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Claudio Willer
					ÀS AVESSAS (À REBOURS DE J.-K. HUYSMANS): O FILME QUE NÃO EXISTE
	Estava escrito: “montagens visuais”
	Eu li: “montanhas visuais”
	Em seguida, anotei o que faltava naquele
	              outro poema.
	No filme, um personagem dizia que alegria
	              de viver é igual ao alívio pelo adiamento da
	              execução de uma pena de morte
	O vento conduzido pelas nuvens. Uma nova
	              geração de poetas se expressa.
	São lacunas: anotar tudo e adicionar uma fatia de
	              beleza àquela noite e ao dia seguinte na praia.
ENQUANTO RELEIO GINSBERG
	Porque o mundo é mágico.
	Sentado em um canto tranquilo da cidade,
	              instalado em uma cafeteria, sou parceiro das
	              leis secretas que regem o real.
	Você enxerga e eu também enxergo, à frente,
	              atrás, o que foi e o que será.
	Poesia é isso:
	saber olhar
	                            distraidamente,
	para dizer
	                            o que ninguém quer saber.
	
	DIÁRIO INACABADO
	Às vezes o fotógrafo era eu.
	E o mundo se abria em praias ao por do sol ou à
	              contraluz:
	a natureza de braços abertos.
	Tanto mar – eu vi todos os rostos do mar.
	E o perfil das árvores sobre a água.
	A verdade fotográfica é obra do acaso:
	registro do que foi, o belo terrível e sua tristeza.
	Nunca mais poderei olhar para uma foto sem
	              dar-me um nó na garganta – são relatos da
	              solidão em um país parado no tempo,
	e poderiam ser todas de 1930 –
	o tempo é sempre um outro.
DURANTE UMA LEITURA DE POEMAS
	eu que durmo de olhos abertos
	e falo com a eloquência de um surrealista português
	a repetir a mesma pergunta para recolher infinitas respostas
	tomado pelo assombro de não ter mais sombra,
	              apenas um luminoso ossóptico
	o que as mãos fazem: sinais na praia
	as frases são sibilinas e o poema as acompanha
	eu, musculosamente hermético
	              respiro pela sombra
OS POETAS PAULISTAS
	o poema,
	só quando for impossível traduzir um estado
	              interior de outro modo
	só quando for preciso dizer algo inexprimível, como
	              o cheiro de café expresso que tomava conta
	              da Praça Roosevelt a provocar um retorno
	              a invernos de outras cidades
	e para transmitir como foi aquela encenação da
	              Teogonia, do poema sobre os mitos
	              arcaicos, a vida e a morte, o fim e o
	              recomeço como etapas do mesmo ciclo luminoso
	pois a Terra, aquela noite, era um bólido que
	              atravessava acelerado o universo e uma
	              torrente de chuva
	as gotas da noite na partitura dos minutos
	estampada no para-brisa
	              uma tempestade nos encerra no
	              centro do planeta que tem a forma de
	              uma garagem subterrânea
	e os poemas são escritos assim, de madrugada
	       para dizer que nossos dentes são sensuais,
	             nossas mãos são tão leves
	                                       nossos corpos se tocam
	                                                    o vazio é perfeito
	                                                              e o mar está em nós
	– agora devo habituar-me a inesperadas proporções
	              e novas simetrias de estarmos juntos,
	              pois nós nos tornamos a extensão de um
	                            texto de frases entrecortadas
	              sobre o alvor fugidio, esse clarão que nos
	              separa do amanhecer de um dia seguinte
	quando o cheiro de outro corpo, o seu, me
	              acompanhar e vier acrescentar-se à minha biografia
A VERDADEIRA ESCRITA AUTOMÁTICA
	                          quem vê a queimadura
	                                        do ouro
	                                         inteiro?
	                                     Herberto Helder
	é tão difícil empreender a viagem pela escuridão e suas luzes para trazer esses
	              fragmentos de volta: os trechos de um poema criado durante um sonho
	– o caderno ia se transformando enquanto o anotava, suas páginas estavam repletas
	              de ilustrações, umas aquarelas e desenhos meio infantis que mudavam a cada
	              vez que os via
	e também mudavam a cor das letras do texto que escrevia, a tinta, a caneta – como
	              se fosse um camaleão? – do azul ao verde, vermelho, lilás, amarelo, laranja,
	              todo o espectro, até acabar, até sua carga extinguir-se de vez
	e não, já não havia mais escrita, não existia mais caderno, mais nada a não ser um
	              vozerio de festa na rua, saindo de uma inexistente casa em frente,
	chegavam amigos, dois rapazes vindos da festa (também não existem, nunca os vi),
	              eles me levariam de automóvel à cidade para procurar uma nova caneta da
	              mesma escrita multicor e um novo caderno móvel,
	mas o que escrevi durante o sonho permanece: é o poema de uma frase, sempre
	              uma só frase sibilina, multiplicada na horizontal, na vertical, em diagonal, no
	              rodapé da página,
	de todos os modos e em todas as suas cores para repetir:
	vocês nunca mais saberão a previsão do tempo – e restava um eco escrito: vocês
	              nunca mais saberão ... – nunca mais ... e ainda havia uns versos ao redor em
	              português arcaico
	e assim soa a voz da sombra e um mês devora o outro como bólidos estrambóticos
	– depois desse mergulho para rememorar o futuro e antever o passado, retorno com
	              a decisão visionária de escrever sobre a poesia moderna e o sagrado
	e também quero dizer algo sobre ilhas, uns Açores e Baleares e ainda haverá mais
	              poemas
	e tudo será refinado, joeirado, sublimado
	e tudo estará bem
	e tudo será belo
	como umas roupas em um varal ao sol do meio-dia
	balançando docemente ao vento
	enquanto vamos nos acercando ao ouro do tempo
Claudio Willer é poeta, ensaísta, tradutor e doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), onde também completou pós-doutorado. É autor de Os Rebeldes: Geração Beat e Anarquismo Místico (L&PM, 2014), Manifestos, 1964-2010 (Azougue, 2013), e Estranhas Experiências (Lamparina, 2004), entre outros livros.