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Ficção Inédita
Apenas uma pergunta

José Castello

Eu só podia avistar um fio de luz, uma linha dourada e sinuosa que se parecia com um colar sobre uma penteadeira. Esperei, mas minha vista continuou retida naquela imagem, sem que qualquer outra, ainda que esmaecida ou sombria, começasse a se definir. Lembrei-me de que o doutor Lingote devia estar a meu lado e, cheio de esperança, passei a apalpar o chão até onde a extensão de meus braços me permitia. Eu estava deitado sobre um tapete áspero e fedorento, que talvez não fosse um tapete, mas só uma lona, dessas que se estendem sobre o bagageiro das camionetes e dos caminhões; talvez também não fosse áspero, mas estivesse muito sujo e seria dessas borras que se desprenderia aquele fedor.
Fechei os olhos para que a linha dourada não atrapalhasse minha audição, que estava bastante prejudicada; conseguia ouvir umas marteladas, em ritmo regular, às vezes vacilante, mas sempre firme. Sem pensar, passei a agitar os pés, como se acompanhasse a performance de um baterista, e foi ao fazer um movimento mais brusco com o pé direito que derrubei alguma coisa cheia de água. Devia ser água, pois era um líquido inodoro, que rapidamente se alastrou pelo chão, encharcando meus sapatos, calças e empapando minha camisa. Num movimento incompleto, torci o pescoço e, com avidez, passei a lamber o chão. Era querosene, ou alguma coisa muito parecida.
Voltei a pensar no doutor Lingote, que podia estar bem ali, a alguns passos de mim, e só então me ocorreu gritar por ele. Pronunciei um grito sem sentido, um vagido, e não gostei do modo como minha voz ecoou no ambiente, produzindo ecos que se perdiam muito longe. Só então entendi que não estava num sótão, ou num porão de depósito, mas numa espécie de caverna. Que eu soubesse, não existem cavernas na região de Assaré, o que me fez pensar que, talvez, tivessem me levado para algum ponto distante da província, ou até para fora dela.
Ainda assim (e eu me agarrava a essa idéia) pensava que o doutor Lingote devia estar ali bem perto; era uma idéia desprovida de fundamento, mas a que mais eu podia me apegar? Meu advogado é um profissional de hábitos rígidos, que não costuma trair seus clientes. Além disso, tinha uma grande admiração por meus quadros, em particular por Uma história que não é a sua, óleo que, embora pertencesse à coleção Lasvos, ele sonhava possuir. Não sei o que ele via naquela tela, que pintei durante o período em que estive internado na Clínica Spadia, para tratar uma depressão. Os médicos diagnosticaram uma depressão, mas eu não estava deprimido; na verdade, nunca estive tão lúcido e, se sofria de algo, era de excesso de lucidez. Por conta do quadro, o doutor Lingote nunca me deixava em paz. Convidava-me para seminários no departamento de Justiça, para almoços no pub da corregedoria, ou para coquetéis no bistrô Lanuse, que fica no subsolo da hípica. Eu sabia que o doutor Lingote não me abandonaria, e por isso insisti em apalpar o tapete, ou o que fosse aquela superfície acidentada em que eu me encontrava deitado; mas agora, imerso nas poças de querosene, eu podia apenas evocar o cheiro dos fogareiros e dos aviões.
Achei que devia me erguer, e foi só nesse momento que senti a pressão que me empurrava contra o solo. Não estava amarrado, tinha os braços e as pernas livres, podia movimentá-los para os lados e até erguer as mãos e as pontas dos pés; mas, ao decidir me levantar, alguma coisa me prendia, como a força de um ímã. Percebi então que, ainda que minha respiração não parecesse afetada, o ar também estava mais pesado. Pude entender, também, que uma forte umidade contaminava o ambiente, mas isso não bastava para explicar o que me prendia. Nada me mantinha preso e, no entanto, eu não podia me levantar. Considerei a hipótese de algum mal-estar físico, mas, afora o atordoamento, eu me sentia bastante bem. O fio dourado continuava erguido sobre minha cabeça, aquele colar sem pescoço, e só então percebi que, talvez, ele tivesse algo a ver com minha imobilidade. Mas era apenas uma hipótese.
Ergui o braço, mas não pude tocá-lo. Tentei compreender de onde vinha, mas ele atravessava o espaço desde muito longe e se perdia do outro lado da escuridão, num trajeto levemente inclinado. As marteladas continuavam, agora mais aceleradas; se não soubesse onde estava, poderia pensar num terremoto, ou num desastre. Mas não: eu estava ouvindo a música de Fau, sua rabeca vermelha, quando aquilo aconteceu. Estávamos em espreguiçadeiras, na varanda de sua casa, olhando o sol ainda erguido sobre o horizonte, havia muita poeira e umas cabras que, indiferentes, se arrastavam diante de nós. Nada mais. A casa de Fau é pequena, tem só três ambientes e é feita com tijolos primitivos; é coberta por um teto de palha seca e as portas são amarradas com cordas. As paredes são finas e ela está erguida numa pequena elevação rochosa, que dá para o outeiro. Fazia uma tarde quente, de céu claro. Tínhamos tomado duas ou três doses de cachaça, o que não podia estar interferindo em minha percepção. Mas agora eu estava ali, jogado num lugar que não combinava com o lugar de onde viera.
