. E um dos pioneiros nessa integração entre tecnologia e som também foi responsável por efetivamente tirar a “música de mobiliário” do universo artístico propriamente dito e formalizá-la dentro do pop: o músico e produtor inglês Brian Eno.
A partir da metade dos anos 70, Eno e outros músicos passam a explorar mais especificamente um tipo de música sintética, fortemente calcada por instrumentos eletrônicos, que se apresenta discreta e minimalista, em faixas longas e suaves, visando criar uma experiência sônica que “acomoda muitos níveis de atenção auditiva sem impor um em particular; [música que] deve ser tão ignorável quanto interessante”, como ele mesmo explica nas notas de rodapé da série que ele nomeou como Ambient, começando em 1978 com o disco Music for Airports.
É aí que nasce, formalmente, a ambient music, ou música ambiente. Explicar o impacto dessa série na música como um todo é difícil, mas a Pitchfork conseguiu resumir bem a situação:
Raramente acontece de um gênero inteiro, ou melhor, todo um conceito musical, pertencer completamente a um único indivíduo. [...] Você tem que se perguntar se, mesmo daqui a cinquenta anos, toda gravação instrumental e suave ainda garantirá uma comparação com Eno. Acontece constantemente agora, mais de vinte anos depois do lançamento original dos discos, e ninguém pensa duas vezes antes de fazer essa comparação. Para todos os efeitos práticos, Brian Eno é música ambiente.
Eno talvez seja o grande receptáculo de todo esse reconhecimento, pois no intervalo entre a “música de mobiliário” de Satie e o lançamento de Music for Airports, grande parte da discussão sobre o utilitarismo da música acaba focando no Muzak, gênero que leva o nome da empresa que o criou e que merece também um breve resumo de sua história.
Sabe aquela musiquinha de espera de ligação de call center? Então, esse tipo de música enquanto ideia surgiu por volta de 1910 com o major-general do exército dos EUA George Owen Squier, que também era cientista e inventor. Squier ajudou a criar várias tecnologias de transmissão de dados que, na época, ajudaram a popularizar o telefone. A criação do major-general foi usada para transmitir música diretamente para o lar via telefone até a chegada do rádio, nos anos 1930.
Com a mudança, Squier passa a focar na venda do serviço para estabelecimentos comercial e cria uma nova empresa, a Muzak (mistura de “music” e “Kodak”). Outra novidade na atuação da Muzak: no lugar de composições originais de artistas das paradas de sucesso, agora a empresa passa a levar à sério o poder de influência psicológica da música e começa a criar faixas próprias em blocos de 15 minutos de programação que visavam especificamente imprimir um ritmo de produtividade nos frequentadores de comércios e locais públicos (a tal “música de elevador”). É o Stimulus Progression, ou progressão de estímulo.
A nova empreitada foi um sucesso estrondoso e, durante os anos 50 e 60, era praticamente impossível não ter em contato com a Muzak nas grandes cidades do mundo. Mas a sua onipresença, e concomitante revolução cultural, também tornaram a empresa e suas produções sinônimos de música descartável, anódina e massiva. Até o lançamento de Music for Airports, ambient music era quase que um termo necessariamente pejorativo.
Sob a influência de Eno, a música borrou as barreiras que podiam existir entre o utilitarismo da música de elevador (vista como “sem valor” ou “descartável”) e as abordagens mais intelectualizadas de Satie e da série Ambient. Além disso, inovações tecnológicas vão permitindo que a música pop esteja cada vez mais presente no dia-a-dia das pessoas, substituindo assim a necessidade de uma outra música que cumpre unicamente um papel ambiente. Agora, de uma forma ou de outra, todo o pop é ambiente e não só pode, como deve, estar paulatinamente mais presente e acessível.
É dentro dessa perspectiva que hoje podemos repensar não só novas formas do fazer artístico musical, mas também dar novos nós no que entendemos por utilidade da música hoje em dia. Já que no séc. XXI os fones de ouvido e celulares nos permitem que efetivamente qualquer música possa servir um propósito atmosférico específico (por exemplo, uma playlist que você crie com “Músicas para Trabalhar”, ou associar um álbum/som a alguma localidade “Músicas para Ouvir no Metrô”, e etc), qualquer esforço estético que vise quebrar esse padrão colocando uma nova percepção da música, da atmosfera e do próprio estar em algum lugar deveria ter algum valor artístico por si só.
O Música Para entra por essa fresta. Enquanto o ritmo frenético do cotidiano é superimposto (ou reforçado) das mais diversas e sutis maneiras, o projeto do Sesc Avenida Paulista continua torcendo e embolando as linhas que separam a arte do espetáculo, o Muzak da música, a espera da contemplação. O hall de um elevador não é, nem precisa ser, apenas um lugar transitório, depósito de tensões e ansiedades de indefesas vítimas da pressa que precisam ser colocadas em transe sônico para evitar maiores distúrbios pessoais e coletivos - o hall do elevador pode ser um lugar completo, com história, atmosfera e até subjetividade ou ironia. Se a música do elevador for executada ao vivo e dentro elevador, ela é Muzak também? É um som ambiente? É música? Para essas perguntas, não encontrarei respostas definitivas, mas um dos caminhos para encontrá-las começa na Avenida Paulista.
*Eduardo Roberto é jornalista e crítico de cultura. Já escreveu para Estadão, MTV Brasil e foi editor do Noisey, na VICE Brasil.