Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Fora de controle

LOURENÇO MOTTA

O interesse e a importância de tudo o que diz respeito à televisão são proporcionais ao espaço que ela ocupa na vida de cada um. Ou seja, são enormes, aqui e em qualquer parte do mundo. Foi-se o tempo em que ela era apenas a babá eletrônica, que substituía, nos cuidados e atenção para com os filhos, a mãe que se libertava do trabalho doméstico, se afirmava profissionalmente e engordava o orçamento doméstico em pé de igualdade com o marido. Ela se tornou rapidamente muito mais do que isso. Alargou seu campo de influência e hoje se pode dizer que virou a babá da família inteira - pai, mãe, filhos. É a principal forma de lazer da massa da população, sem distinção de ordem econômica ou social, que chega em casa exausta tanto pelo trabalho quanto pelas longas distâncias percorridas diariamente. Ficar em casa diante da telinha, por preguiça ou falta de opção, virou hábito.

O problema é que essa não é uma babá de bom nível, nem de bons modos. Tende a ser como os personagens de filmes que a TV repassa regularmente, depois que esgotam sua carreira no circuito dos cinemas - ou do tipo Débi e Lóide ou então um daqueles recheados de violência gratuita, correrias infernais pelas ruas de grandes cidades ou rodovias americanas, com batidas e capotagens em série, suspense barato mas de altíssima tensão, sexo à vontade e cada vez mais cru. Quando não são filmes, são novelas que vão ficando parecidas com eles.

Quando não são novelas, são programas de auditório ou policiais nos quais se mistura um pouco de tudo aquilo. E, entre uma coisa e outra, sorteios e mais sorteios, de todo tipo. A televisão não é só isso. Ela tem outras opções, boas mesmo, como shows musicais, até alguns concertos de música erudita, de vez em quando, com peças bem escolhidas para atingir o chamado grande público. E boa dose do velho e saudável esporte, a começar pelo futebol.

Mas a televisão, fora os canais educativos, que são um caso à parte, é principalmente aquilo. Não se trata de uma doença só brasileira. Ela é universal, e está presente nas melhores famílias do mundo - americanas, francesas, inglesas, alemãs, italianas, russas, japonesas e por aí afora. A única coisa que nos distingue - além de aqui, em geral, aqueles vícios serem mais acentuados - é a passividade com que vamos assistindo à babá virar governanta tirânica de filme de terror e tomar conta da casa, ao passo que as outras famílias, mais precavidas, já começam a abrir os olhos.

Perigo real

Os críticos da televisão não exageram quando chamam a atenção para o risco de o seu imenso poder como meio de comunicação eletrônico de massa ser exercido de forma negativa. Sua capacidade de influir na formação das atitudes e comportamentos, sobretudo das crianças e dos jovens, parece incontestável.

Ela tem hoje uma presença na vida da população comparável à dos pais, dos educadores e dos colegas de trabalho. É por isso que a televisão não é um negócio como qualquer outro. É uma concessão de serviço público que exige dos que a detêm compromissos bem claros, expressos na Constituição.O artigo 220, parágrafo 3º, inciso II, diz que compete à lei federal "estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no artigo 221", que por sua vez, entre outras obrigações, impõe às emissoras a de que seus programas observem o "respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família". A liberdade de pensamento, criação, expressão e informação não deve sofrer qualquer restrição, como diz o mesmo artigo 220, desde que observadas as obrigações ali citadas. Não se trata, portanto, de uma liberdade total.

Há muito que pesquisas sérias, feitas sobretudo em universidades americanas e européias, tentam determinar o grau de influência da televisão e os valores que ela veicula. Uma das mais recentes, sobre a violência na televisão, foi promovida pela Associação Nacional de Televisão a Cabo dos Estados Unidos, com o apoio de quatro universidades. Um trabalho que, pelas instituições envolvidas, fica acima de qualquer suspeita de parcialidade ou má vontade para com as emissoras, e por isso merece atenção. Durante três anos, os pesquisadores assistiram a cerca de nada menos que 10 mil horas de programas transmitidos entre 6 e 23 horas, sete dias por semana, pela televisão tanto aberta como a cabo.

