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Imune ou impune?

CIBELE BUORO

A imunidade, prevista na Constituição republicana de 1891, é um direito legítimo do parlamentar. Graças a ela, ao manifestar sua opinião ou ao registrar seu voto, o deputado ou senador não pode sofrer processo judicial, desde que relacionado aos atos praticados no exercício do mandato. Mas na política brasileira, eivada de fisiologismo, privilégios e nepotismo, como identificar com precisão a imunidade? Como separar o joio do trigo, e não confundi-la com o privilégio da impunidade?No exercício do mandato, o parlamentar não poderia exercer, de fato, suas funções políticas idoneamente se não estivesse protegido. É uma garantia que existe em todas as Constituições do mundo. "Não se trata simplesmente de imunidade, mas de absoluta intangibilidade do deputado no exercício do mandato", ensina o professor Celso Campilongo, da Universidade de Lecce, na Itália, intangibilidade respaldada, no entanto, "exclusivamente por pressupostos políticos". O jurista Ives Gandra da Silva Martins concorda: "O deputado tem o direito de ser inviolável no seu mandato, e a imunidade deve estar vinculada exclusivamente ao exercício parlamentar. Fora disso, ela não tem razão para existir".

A imunidade é, portanto, essencial à democracia. Entretanto, ela gera controvérsias mesmo entre doutores no assunto. A causa disso é o parágrafo 1º do artigo 53 da Constituição de 1988, que diz: "Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Casa". Um primor de abrangência. E verdadeira fonte de dúvidas e polêmica, segundo o deputado estadual de São Paulo Pedro Dallari, do Partido Socialista Brasileiro (PSB). Em sua opinião, o uso indevido da imunidade parlamentar e a falta de decoro no exercício do mandato comprometem o desempenho e a imagem do Congresso. É a imunidade a serviço da impunidade. A solução, sugere o deputado, é alterar a Constituição e estreitar as regras que regem o instituto da imunidade, exigindo do sistema político - Câmara Federal, Senado, Assembléias e Câmaras Municipais - que autorize os pedidos de processo contra seus membros. Processos, ele lembra, que são via de regra protelados ou até "esquecidos".

É a falta de limites precisos, portanto, que deixa a imunidade muito próxima da impunidade e muitas vezes faz com que uma se confunda com a outra. Isso acontece quando o parlamentar faz uso indevido do privilégio. "O pior não é a existência do privilégio, mas do abuso de poder", diz o jurista Celso Bastos.

A imunidade parlamentar estende-se a três esferas - imunidade material, processual e criminal. Celso Bastos atribui à imunidade processual, prevista no parágrafo 1º do artigo 53 da Constituição, uma dose de exagero. As falhas começam já no caput do mesmo artigo, segundo o qual deputados e senadores são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos. "Não interessa o que fizeram, os parlamentares não poderão ser presos. Não há condições de conduzi-los a um processo penal. Muitas vezes necessita-se da prisão preventiva, mas tudo isso está proibido", explica Bastos.

No caso da imunidade processual, é irrelevante analisar se o ato praticado está ou não atrelado ao exercício do mandato parlamentar, explica Dallari. A Constituição determina que, exceto nos casos de flagrante de crime inafiançável, a prisão do parlamentar e a instauração do processo dependam essencialmente de autorização do Legislativo. Apenas a imunidade civil - que se refere às relações de natureza comercial, como as indenizações - não requer prévia autorização do Congresso.

Além disso, o parlamentar também dispõe de privilégio de foro. Caso haja autorização do Parlamento para o processo, ele será julgado no Supremo Tribunal Federal (STF), e não no Tribunal de Primeira Instância da comarca onde o crime aconteceu.

Excesso de defesa

Na verdade, não existe impedimento para que o parlamentar seja processado, julgado e eventualmente condenado. O que ocorre é que, por uma questão de corporativismo, as Casas Legislativas usualmente não autorizam os processos. Assim, a imunidade parlamentar, em si um instituto importante, passa a ser mal utilizada, dando origem à impunidade.

