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Entrevista
Guiomar Namo de Mello
A pedagoga e diretora executiva da Fundação Victor Civita fala do novo modelo curricular de educação no Brasil e da importância do prêmio concedido pela Unesco para a revista Nova Escola
Na opinião da ex-secretária municipal de Educação de São Paulo, na gestão de Mário Covas, o espírito crítico nasce num campo onde as alternativas e a flexibilidade na prática docente pautam o dia-a-dia nas salas de aula. Em entrevista exclusiva à Revista E, a pedagoga, que também integra o Conselho Nacional de Educação, analisa essa nova escola e explica como professores e alunos podem contribuir para construir um país cada vez mais preparado para o chamado mundo globalizado.
Qual a importância de um prêmio como o da Unesco para o trabalho na área de educação?
É o reconhecimento de uma instituição muito importante, como é a Unesco, que reflete os objetivos maiores das Nações Unidas, o que considero muito importante. Do ponto de vista da Nova Escola, acho que é um reconhecimento que veio a bom tempo. Essa revista já existe há quinze anos, está consolidada dentro do mercado educacional e criou, a meu ver, um modo muito próprio de falar com o seu leitor. Trata-se de uma publicação que se adequa muito bem ao nicho do mercado editorial para o qual ela está voltada. Nesse momento, em que você observa cada vez mais uma segmentação na área de prestação de serviços, e até de produtos, creio que a Nova Escola, a exemplo de outras publicações da Editora Abril, está muito bem posicionada para responder a essa demanda de fidelização de um determinado grupo social ou categoria profissional, como é o caso dos professores.
Qual é, exatamente, o público da Nova Escola?
Na verdade, a primeira edição, feita pelo próprio Victor Civita e que ainda não se chamava Nova Escola, tem quase dezessete anos. A Nova Escola completou quinze anos em março de 2001. Ela tem, hoje, uma tiragem de 700 mil exemplares e chega a todas as escolas públicas com mais de cinqüenta alunos, por conta da parceria com o Ministério da Educação, que faz assinaturas por escolas. O número de exemplares que cada escola recebe depende do número de professores. Desde novembro, a publicação chega também a todas as escolas públicas com menos de cinqüenta alunos. Ou seja, a Nova Escola está cobrindo todo o universo das escolas públicas do ensino fundamental do Brasil, que soma cerca de 200 mil estabelecimentos. Isso por conta de uma parceria com a Unesco, que está ajudando a viabilizar o custo de distribuição. Essa revista nasceu de um compromisso muito interessante do Victor [Civita]; ele tinha uma clareza de objetivos que era rara naquele momento. Creio que, hoje, isso é mais fácil. Quando a revista surgiu, percebeu-se com muita clareza que o professor é fundamental.
Como uma publicação voltada para o professor atua num país como o Brasil, onde as diferenças de escolaridade e de cultura são tão díspares?
Acho que essa é uma das chaves de sucesso da Nova Escola. O problema da linguagem é contornado se você adequá-la sem banalizar o conteúdo, o que é uma arte do ponto de vista editorial. Além disso, é preciso ter o enfoque correto. Com certeza, os professores brasileiros são muito díspares, mas isso porque as escolas brasileiras estão em regiões também muito díspares. Porém, a prática do professor, não importa quem ele seja, tem problemas com características comuns. Os problemas ganham uma "embalagem" diferente dependendo do contexto cultural, social, da cidade ou do campo, mas todo professor tem o problema de ensinar e fazer o aluno aprender. No momento em que você entende esse enfoque, consegue, em primeiro lugar, livrar-se de um vício comum nas publicações de educação, que é a ideologização. Você consegue partir da prática do professor porque conhece os problemas dessa prática. Eu, pessoalmente, tive contato com uma boa quantidade de professores do Brasil inteiro e não me recuso a fazer conferências porque esse contato é muito rico. Com isso, posso dizer que a prática docente coloca sempre desafios muito semelhantes. Todo professor enfrenta a questão da motivação e o desafio de trabalhar o conteúdo de forma que o aluno entenda. É possível dizer que o professor do Nordeste precisa tratar o conteúdo de maneira diferente porque ele tem um aluno diferente. O que talvez não se sustente é dizer que é preciso tratar as questões do aprendizado de maneiras diferentes para o professor do Nordeste ou do Sul.
Atualmente, em época de tantas mudanças, a ideologização da educação permanece muito forte entre os nossos professores?