Primeiro, o aspecto quantitativo do trabalho. A dose de violência veiculada pela televisão americana assusta. Do total dos programas, 61% foram classificados como violentos. Com a agravante de que, deles, 67% foram transmitidos no chamado horário nobre, entre 18 e 21 horas, ou seja, aquele que atinge as platéias mais fiéis e numerosas. Todos os que assistem à televisão no Brasil com regularidade podem constatar, na prática, que no país a situação não é muito diferente.

O aspecto qualitativo, aquele que trata dos valores veiculados, assusta tanto ou ainda mais que o outro. Nos filmes antigos, os bandidos eram quase sempre punidos e os mocinhos, premiados ou recompensados de alguma forma. A situação mudou. Apenas em 40% dos casos os bandidos recebem algum tipo de castigo. E mais: também 40% dos personagens violentos aparecem como heróis ou algo próximo disso. A forma como a violência é apresentada é outro dado perturbador. Na metade dos casos, as conseqüências da violência - ferimentos, morte ou sofrimento das vítimas - simplesmente não são mostradas. Ela se transforma, assim, em algo neutro, praticamente inofensivo. Ou, na avaliação de um dos pesquisadores da Universidade da Califórnia, "essas cenas ensinam às crianças que a violência pode ser desejável, necessária e indolor". A distinção entre o bem e o mal, com a recompensa para um e o castigo para o outro, vai desaparecendo perigosamente.

Também no que se refere a esses valores, ou antivalores, veiculados pela televisão, pode-se dizer que os resultados da pesquisa não se distanciam do que se passa no Brasil. Não só porque as nossas emissoras - como de resto as de todo o mundo - compram e transmitem em quantidade cada vez maior os enlatados americanos, como também porque as produções nacionais cada vez mais os imitam, por verem neles uma garantia de sucesso fácil. Até as doses de violência e sexo nas novelas, que antes eram programas tipicamente familiares, com tramas românticas de poucas ousadias, têm aumentado.

A reação da platéia

A resposta mais freqüente das emissoras aos protestos contra sua programação tem sido a de que ela corresponde ao que deseja a imensa maioria dos telespectadores. Para comprovar, exibem os famosos índices de audiência, que de fato sobem na mesma velocidade com que crescem as doses de violência e sexo, assim como as cenas de mundo cão de programas de auditório. Não haveria, portanto, prova mais evidente de que elas apenas satisfazem os anseios da platéia. O problema está longe de ser tão simples assim. As pesquisas de opinião demonstram, sem margem a dúvidas, que a mesma população que faz crescer aqueles índices de audiência rejeita maciçamente os excessos cometidos.

Pesquisa feita pelo Ibope em meados do ano passado, por encomenda do Ministério da Justiça, indica que 75% dos brasileiros das mais diferentes classes sociais querem a criação de mecanismos de controle externo das emissoras como meio de evitar a difusão de programas considerados constrangedores ou prejudiciais às crianças e adolescentes, como os que exibem cenas de violência, sexo e uso de drogas. Mais de 80% acreditam que a televisão exerce influência na formação dos filhos, 30% acham que ela é benéfica, mas para 41% ela é prejudicial, por razões que vão desde o descontrole dos horários de estudo até a formação moral. Os programas que mais incidem em abusos, com cenas ou assuntos inadequados a crianças e adolescentes, são as novelas (52%), os filmes (51%) e os programas policiais (34%).

A população vê os filmes, novelas e programas com cenas de violência e sexo pela conhecida atração do proibido, ou pela tentação do pecado, como preferirão outros, mas sabe que isso não é o certo, principalmente para seus filhos. E sabe com tanta firmeza e convicção que pede controle sobre as emissoras. Para 64% dos entrevistados, ele deve ser feito por meio da classificação dos programas por idade e horário; 32% vão mais longe e preferem a censura, embora rejeitem o controle estatal nos moldes existentes durante o regime militar.

