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Irreverência sem limites

 

Uma das estrelas do Dzi Croquettes, o coreógrafo Lennie Dale deu força ao grupo, trazendo sua experiência internacional para a cena cultural brasileira
 

Paradoxo – ou exatamente o que o momento histórico do Brasil pedia. Assim pode ser definido o ímpeto de um grupo performático que começou a se apresentar, na década de 1970, nos teatros de São Paulo e do Rio de Janeiro. Não tinham vínculo familiar, mas se chamavam, sim, de família. O núcleo era composto por Wagner Ribeiro, artesão, ator e cantor que deu início ao Dzi Croquettes com os amigos Reginaldo de Poli e Bayard Tonelli. A formação completa tinha ainda Cláudio Gaya, Cláudio Tovar, Ciro Barcelos, Rogério de Poli, Paulo Bacellar, Benedictus Lacerda, Carlinhos Machado e Eloy Simões, e eles já faziam performances, cheios de estilo, glamour e purpurina, em um clube de Niterói e no programa de televisão de Flávio Cavalcanti (em outubro de 1972).

Segundo a autora do livro A Palavra Mágica: A Vida Cotidiana do Dzi Croquettes (Editora Unicamp, 2010), Rosemary Lobert, mesmo com a exposição inicial, faltava a eles a independência econômica. Até que o cenário mudou, quando o coreógrafo identificado como “pai” do grupo, o nova-iorquino Lennie Dale, foi seduzido pela proposta artística dos rapazes, entrando para o grupo em 1972. “A história do Dzi torna-se pública e garantirá seu futuro com a adesão de Lennie”, afirma a pesquisadora.
 

Promissor e rebelde

Lennie Dale nasceu no Brooklyn em 1934 e começou a dançar ainda criança, aos 5 anos de idade, tendo aulas de ballet clássico, jazz e dança moderna.

Talentoso e transgressor, era considerado uma das maiores promessas da Broadway, alcunha que ele fez questão de não aceitar. De temperamento difícil, aparecia nas audições para espetáculos vestido de forma tão ousada que as pessoas não tinham coragem de contratá-lo. Não se prendia a nenhum espetáculo, o que lhe rendeu a fama de bad boy da Broadway, conhecida avenida de Nova York onde se encontram os teatros e as superproduções que são rota do mainstream cultural da cidade.

Mudou-se para Londres nos anos 1950, onde continuou sua trajetória. O local serviu de ponto de partida para temporadas europeias e até uma apresentação em parceria com Gene Kelly (1912-1996) – dançarino e coreógrafo responsável por uma das cenas mais clássicas do cinema musical, em Cantando na Chuva (1952) –, que foi ao ar na televisão italiana.
 

Antes de Dzi, depois de Dzi

A vinda para o Brasil se deu nos anos 1960, motivado por um convite feito pelo empresário da noite carioca Carlos Machado. O pedido era que Lennie coreografasse a peça Elas Atacam pelo Telefone, encenada na boate Fred’s. Na época, começou a frequentar o Beco das Garrafas, em Copacabana, reduto de boêmios e insones.

Falando português com forte sotaque inglês – que nunca perdeu –, Lennie era apaixonado por música brasileira, como bossa nova e samba-jazz, e logo se tornou figura popular no cenário artístico carioca, não só pela personalidade, mas pelo talento. Foi amigo de Gilberto Gil, que se dizia estimulado por sua ousadia. De Elis Regina foi uma das influências confessas. Rígido e disciplinado, como bailarino e coreógrafo, possuía domínio técnico de qualquer espetáculo de que participasse. Cenário, som, luz, nada era um detalhe.

Profissional dedicado, exigia o mesmo afinco e seriedade de quem o cercava. Em cena nada podia dar errado. O corpo devia estar sob domínio. Se na dança tudo era sério, na vida pessoal, nem tanto, mas o fato é que seu profissionalismo e determinação mudaram a trajetória dos Dzi. Chegou a afirmar que a experiência lhe pareceu estranha no começo, pois não tinha a espontaneidade dos outros membros do grupo.

