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Evento
O mundo dos insetos
Evento Baratas & Afins, no Sesc Interlagos, resgata a importância dos insetos para a conservação do ecossistema e promove, de maneira lúdica, uma nova maneira de pensar nesses pequenos seres
Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar. Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, agitavam-se desesperadamente diante de seus olhos."
Essa visão agonizante é proposta por Franz Kafka logo nas primeiras linhas de A metamorfose, de 1915. Assim se apresentava o caixeiro-viajante Gregório Samsa, transformado em uma enorme e horripilante barata, que passa a atrapalhar os planos de vida de sua família. Talvez seja o exemplo mais notável da apropriação dos insetos pela literatura, e, ao mesmo tempo, expressa de maneira sintética boa parte da ojeriza que os seres humanos têm em relação a esses pequenos bichinhos que tanto incomodam.
Porém, quando o homem surgiu sobre a face da Terra, ainda mal diferenciado dos antropóides, os insetos já se apresentavam altamente desenvolvidos e evoluídos. Os mais antigos fósseis de insetos datam do período Devoniano, há cerca de 350 milhões de anos. "Contudo, sabemos que os fósseis indicam apenas a idade mínima de qualquer grupo", afirma Cláudio José Barros de Carvalho, da Sociedade Brasileira de Entomologia, a parte da zoologia que estuda os insetos. "Naquela época, a Terra era bem diferente da que conhecemos hoje", prossegue o professor, "era o início do desenvolvimento da flora terrestre". Os primeiros fósseis de insetos com asas são de um período mais recente, o Carbonífero. Essa característica, com certeza, ofereceu melhores condições de evolução ao grupo até os dias de hoje.
Curiosamente, todas as ordens de insetos do Carbonífero se extinguiram, e não deixaram descendentes com formas relacionadas às dos insetos atuais. A exceção se faz justamente às baratas, que ainda hoje pouco diferem das espécies que viveram naquele distante período da era Paleozóica. São, portanto, velhas habitantes de uma Terra em que ainda somos meros desconhecidos.
Essa antiga inquilina é a anfitriã da exposição Baratas & Afins: O Notável Mundo dos Insetos, promovida desde novembro pelo Sesc Interlagos. Segundo Dóris Larizzatti, coordenadora de programação da unidade, não há a intenção de fazer uma apologia aos insetos. "A idéia é demonstrar que, apesar de pequenos, eles são notáveis pela sua importância, não só ecológica, mas também cultural", esclarece.
Mocinhos ou bandidos?
"Quando os ancestrais do homem surgiram, há alguns milhões de anos, já existiam insetos há centenas de milhões de anos. Desse ponto de vista, somos nós, humanos, que estamos alterando o ambiente em que eles vivem e se reproduzem", afirma Cláudio José quando perguntado se os insetos são mocinhos ou bandidos. "O homem, por sua natureza, sempre vê os animais e as plantas como seres que estão aqui para servi-lo. Dentro dessa dicotomia, eles são tachados de bons ou maus. Mas, de maneira geral, não poderiam ser classificados assim", argumenta.
Para o entomologista Fabrício Sicardi, essa diferenciação só se estabelece porque o ser humano causa desequilíbrios ambientais. "O inseto só passa a ser considerado uma praga, por exemplo, quando sua população aumenta demasiadamente em um determinado meio ambiente. E a população de um inseto só aumenta quando há muito alimento no meio ou quando não há um inimigo natural que equilibre o número de indivíduos ou, então, as duas coisas. E isso, normalmente, acontece como conseqüência das ações do homem, como ocupar uma área e instalar uma monocultura."
Espeto de ferro
Porém, para controlar as pragas que devastam colheitas, danificam alimentos e destroem habitações, como gafanhotos, formigas, brocas, mosquitos e tantos outros insetos, a ciência desenvolveu métodos bastante interessantes. Hoje em dia, apesar de existirem inseticidas de última geração, que agem localmente e minimizam os impactos ambientais, é bastante difundida uma prática denominada controle biológico. Parte-se do princípio de que todo ser vivo tem um inimigo natural. A pesquisa, dessa maneira, visa dar condições para que o inimigo natural se instale ou aumente sua população, de maneira a controlar a população de insetos pragas.