Em palavras mais simples, o que a população pediu nessa pesquisa é simplesmente que se cumpra o que estabelece a Constituição, ou seja, que os programas observem "o respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família".

O que fazer?

Há vários tipos possíveis de controle, um dos quais é o exercido pelo Estado. Entre nós, a julgar pela manifestação da população na pesquisa citada, esse controle em princípio não iria além da classificação dos programas por faixa etária e horário. Dificilmente o Congresso aprovaria lei que ultrapassasse aquele limite. A questão que se coloca é saber que pessoas seriam escolhidas para fazer a classificação e com base em que critérios. Critérios que, como se sabe, nesse caso são sempre subjetivos e, portanto, dão aos "censores", na prática, um poder muito grande. Além disso, é preciso considerar que, sempre que o Estado intervém nesse domínio, existe o risco de ele, aos poucos, ir além do inicialmente previsto e alargar as restrições, criando fatos consumados.

Outra opção é o autocontrole resultante de um acordo entre as emissoras e o Estado. Há nesse terreno dois exemplos. O primeiro é o da Itália. Para evitar que o Estado se visse obrigado a intervir por pressão da sociedade, as três grandes redes de televisão - a estatal RAI e as particulares Mediaset e Telemontecarlo - decidiram adotar um sistema de auto-regulamentação.

Segundo os termos do acordo assinado na presença do primeiro-ministro Romano Prodi, em novembro do ano passado, elas deixarão de transmitir - diariamente, das 7 às 23 horas - cenas, imagens ou mesmo notícias particularmente brutais, vulgares ou chocantes, capazes de prejudicar o desenvolvimento psíquico e moral das crianças ou adolescentes. Essas regras aplicam-se até mesmo aos telejornais e mensagens publicitárias.

O segundo exemplo é o dos Estados Unidos, onde, depois de vários anos de discussão com a população sobre a melhor maneira de conter os abusos da televisão, o Comitê Federal de Comunicação, órgão que regulamenta as telecomunicações, decidiu tornar obrigatório o chamado V-chip, em acordo selado com as três principais redes. Trata-se de um dispositivo eletrônico que, até o ano 2000, permitirá aos pais bloquear o acesso a programas que julguem inconvenientes a seus filhos.

Finalmente, há aquele que talvez seja o melhor sistema, com a vantagem de que já funciona com êxito no Brasil para o setor publicitário. É o autocontrole exercido pelo Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar). Inspirada no Conar, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) aprovou em julho de 1993 um Código de Ética, com regras que em princípio deveriam assegurar o fim dos excessos. Infelizmente, pela ausência de dispositivos que lhe permitam punir as emissoras que contrariem os princípios que fixou, o código da Abert, ao contrário do Conar, foi até agora um malogro total. Tanto é assim que os abusos até aumentaram, desde então, em vez de diminuir.

A experiência de países como os Estados Unidos e, principalmente, a Itália, para ficarmos apenas nos exemplos citados - que ninguém acusaria de cometer atentados à liberdade de expressão, espantalho sempre agitado entre nós quando se fala em conter os abusos da televisão -, mostra que a pressão da sociedade leva fatalmente a formas de controle da programação capazes de domesticar a babá eletrônica e ensinar-lhe bons modos. Tudo indica que ou a televisão brasileira adota uma forma de autodisciplina - seja a italiana, seja a americana ou uma inspirada no Conar, mas que não seja o inócuo Código de Ética da Abert - ou acabará, mais dia menos dia, às voltas com o controle estatal que o governo, cansado de esperar, já ameaça impor por meio do projeto da Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa, a ser enviado brevemente ao Congresso.

 

Comentários

Assinaturas