Integrante do Dzi Croquettes, Bayard Tonelli relembra que antes do Dzi o teatro trazia grandes espetáculos de cunho político que apresentavam o problema, “mas não sugeriam uma saída”. “Lennie Dale, estrela maior que tanto influenciou as artes brasileiras por meio da dança, teatro, música, trouxe sua formação profissional para que pudéssemos nos denominar internacionais, trabalhando em cima das características de cada um”, observa Bayard. Lennie trouxe sua experiência em palcos internacionais para a cena brasileira, inovando e estruturando o grupo, que no começo propunha-se um conjunto musical.


Noite paulistana

Em 1973, começaram temporada em São Paulo na boate Ton-Ton e no Teatro Treze de Maio. O espetáculo ficou marcado por ser a primeira vez em que homens vestindo roupas tradicionalmente femininas se apresentavam na região. Mesmo que os anos 1970 tenham sido marcados por trabalhos inovadores, como o de David Bowie, e pelo Glam Rock – manifestações musicais que propunham a intersecção do feminino e do masculino –, no Brasil a liberdade criativa e a subversão do Dzi Croquettes coincidia com o período mais duro da ditadura militar, e a postura vanguardista era, para muitos, um abuso.

Ousadia certeira, o período de apresentações no Teatro Treze de Maio (de maio a novembro de 1973) garantiu a todos os participantes – e não somente a Lennie Dale, que costumava ter pagamento garantido nos shows – a independência financeira.
 

Volta ao mundo

Depois do sucesso em São Paulo, Lennie Dale, que desde muito cedo tinha o desejo de viajar pelo mundo, fez as malas com os amigos do grupo e seguiu para a Europa. Foram de navio para Portugal, país recém-saído da ditadura Salazarista, numa temporada não muito bem-sucedida. Em seguida, rumaram para a França, em 1974, onde fizeram sucesso. Mas não foi fácil. Inicialmente boicotados pela imprensa local, os brasileiros conquistaram o respeito de Liza Minelli, que reverteu o jogo em favor dos Dzi Croquettes. A atriz havia conhecido e trabalhado com Lennie nos anos 1960, quando ele coreografou a cena de abertura do filme Cleópatra (Rouben Mamoulian e Joseph L. Mankiewicz, 1963). O dedo da atriz ajudou e mudou a recepção que os brasileiros tiveram no exterior, popularizando-os. Em 1974, Liza estava em Paris e levou vários amigos – entre eles Catherine Deneuve e Omar Sharif – para assistir ao espetáculo, que logo caiu nas graças do público francês.

Após a temporada europeia, o grupo optou por não continuar a excursão e não aceitou uma proposta para se apresentar nos Estados Unidos, retornando ao Brasil. A volta foi turbulenta e teve como reflexo o desentendimento entre Lennie Dale e Cláudio Tovar. Uma discussão sobre o cenário do espetáculo, similar a tantas já ocorridas entre os amigos, resultou no fim da formação original do grupo (1976), que voltaria a se reunir novamente apenas em 1991.

A reunião nos anos 1990 pode ser vista como uma despedida. Lennie Dale estava doente e pediu que o coreógrafo e diretor Ciro Barcelos organizasse a montagem, pois ele não tinha mais condições físicas.

O bailarino que serviu de inspiração para artistas de diferentes gerações, introduziu a noção de ensaio na MPB e coreografou a bossa nova, a qual antes dele não era entendida como “música para dançar”, sofreu as consequências da Aids por dois anos e passou seus momentos finais no Coler Hospital, em Nova York, onde morreu em 1994.
 

Fúria antropofágica

Lennie também se preocupava com o que envolvia o pré-show. Para o performer e coreógrafo Thiago Granato, o que o motivava em busca dessa renovação da performance era a sua natureza antropofágica: “Foi um artista antropofágico por natureza, tinha um poder enorme de se apropriar do que estava ao seu redor, processando e devolvendo para o mundo uma forma particular de fazer arte. Tecnicamente rigoroso, para ele era muito importante ensaiar, preparar e pensar em todos os detalhes antes das apresentações. Ele era minucioso e exigente, isso fazia parte das suas motivações”, contextualiza Granato, autor do espetáculo Treasured in the Dark (Apreciado no Escuro).

“O que fascinava em Lennie era a fúria com a qual se dedicava ao trabalho e a perfeição da realização de suas criações, era o profissionalismo levado à exaustão!”, diz Bayard Tonelli. “Quando estava em cena era como se fosse a única e última apresentação, buscava dar o máximo, e nos cobrava isso! Às vezes entrava em conflito com a acomodação aos nossos limites. Queria sempre que fôssemos além.”