Sobretudo no Brasil. Porém, não tanto entre os nossos professores, pois eles estão envolvidos com a questão da prática. Mesmo que tenham uma ideologia, a prática é muito forte e abre janelas para fora da gaiola ideológica. Mas a intelectualidade, a universidade e os, digamos, pensadores do Brasil, ainda têm a tendência bastante forte de ideologizar algumas questões da área da educação. Basta ver o conteúdo das teses de mestrado, são sempre as mesmas categorias, o mesmo tipo de epistemologia; enquanto isso, fora, já se começam a vislumbrar outros enfoques muito importantes.
Quais, por exemplo?
Construções de teoria pedagógica que têm muito a ver com as novas tendências, com o fato de que, de repente, entramos num mundo global, querendo ou não. Não é só a economia que é global. A violência é global, o saber pode ser global. Oxalá ele seja, é para isso que trabalhamos. Sinto no pensador da educação brasileira, ainda, uma timidez muito grande; nas outras áreas, como arquitetura e medicina, por exemplo, as coisas estão avançando, caminhos estão sendo abertos. Infelizmente, isso não está acontecendo na educação, ninguém está ousando nessa direção; e não é por meio de uma revista como a Nova Escola que se faz isso. Deveria haver uma produção acadêmica que fertilizasse pessoas que fazem revistas como a Revista da Educação e a Nova Escola. A elaboração teórica não é nosso papel, apenas divulgamos essa elaboração para que ela se socialize e se democratize cada vez mais.
As pessoas falam muito do empobrecimento do ensino brasileiro, no sentido de ele ser menos crítico, mais generalista e menos aprofundado. O que a senhora acha disso?
Afirmar que ele está menos crítico é estranho porque o ensino acadêmico é que sempre foi visto dessa forma. O que está se propondo, hoje, é um tipo de enfoque curricular, que, por ser muito mais flexível, dá mais espaço à crítica; por isso, creio que esse argumento não tenha muita lógica. "Crítica" é uma palavra que anda um pouco desgastada e cada pessoa entende uma coisa, mas, qualquer que seja o seu sentido, ela tem muito mais espaço neste currículo do que tinha no enciclopédico. O currículo enciclopédico, verbalista, que exigia mais a memória, por definição exigia menos o espírito crítico. Acho que temos, hoje, um currículo flexível e voltado para competências e, na medida em que ele é assim, abre espaço para muitas alternativas. A crítica, provavelmente, surge no momento em que você tem muitas alternativas. A idéia que se tinha de uma escola "rica" era uma escola voltada para si mesma, ou seja, para entrar na primeira série, tinha de estar alfabetizado; para passar para a segunda, tinha de ter passado pela primeira, e assim sucessivamente. O que queremos é uma escola sensível ao mundo externo. Ou seja, preparo para a próxima série, mas se nesta cidade for importante ensinar a tomar ônibus, vou tentar fazer isso; vou tentar usar o conteúdo de preparação da sexta série nesse contexto; vou, por exemplo, fazer um mapa das ruas de São Paulo na aula de geografia.
Hoje em dia, quando o aluno tem tudo isso, como ficam questões como a especialização? O ensino técnico, por exemplo?
O ensino técnico continua existindo. Ele não foi abolido. Ao contrário, ele foi fortalecido. Pela primeira vez, temos um ensino técnico com identidade própria. Ele não é mais embutido na educação básica. E é curioso perceber que, por demanda do mercado de trabalho e das grandes corporações, tanto de empregados como de empregadores, o que se está pedindo do ensino técnico é mais generalização e menos especialização. Fizemos uma reunião com empresários no Conselho Nacional de Educação que foi emblemática para mim. Eles disseram que precisam de pessoas que saibam ouvir e processar o que ouviram para argumentar, pois, sem isso, não é possível fazer as pessoas trabalhar em equipe, e hoje o trabalho de equipe é fundamental. Os sindicatos de trabalhadores dizem a mesma coisa. Ou seja, o que está se exigindo dos trabalhadores na linha de montagem não é mais apertar parafusos, mas sim ter uma idéia mais geral do processo.
Isso gera um tipo de brasileiro mais participante e sintonizado com o mundo globalizado?