Na consolidação da Constituição Federal, em 1988, os artigos referentes à defesa dos acusados foram bastante ampliados. São mais de 72 os dispositivos dedicados aos parlamentares e aos cidadãos comuns, relativos à proteção diante do Estado. Segundo Ives Gandra, a preocupação dos constituintes foi garantir mecanismos de segurança e direito de defesa que não existiam durante o regime militar, como as defensorias públicas (advogados cedidos pelo Estado para quem não tem recursos para se defender).

Mas o direito de defesa ampliado induz à impunidade, afirma o jurista. Embora o direito à ampla defesa seja de toda a sociedade, entre nós ainda impera a desigualdade. Os parlamentares são invioláveis em seu mandato, podem se defender no Poder Judiciário e por isso dispõem de maior defesa que o cidadão comum, explica o jurista.

Mais: no caso dos parlamentares, a punição fica a cargo dos membros da própria corporação política, e a Justiça, como terceiro poder, tem competência limitada para intervir na apuração e investigação dos delitos. Entram em cena, então, os interesses partidários e pressões da opinião pública, explica Bruno Wilhelm Speck, doutor em ciência política da Universidade de Freiburg, na Alemanha, que desde 1995 estuda a corrupção brasileira. "O partido pode forçar uma punição para manter a própria imagem imaculada. Mas pode defender um integrante de sua bancada de uma acusação para não produzir divergências internas e assim mostrar coesão", diz.

Segundo Celso Bastos, há atenuantes para a proteção exagerada: as regras que definem o instituto da imunidade parlamentar são muito antigas, diz. Foram pensadas "com boa-fé, e não percebo originalmente um corporativismo", diz ele. Segundo o jurista, inicialmente houve o intuito de garantir o exercício da atividade parlamentar, que necessitava de autonomia para enfrentar o Poder Executivo - sempre muito poderoso -, em detrimento de uma legislação frágil. "O que se percebe é que no decorrer do tempo a imunidade para os devidos fins foi esquecida", diz Bastos. E ela acabou sendo utilizada para obter privilégios particulares. "Hoje temos uma vida parlamentar reles, se compararmos as acusações que Carlos Lacerda levantou contra Getúlio Vargas, dispondo da imunidade parlamentar", diz ele.

O sistema político corporativista e desvirtuado começou com a Constituição de 1988, na opinião do jurista. "Todos os males políticos de hoje foram aprovados na Constituinte", diz ele. As maiores evidências disso são os salários e aposentadorias dos parlamentares, as vantagens financeiras de que desfrutam, os rendimentos indiretos, as despesas por conta do Estado, a nomeação de assessores de gabinetes, o nepotismo e o fisiologismo.

Segundo Campilongo, o poder deixou de ser representação e passou a ser um patrimônio. E, na defesa do patrimônio, ganham força privilégios e interesses particulares. Dessa forma, o corporativismo passou a fazer parte da rotina administrativa do país. Campilongo cita como exemplo a falta de regulamentação de legislações conquistadas a duras penas pela sociedade civil, como o Código de Defesa do Consumidor. A dificuldade de regulamentar os códigos e legislações é evidente tentativa de anular direitos sociais. "Há uma luta muito intensa no Congresso contra o Código de Defesa do Consumidor, na tentativa de fragilizá-lo", diz o advogado. "É a reação da elite patrimonialista aos avanços da sociedade."

Para Speck, a ausência de legislação específica que regulamente a atividade parlamentar também favorece o corporativismo. O cientista político alega que o conceito jurídico de decoro parlamentar da Constituição Federal é amplo, permitindo enquadrar manifestações verbais, prática de venda de votos no Congresso e outras inúmeras transgressões. Assim, torna-se uma regra que não pode ser implementada, pois depende de muita interpretação e dinâmica política.

Elite impune

"O corporativismo é próprio da natureza e de toda agremiação humana desde o início da história", explica Ives Gandra. De fato, em todos os setores sociais há corporativismo, um fenômeno difícil de ser combatido. Somente a transparência dos atos políticos e a vigilância da população poderiam reduzir a impunidade, já que eliminá-la é impossível, na visão do jurista.