É claro, considerei também a hipótese mais radical de que tudo não passasse apenas de um pesadelo; mas sonhos não têm a consistência de um tapete, nem cheiros fortes, ou inundam um ambiente e produzem calafrios. Havia também a hipótese mais radical, e repulsiva, de que aquilo fosse a vida após a morte, o meu inferno, mas meu coração batia, o ar me entrava pelos pulmões e eu estava bem vivo. Livre dessas tentações intelectuais, passei a me concentrar, novamente, no esforço de me erguer, já que só de pé e me movendo eu teria alguma chance de entender onde estava.
Como era impossível me erguer, lancei-me com toda a força para o lado, de modo que comecei a rolar. O piso, ou o que fosse, era inclinado, e muito liso, o que facilitou meus movimentos. Girei com as mãos cruzadas sobre a cabeça e com as pernas apertadas contra o peito. Aos poucos, as poças de querosene diminuíram e passei a rolar sobre uma superfície polida, como a escama de um peixe. Até que topei com os sapatos do doutor Lingote, e dentro deles, eu imaginei, o próprio doutor. Sei que eram os sapatos do doutor Lingote porque só meu advogado usa mocassins pontudos, ao estilo turco, com laços amarrados como flores e além do mais em tamanho descomunal, feitos sob encomenda para um homem que beira os dois metros de altura. A eles me agarrei, num gesto infantil, mas logo em seguida uma série de socos no rosto, desferidos por mãos abertas à moda dos inspetores de colégios, me fez retroceder.
Dei um grito, sem nenhum significado. Em resposta a ele, uma voz gutural, que não correspondia à fala estridente de meu advogado, disse: - Afaste-se de mim! E foi só o que ouvi, tratando de me encolher, enquanto as marteladas se acentuavam. Pensei que talvez já pudesse me erguer, mas a tal força continuava a pesar sobre mim, o grande ímã escuro a me pressionar contra o chão, só me restando o consolo dos movimentos laterais, ou daqueles facilitados pelos desníveis do solo. Em passos duros, os mocassins do doutor Lingote se afastaram, fazendo plof, plof, plof, enquanto espalhavam bolhas gosmentas a meu redor. Concluí que só me restava continuar a rolar, e foi o que tratei de fazer.
Para minha sorte, o solo prosseguia em declive, às vezes mais íngreme, o que me obrigava a diminuir o ritmo e até a me agarrar um pouco em alguma saliência, às vezes mais suave, levando-me a empurrar o corpo com as mãos espalmadas, esboçando os gestos de um nadador. O chão passou a ficar lamacento e malcheiroso. Um odor apodrecido, e um tanto gosmento, mas me esforcei para controlar a repulsa e ir em frente. Às vezes, desanimado, parava e tentava, mais uma vez, me levantar, mas sempre aquela força a me empurrar para baixo; ela me prendia pelo peito, como uma armadura, ou uma pedra invisível colocada sobre meu tórax. Mas, se eu rolava, o peso se desvanecia, de modo que a força parecia ter vontade própria, e até mesmo uma consciência, pois só se evidenciava quando eu, por teimosia, tentava me erguer mais uma vez.
A frase do doutor Lingote (Afasta-se de mim!, dita por uma voz que não pertencia a ele, logo não era uma frase do doutor Lingote, embora os mocassins pertencessem a ele, ou se assemelhassem aos seus) ainda me atordoava. Talvez agora eu estivesse preso apenas a uma frase, ainda que, antes mesmo de ouvi-la, aquilo já me prendesse; mas existem coisas que agem sobre nós antes mesmo que percebamos sua presença, ou que se materializem e tomem forma, ainda que uma forma sonorosa como uma frase berrada daquela maneira - Afasta-se de mim! Já nem ousava mais afirmar que o doutor Lingote fora mesmo o autor da frase. Aquilo, aquela voz, aquela força, aquela coisa que me espremia, ia se tornando cada vez mais intransponível. Cada vez mais coercitiva, de modo que, sob sua pressão, minhas idéias também eram espremidas (como legumes num espremedor, ou laranjas comprimidas para um suco); e tudo avançou a um ponto em que eu já tinha, até mesmo, dificuldades para pensar, ou pensava só pensamentos planos, achatados, sem nenhuma sutileza ou utilidade.
Até que, apoderado de uma vitalidade que não sei de onde veio, consegui gritar: - Doutor Lingote, por favor, será que não pode me dar apenas um sinal? Era um chamado enfático, de teor poético, quase um chamado bíblico, mas foram exatamente essas as palavras que, sem que eu as tivesse escolhido, se formaram em minha boca, sem que eu as tivesse formulado em pensamento, sem nem mesmo que eu tivesse desejado pronunciá-las. Minhas primeiras palavras, apenas uma pergunta. E, imediatamente, ouvi o doutor Lingote, com sua voz metálica e profissional, responder: - O que o meu prezado cliente deseja de mim?

José Castello
é autor de Fantasma (Record), entre outros