Limite não existiu para o coreógrafo, que fez parte do grupo artístico mais abusado que o Brasil já viu.

 

Fases de brilho

Estrela de programa infantil, bailarino da Broadway, coreógrafo de sucesso, Lennie Dale fez de tudo e mais um pouco


Precoce, o coreógrafo já era experiente quando veio morar no Brasil e, como diz o performer Thiago Granato, contaminar o contexto artístico daquela época. “Não poderia ser diferente, porque quando Lennie chegou ao Brasil já tinha a experiência de apresentador infantil de um programa de TV, além de cantor, bailarino da Broadway e coreógrafo. Toda essa trajetória fazia dele esse profissional preparado, especial e inovador”, enfatiza. Veja a seguir algumas das fases de Lennie Dale.

• Estrela Infantil (Década de 1940): aos 7 anos era a estrela do programa de TV infantil “Star Lime Kids”, do qual Connie Francis, cantora de sucesso nos anos 1950, também participava.

• Broadway (Década de 1950): Fez fama na Broadway, para o bem e para o mal, pois dividia opiniões. Participou do musical West Side Story (Amor, Sublime Amor – 1959), mas por ordem do diretor ficou de fora da versão cinematográfica.

• Bom de gogó (Década de 1960): Era coreógrafo dos espetáculos de Elis Regina, assumidamente uma de suas maiores influências no meio artístico. Dividiu o microfone com ela em 1969 no Rio de Janeiro, cantando Me Deixa em Paz (Ivan Lins). Gravou, em 1965, o LP Lennie Dale. Dois anos depois, em 1967, lançou, com o Trio 3D, o LP A 3ª Dimensão de Lennie Dale.

• Amigo dos amigos (Década de 1970): Influente, ao chegar ao Brasil contribuiu para que a bossa nova fizesse jus ao nome e coreografou o estilo musical, sugerindo a Sérgio Mendes a presença de dançarinas durante os shows.  Além de trabalhar no cinema, o que lhe rendeu a amizade de Elizabeth Taylor, também atuou como coreógrafo na Rede Globo.

 

Dance, dance, dance

Espetáculos trazem conceitos e estilos diversos para a programação do mês


O performer Thiago Granato imaginou como seria a parceria entre os coreógrafos Hijikata Tatsumi (Japão, 1938-1986) e Lennie Dale (Estados Unidos-Brasil, 1934-1994) no espetáculo Treasured in the Dark (Apreciado no Escuro), em cartaz no Sesc Pompeia durante fevereiro. Para ele, a escolha de ambos se fez a partir de uma lista de nomes e da criação de pares que poderiam se encaixar no conceito desenvolvido para o solo: “Eu estava procurando uma dupla de coreógrafos falecidos para colaborar com a criação do primeiro solo da trilogia COREOVERSAÇÕES. Então fiz uma lista de nomes pelos quais eu sentia certa atração artística, além do desejo de um dia ter trabalhado ao vivo. Comecei a criar pares e perceber que tipo de tensão esses pares produziam. Ao colocar Hijikata e Dale ‘lado a lado’ fiquei interessado pelo atrito entre as diferentes culturas (Japão X Brasil) e estéticas (Butoh X Modern Jazz)”, explica Granato, que, em paralelo, ministrou workshop sobre metodologia de criação do espetáculo.

O mês de março também reserva boas pedidas para o público que acompanha a programação de dança. No Sesc Pinheiros, as sugestões são Punch (de 11 a 20 de março), primeiro trabalho do Grupo +, que tem como inspiração o som do filme Embriagado de Amor, do diretor Paul Thomas Anderson, e Música e Concerto (de 22 a 30 de março), que apresenta o diálogo entre a bailarina e coreógrafa Dudude Herrmmann e o violonista Renato Motta, promovendo o encontro da dança com a música.

Já no Sesc Santana, como parte do projeto De|Generadas há a intervenção Coreografia (de 1º a 30 de março), de Clarissa Sacchelli, artista que atua principalmente no campo da performance/dança, e a apresentação única do espetáculo Encarnado (23 de março), da dançarina e atriz Luanna Jimenes.

Acompanhe a programação completa no portal Sesc São Paulo.