Fabrício cita, como exemplo de sucesso da aplicação do controle biológico, o tratamento de uma praga chamada broca da cana. Um determinado tipo de mariposa costuma botar um ovo sobre o caule da cana. A lagarta que se origina do ovo perfura a cana e se instala nela, abrindo caminho para diversos microrganismos que consomem parte da sacarose e, assim, baixam o nível de produtividade da plantação. "Antes se faziam aplicações de inseticidas, mas sem êxito porque a lagarta se protegia dentro do gomo da cana", explica Fabrício. Através de pesquisas, cientistas reproduziram uma microvespa que localiza a lagarta dentro da cana e bota um ovo sobre ela. A larva da microvespa, então, a parasita até matá-la. A mariposa, dessa maneira, não se desenvolve. "É um recurso sofisticado, mas ao mesmo tempo extremamente simples e pouco oneroso", esclarece o entomologista.
Outro exemplo de sofisticação dos hábitos alimentares que favorece o meio é dado pelo entomologista Edilberto Giannoti. "A temida formiga saúva é um inseto fundamental, por exemplo, para a manutenção do cerrado brasileiro. Os ninhos da saúva são compostos de uma quantidade enorme de câmaras e túneis subterrâneos. As saúvas pegam folhas, mas não se alimentam delas; apenas as carregam para seus ninhos e comem os fungos que se desenvolvem nelas. Dessa maneira, todos os nutrientes que existem na superfície, mas que são escassos embaixo da terra, são carregados às grandes profundidades dos ninhos. A saúva realiza a ciclagem de nutrientes e enriquece a terra."
Edilberto, que trabalha no Centro de Estudos de Insetos Sociais, na Unesp de Rio Claro, cita, como exemplo de organização social que poderia ser aprimorada pelos humanos, a cooperação existente entre vespas e formigas. "Ambas normalmente são predadoras e comem, de modo geral, insetos. Porém, quem se alimenta dos insetos capturados, na verdade, são as larvas das formigas e das vespas. O adulto não tem enzimas para digerir a carne conquistada e, por outro lado, a larva não tem meios de obter o alimento necessário para seu desenvolvimento. Ao processar os pequenos insetos, as larvas regurgitam uma secreção que contém os aminoácidos da carne. Desse líquido se alimentam os adultos."
Desconhecidos insetos
Apesar do amplo trabalho de pesquisa relativa à entomologia em todo o mundo, existem milhões de espécies de insetos que ainda não foram catalogadas. Grande parte delas vive nos países tropicais, como o Brasil. "Aqui a riqueza de insetos é estupenda, mas infelizmente é muito pouco conhecida ou divulgada", retoma Cláudio José. "Além disso, existe a tendência de apenas nos preocuparmos com mamíferos e aves quando pensamos na conservação da fauna. Como o foco fica nesses grupos, existe o desconhecimento total da importância dos insetos para o meio ambiente."
"Aqui no Sesc Interlagos sempre procuramos centrar nossos temas na educação ambiental", afirma Dóris. "Nessa exposição, decidimos mostrar a importância dos insetos na participação da vida, na natureza, na relação com o homem. Não apenas de maneira biológica ou científica, mas também, entre outras coisas, mostrando como eles são fontes inspiradoras de artistas de diversas áreas."
Fabrício Sicardi, que também tem outro interesse nos insetos, concorda com a afirmação. Há alguns anos, o entomologista desenvolve um trabalho artístico que retrata esses seres intimamente ligados a ele. "Trabalho a morfologia dos insetos com licença poética. Não tenho a preocupação de retratá-los exatamente como são." Em um processo kafkiano de metamorfose às avessas, Fabrício humaniza seus "companheiros de trabalho". Uma parte desses conceitos pode ser verificada nas obras do artista expostas em Baratas & Afins.
Para ele, suas obras têm caráter visual e também educativo. "É uma espécie de campanha que faço. A primeira coisa que a criança aprende a fazer quando vê um inseto é esmagá-lo, e vai matando indiscriminadamente. Por isso, coloquei o caráter lúdico nas peças: para que os insetos se tornem simpáticos, para que as pessoas ao menos se questionem até que ponto eles são vilões e também até que ponto o homem não é o responsável pela resposta dos insetos. O inseto não tem consciência, ele apenas reage. Cabe ao homem administrar."
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