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Sociedade
Oficina de cidadania
Reuniões e cursos mostram como é possível sensibilizar a comunidade contra a exclusão social, a miséria e a violência por meio da informação
É quarta-feira. Emília percorre a cidade durante uma hora e meia dentro de um ônibus até chegar à reunião. Uma vez por semana, ela falta às aulas noturnas do supletivo para se encontrar com o grupo. O encontro começa com as palavras de Emília: um relato emocionado sobre o assassinato de seu filho de 16 anos. O rapaz, que já havia passado algumas vezes pela Febem, levou o problema para dentro de casa. A família começou a ser molestada pela polícia. "Se, naquela época, eu soubesse dos meus direitos, poderia ter defendido a mim e a meu filho. Eu saberia o que fazer para ajudá-lo. Hoje, cuido do meu neto e conto com o aprendizado dessas aulas para poder educá-lo e oferecer a ele um futuro diferente do futuro do pai", conclui Emília. Em seguida, a professora Valéria completa: "Vocês estão vendo? A nossa arma contra a violência é a informação". E, buscando municiar a população, o Sesc Santo Amaro trouxe para a unidade um projeto que já havia sido realizado, com êxito, em 2000, na unidade de Itaquera. Trata-se das oficinas de cidadania, que são oferecidas gratuitamente para a população.
O objetivo das aulas parte da necessidade imediata de fortalecimento dos grupos formais e informais presentes nas comunidades. "A unidade já desenvolve um trabalho social com a comunidade e recebe pessoas de diversas instituições", explica Carmem Roberta Lobo, animadora cultural do Sesc Santo Amaro. "Dessa forma, pensamos que seria interessante, além da participação do público dessas instituições, instrumentalizar também quem trabalha e desenvolve projetos diretamente nas comunidades."
O grupo que se formou é bem eclético. Jovens e idosos, alguns com formação universitária e outros que, há pouco, foram alfabetizados. "Essa característica", comenta Roberta, "gera uma troca muito rica entre aqueles que têm mais carga teórica e aqueles que trazem muita experiência de luta na bagagem." A reunião acontece uma vez por semana, sob a monitoria de Carlos Thadeu C. de Oliveira, mestre em ciência política, e Valéria Sanches, mestre em sociologia.
O curso é dividido em módulos e, até agora, já foram debatidos temas como liderança e organização comunitária, introdução à organização política e direitos e deveres da cidadania. Segundo Carlos, foi preparado um material de estudo, como textos e vídeos, mas o objetivo não é oferecer uma "fórmula pronta". "Procuramos adequar as discussões à realidade e à experiência de cada um", explica. Para os alunos, a metodologia de resgatar o processo educativo a partir das pessoas é muito produtiva, pois é dessa forma que, comumente, procede-se nas periferias.
A irmã Maria Guadalupe Lara é um exemplo de experiência na militância em movimentos sociais. Com formação em assistência social, pedagogia e letras, irmã Guadalupe trabalha há 27 anos na periferia, em especial nos bairros de Pedreira e Vila Guacuri. "Eu me considero uma militante dos meios populares e procurei este curso com o intuito de partilhar a minha experiência e a angústia gerada nesse trabalho tão difícil. Fico muito animada em ver que também há outras pessoas em busca de solução para os problemas da periferia." E ressalta: "Cada um aqui dentro tem uma vivência. Nem todos estão no mesmo patamar, mas é importante que haja a tolerância da escuta e a participação".
Aos 74 anos de idade, dos quais 22 foram dedicados ao trabalho social, Hidagard Paukoski reconhece que, desde que passou a atuar na comunidade, aprendeu a brigar por seus direitos e adquiriu força para lutar. Seguindo uma das propostas do projeto de criação de agentes multiplicadores, Hidagard conta: "Participo de um grupo de terceira idade do Jardim Primavera, em Interlagos, e tudo que aprendo aqui passo para os meus colegas de lá, que estão bastante interessados".
Para Eduardo de Freitas, estudante de sociologia, as aulas têm sido um "laboratório maravilhoso". Residente em Guarulhos e com pouca experiência em atuação na periferia, Eduardo sente falta, na sua região, de espaços que, a exemplo do Sesc, promovam esse tipo de discussão. "Há muita troca neste grupo e pode-se aprender muito com quem lida com os problemas no dia-a-dia. Se você propõe um problema, eles conseguem pensar numa solução de imediato."
Projetos e soluções
O que mais chamou a atenção dos participantes das oficinas foi o módulo Desenvolvimento de Projetos. "Essas pessoas encontram muita dificuldade na elaboração dos seus projetos. E, no momento de solicitar verbas e lidar com órgãos públicos, é necessário ter um certo conhecimento", explica Roberta. A rigor, para muitos, esse ponto é o que mais os motiva e, na opinião de Hidagard, embora o grupo abarque pessoas de regiões distintas, "os problemas são os mesmos e, portanto, na hora de elaborar as propostas, é possível trocar muitas idéias". Seu projeto consiste na construção de uma sede comunitária em seu bairro e, para tal, pretende buscar apoio onde for necessário.
Já para a aluna Esther Lima da Silva, quando o assunto é jurídico as coisas ficam um pouco mais complexas, já que, segundo ela, a sua experiência maior está na ação. Contudo, reconhece que recebeu informações às quais não teria acesso de outra forma. Esther, que se autodenomina "catadora de catadores", já tinha um projeto pronto para trabalhar com catadores e carroceiros da cidade. "Aqui no curso", conta ela, "recebi dicas importantíssimas e agora será muito mais fácil viabilizar o meu projeto." Articulada, a aluna propaga, por meio do projeto, a idéia de criar "um amor diferenciado pelo bairro de cada um", que, ainda na sua opinião, irá se espalhar pela cidade.
Com pouca experiência e muita boa-vontade, Emília Fidelis também se matriculou no curso com o objetivo de buscar soluções para os problemas do seu bairro em Vargem Grande, cidade próxima a Cotia. "Gostaria de ser a presidente da Associação de Amigos do Bairro, por exemplo, para resolver problemas como asfaltamento das ruas, esgoto e alimentação, mas mal sei dizer as palavras corretas", conta Emília, emocionada. Depois que entrou no curso, ela lançou sozinha um projeto que busca dar assistência às mães das crianças de uma creche. "O Carlos [Thadeu C. de Oliveira] me perguntou o que eu tinha em mente. Fui falando e ele foi colocando no papel. No final, o projeto estava enorme. Fiquei admirada com tudo o que tinha saído da minha cabeça!", orgulha-se. "Mas agora as idéias têm de sair do papel e ir para a vida."
Valéria Sanches retoma ressaltando, ainda, a importância do último tema a ser tratado no curso: a exclusão social. "Quando tratamos de miséria e exclusão social, é importante pensar nos percentuais", analisa. "Iremos trabalhar com o Mapa da Exclusão/Inclusão Social da cidade de São Paulo, organizado por Aldaíza Sposati, o que de certa forma facilita aos alunos a compreensão dos problemas e de como lidar com eles." Atuando em diferentes pontos da imensa cidade de São Paulo, já tão calejada por problemas sociais crônicos, os integrantes desse e de outros grupos, por meio do seu trabalho tão empenhado, no fundo confirmam as palavras da irmã Guadalupe: "Este curso, na verdade, é uma chance de reunir as pessoas e fazer com que elas não se sintam sós e, assim, possam mobilizar uma organização de trabalho."