Avaliar o grau e a extensão da impunidade no Brasil não é tarefa simples. Principalmente porque ela não se limita aos parlamentares. "No Brasil é muito raro alguém da elite econômica ser punido", diz Dallari. Aliás, a extrema desigualdade social e de privilégios marca a impunidade no país desde os tempos coloniais. A socióloga Walquíria Domingues Leão Rego explica: a cultura e o tecido social brasileiros foram estruturados sob uma elite escravocrata. Daí a existência de um sistema jurídico que é "árduo para com os pobres, moroso e omisso na punição aos ricos". Os parlamentares são mais beneficiados: protelam ainda mais a questão, pois têm o aval do Regimento Interno do Congresso, o segundo documento do país em ordem de importância, pois define detalhes e regulamenta as entrelinhas da Constituição. Ele é elaborado pelos próprios parlamentares, o que explica a dificuldade de punição para os que cometem delitos.

Evidentemente, o uso indevido da imunidade parlamentar no exercício do mandato compromete o desempenho do Congresso. E a sua imagem diante da opinião pública, segundo pesquisa do professor Speck.

Mas há outros aspectos que depõem contra os parlamentares. A falta de quórum para a votação das reformas, como a da previdência e a administrativa, por exemplo, demonstra a ausência de compromisso com a população, uma vez que as mudanças são determinantes para o bom desempenho da política e da economia do país. "Os parlamentares defendem direitos particulares, e as reformas não lhes interessam", diz Celso Bastos. E explica: "O regime político brasileiro é baseado na massa de funcionários públicos e integrantes da sociedade de economia mista que compõem o corpo democrático do país". Na luta pela sobrevivência num país com sérias dificuldades como o Brasil - que tem no fantasma do desemprego um inimigo social -, o funcionalismo público é o grupo civil que recebe mais atenção parlamentar. Afinal, trata-se de um reduto eleitoral. Enquanto isso, os outros setores da população tornam-se vítimas indiretas de parlamentares estatizantes.

Segundo Speck, a solução mais eficiente para a moralização política é a escolha de representantes nas eleições. "Um processo eleitoral que está marcado pela compra de votos para apoio à reeleição não é o mais adequado para escolher candidatos íntegros e dignos para o exercício da representação popular", afirma o professor. A implantação de estatutos jurídicos que impedissem candidatos cassados de retornar aos cargos eletivos talvez fosse um bom começo para recuperar a moralidade parlamentar.

O controle dos parlamentares no mundo

Mesmo nos países mais desenvolvidos, como Itália, Inglaterra e Alemanha, a questão da impunidade só recentemente foi solucionada. No caso italiano, os sistemas político e jurídico estiveram interligados durante um longo período. Aos poucos, a magistratura italiana foi angariando autonomia e independência em relação ao sistema político.

Nos anos 70, o combate ao terrorismo foi o passo fundamental rumo à reorganização do estado de direito na Itália, uma luta que marcou a legitimidade e credibilidade da magistratura italiana perante a sociedade. Esse trabalho se estendeu pelos anos 80, dessa vez voltado ao combate à corrupção administrativa do Estado.

Restava à magistratura italiana a tarefa de moralizar o sistema político. Para isso empenhou-se na operação "mãos limpas", nos anos 90. O Tribunal de Roma era conhecido na Itália como "Porto da Neblina", um local onde os processos se perdiam. "Era uma situação de extrema impunidade e corrupção, não muito distante daquilo que tradicionalmente se imagina como sendo típico de sistemas políticos e jurídicos da América Latina", explica o advogado Celso Campilongo.

Na Alemanha e em outros países europeus não existem regulamentos ou leis que ditem regras sobre o exercício político de parlamentares. Os próprios Parlamentos criaram regras que exigem transparência nas articulações políticas, como, por exemplo, o registro e a regulamentação das atividades de lobby.

Na Inglaterra, desde a criação do cargo de ombudsman no Parlamento, em 1995, é publicado um relatório anual sobre o comportamento dos membros da Casa. Não compete ao ombudsman julgar, mas graças a ele atitudes e articulações políticas duvidosas são lembradas pela população na hora de votar.

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