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Cinema
Os bastidores da loucura
A cineasta Laís Bodanzky, diretora do longa Bicho de Sete Cabeças, e o autor do livro que inspirou o filme, Austregésilo Carrano, falam do sucesso no cinema e da questão manicomial no Brasil
Durante a exibição do filme Bicho de Sete Cabeças, no Sesc Santo Amaro, dentro do projeto Cinema em Discussão, Laís Bodanzky e Austregésilo Carrano deram depoimento exclusivo à Revista E falando sobre a adaptação do livro Canto dos Malditos e sobre a grave situação dos manicômios no Brasil, que levou ambos à realização de seus trabalhos.
Austregésilo Carrano - Editei o Canto dos Malditos em março de 1990. Um mês depois ele foi retirado das livrarias a pedido da família de um dos médicos citados nos relatos. O livro ficou "preso" durante sete meses e até ameacei fazer greve de fome para que ele fosse liberado. Foi uma verdadeira guerra. Quando entrei em contato com a Luta Antimanicomial em São Paulo, através da Secretaria Municipal de Saúde, consegui os fotolitos do livro e pude reeditá-lo pela Editora Leons. Na ocasião, vendi sete edições do livro sem que ele estivesse nas livrarias. Eu o vendia em feiras culturais realizadas em alguns shoppings da cidade. Foi numa dessas feiras que uma amiga da Laís Bodanzky comprou o livro.
Laís Bodanzky - Fui contratada para fazer parte de um grupo de pesquisa sobre a questão manicomial no Brasil para realizar um documentário de outro diretor. Foi durante essa pesquisa que o livro de Carrano chegou na minha mão. De tudo o que eu tinha visto até aquele momento, o livro me impressionou muito porque o que ele viveu é narrado com muita garra e desespero. Foi com esse alerta que eu me identifiquei, a dor dele e a maneira como ele descreve fazem você sentir como se estivesse vivendo tudo aquilo. Foi como se eu tivesse compreendido um grande grito do Carrano. Achei fundamental que essa história fosse contada para muita gente, com a intenção de reproduzir a própria intenção do Carrano. Foi assim que nasceu o desejo de transformar o livro Canto dos Malditos no filme Bicho de Sete Cabeças.
A Luta Antimanicomial
Austregésilo Carrano - Depois do filme pronto, quando ganhamos um prêmio em Brasília, Laís recebeu um convite do ministro José Serra para uma apresentação especial do filme no Ministério da Saúde. Nós, do Movimento de Luta Antimanicomial, já vínhamos há treze anos tentando aprovar um projeto de reforma psiquiátrica no país. Quando o ministro Serra viu o filme, em abril de 2001, esse projeto foi aprovado. No dia 10 de abril de 2001, o presidente Fernando Henrique Cardoso sancionou o projeto. O filme deu um grande empurrão para a reforma psiquiátrica no país. O que observamos no Juqueri, por exemplo, é um fato interessante: há mais de 1600 pacientes internados, sendo que um número elevado é de pessoas idosas. Tenho visitado hospitais psiquiátricos, agora que estamos viajando com o filme, e vejo pessoas internando a avó, a mãe, o pai, todos na mesma instituição. A faixa etária dos pacientes é muito elevada e essas instituições são verdadeiros depósitos de gente.
Laís Bodanzky - O desafio é muito grande. A intenção do filme era justamente chacoalhar o telespectador para a realidade. O roteirista Luis Bolognesi teve o desafio de trazer a história vivida por Carrano para a realidade do adolescente urbano de hoje. A realidade dos manicômios continua a mesma e a intenção do filme era fazer com que o espectador saísse da sala de cinema sabendo que tudo o que estava no livro, e no filme, é verdade e está acontecendo. Carrano coloca em seu livro muitas situações que fiz questão de pesquisar e verificar se ainda estavam acontecendo. Agora posso dizer que sim, realmente é essa a realidade dos manicômios no Brasil. As coisas continuam iguais e há pesquisas que justificam tudo o que mostramos no filme. Conversei com psiquiatras e ouvi muitas histórias fortes e impressionantes. Fui a debates em faculdades de psiquiatria e presenciei muita lavagem de roupa suja, pois eles mesmos diziam: "Vamos falar a verdade, sabemos muito bem a quantidade de médicos que se drogam". Até pelo fato de eles terem acesso aos remédios, acabam se viciando de tanto se automedicarem. É remédio para acordar, para dormir, para trabalhar, para tudo. Muita gente me pergunta se o filme é uma denúncia, e eu respondo: é uma denúncia.
Reação da platéia
Austregésilo Carrano - Já assisti ao filme várias vezes, mas, até hoje, algumas vezes tenho de sair da sala de tanto que a fita me transpassa para a realidade de lá. Principalmente quando o filme é exibido antes de uma palestra, prefiro não assistir porque me emociono muito. Acho que Laís e toda a equipe foram iluminados ao fazer esse trabalho, porque todos com quem tenho conversado também saem emocionados do filme. As pessoas saem chocadas. Se eu tivesse que dar uma nota para o Bicho, essa nota seria para que o filme representasse o Brasil no próximo Oscar. Nas sessões em que exibimos o filme, já presenciamos cenas maravilhosas da platéia. Pessoas que depois de assistirem ao filme vieram conversar e denunciar os problemas que elas conhecem, seja em relação aos hospitais psiquiátricos, seja em relação às drogas.
Laís Bodanzky - Eu também fico muito impressionada. Os debates dos quais tenho participado são sempre muito fortes e com depoimentos contundentes de pessoas que se identificaram com o personagem e com a dificuldade do diálogo em casa. O público, principalmente o adolescente, identifica-se com isso ou com a questão das drogas, algumas vezes porque tem uma pessoa na família ou um amigo que está vivendo uma situação parecida. Outras vezes, nem é pela questão das drogas nem pela opressão da família, é a dificuldade de um pai em compreender a dificuldade de um filho ou o filho que não entende a realidade do pai. Participei de debates em que os monitores comentaram que também ficaram impressionados pelo fato de a turma de jovens, que normalmente faz a maior bagunça, ter ficado quieta e interessada em participar do bate-papo comigo e com Carrano. Normalmente, eles não participam falando e colocando sua posição quanto às drogas. A droga, a maconha, não aparece no filme como algo bom ou ruim. Ela se apresenta como um fato, uma realidade com a qual temos de lidar. Acho que o diálogo com o adolescente não pode ser simplesmente dizer o que ele deve ou não fazer, você precisa compreender o que está acontecendo com ele. O adolescente é muito esperto.
Austregésilo Carrano e Laís Bodanzky
estiveram presentes no Sesc Santo Amaro, no projeto Cinema em Discussão.