Acho que sim. Você usou o termo correto. Mais sintonizado. Parece que não há outro caminho senão trabalhar o espaço do saber e do conhecimento. O nosso espaço-terra já está dado. O nosso espaço-território foi construído ao longo de séculos, quando o homem começou a plantar... Qual espaço nos resta? Ou nós vamos ficar escravos do fluxo de mercadorias ou temos de aprender a navegar num outro espaço, que é o do saber. E quando eu digo saber, não estou me referindo a algo intelectual; refiro-me ao reconhecimento de que todo mundo é depositório de algum saber, de uma cultura, de algo que lhe faz humano e que não é totalmente dependente do fluxo de capitais, mercadorias e serviço. Isso é importante, porque nós continuamos habitando esse planeta, continuamos habitando um território. Mas o espaço do saber é importante porque, de repente, surgiu uma maneira de disseminar esse conhecimento que torna tudo mais rápido e disponível para todo mundo e em tempo real. A sociedade de conhecimento não é uma simples terminologia.
Quando a senhora localiza essa mudança na educação?
Muitas escolas particulares têm essa prática curricular há muitos anos. O governo Montoro, em São Paulo, e o governo Hélio Garcia, em Minas Gerais, mesmo sendo de partidos bem diferentes, tinham experiências de âmbito estadual com traços muito semelhantes. O que acontece é que temos, no âmbito nacional, um Governo Federal que funciona como uma esponja de sinergia, que absorve tudo o que vem sendo construído pelas escolas, pelos municípios e pelos governos há muito tempo. O trabalho no ensino fundamental foi feito com as pessoas que estavam aí, com as práticas e experiências que já existiam, no âmbito público e privado. Mas o mérito de reunir, dar sinergia e tornar isso nacional é deste governo, sem contar políticas que ele próprio formulou.
Quando virão os reflexos desse tipo de educação?
Acho que alguns deles já existem. Basta percebermos, hoje, o tipo de interesse que os professores têm em buscar conhecer coisas. A reforma deve começar por aqueles que não precisam vestir a camisa, sem eles não há reforma. Nesse sentido, muito mais do que os alunos, os professores é que serão os agentes. Por exemplo, o prêmio Professor Nota 10. A primeira edição teve 380 inscrições, a quarta teve cinco mil. O fato de cinco mil professores se darem ao trabalho de sentar, pensar no que estavam fazendo e passar isso para o papel, bem ou mal, é inédito. E foi provocado num momento em que está chegando ao professor uma mensagem do tipo "Olha, amigo, as coisas estão mudando".
Até um tempo atrás, parecia que a educação sensibilizava mais os políticos de esquerda. Hoje a questão da educação consegue perpassar todo o quadrante político? A sociedade exigiu esse compromisso?
Acho que a educação sempre perpassou. O sacrifício que as pessoas sempre fizeram para ir a escola é um sinal. Agora isso está ficando mais consciente e visível. E, mais importante, a educação está encontrando canais de expressão e ressonância no governo. Não se pode ver a nova educação apenas como uma mudança curricular. É um conjunto de coisas. Acho que é um indicador claro de que existe uma reforma educacional em andamento no Brasil.
É um caminho sem volta?
Acho que sim. A questão da formação, hoje, a questão das pessoas construírem competências para poderem competir, sobreviver, terem projetos, serem reconhecidas e se reconhecerem em termos do seu traço mais humano, está ficando muito difícil. No momento em que o governo institui o Programa Bolsa-Escola, por exemplo, a família que recebe acaba percebendo, mesmo que não reconheça o valor da educação, que ela é importante. Afinal, o governo está pagando para elas colocarem seus filhos na escola.
Talvez a reação da sociedade à corrupção também seja um sinal.
Talvez. Se não desta nova educação, de uma consciência cada vez maior do valor da educação. A corrupção sempre existiu, mas o Brasil está tirando os esqueletos de dentro do armário. Acho que esse processo é, em si, educativo.
E quanto à tevê a cabo e à Internet aplicadas na educação? Corre-se o risco de ficarmos enfastiados de conhecimento?
Talvez enfastiados de informação. Quando se diz que o novo paradigma que está se abrindo é o espaço do saber, é em função da necessidade de você construir significados a partir da informação. No momento em que você tem instrumental cognitivo e afetivo para construir significados, você, com muita facilidade, seleciona, corta, recorta e amolda a informação. O significado é sempre negociado. A informação não, você recebe, armazena e ela fica lá. O significado é sempre passado. Você está sempre tendo que explicar aquilo para alguém. Como nesta entrevista. Usou-se sempre a expressão "o que você acha?". Ou seja, você está garimpando os meus significados. Seja para checar com os seus, seja para colocar na revista e checar com o dos leitores. Isso é um processo de negociação. O trabalho de significação daqui para frente será muito importante. Mas pode ser que ele não ocorra. Pode ser que morramos todos intoxicados de informação.