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Álcool: o vício tolerado

Matéria publicada na edição nº 317 de "Problemas Brasileiros" (setembro-outubro/96)

IMMACULADA LOPEZ

O alcoolismo, tão antigo quanto o vinho, evidentemente não é um problema exclusivo do Brasil. Talvez amparado pela relativa tolerância do organismo e da sociedade ao álcool, em comparação a outras substâncias que também causam dependência química, o vício em bebidas alcoólicas segue produzindo vítimas no mundo inteiro sem receber a atenção merecida.

Em alguns países esse quadro é atenuado por políticas voltadas especificamente ao alcoolismo, mas no Brasil o caso é grave. O Ministério da Saúde não tem programas especiais para a prevenção e tratamento do problema. Nem poderia, pois nunca o estudou em profundidade: não existem dados confiáveis a respeito do alcoolismo no país.

Essa preocupante constatação foi o ponto de partida desta matéria, que reuniu informações e opiniões de médicos, psicólogos, responsáveis por organismos públicos, entidades de classe, empresas, fabricantes e outros, com o objetivo de traçar um panorama dos vários aspectos do problema e das iniciativas existentes para enfrentá-lo.

O roteiro da reportagem baseou-se nas conclusões de um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS), que propõe diretrizes para políticas públicas específicas para o alcoolismo. O documento alerta: a preocupação não deve se restringir ao dependente do álcool. O consumo eventual também tem participação em outros problemas graves e demasiadamente freqüentes no Brasil: violência familiar, acidentes de trânsito e no trabalho.

Parte da rotina

Mais uma tarde de domingo e acaba de terminar o jogo na TV. Três a dois! O último gol merece comemoração. Ao lado do futebol e da televisão, entra em cena mais uma paixão nacional: a cervejinha gelada. Antes da feijoada, vem melhor uma caipirinha. Mas, no bar da esquina, ao encontrar os amigos, cai bem até mesmo uma purinha. Ou talvez uma dose de conhaque. Em outros apartamentos, uísque com gelo para relaxar. E, no jantar, nada melhor que um bom vinho. Sem esquecer da sidra no Natal!

Do começo ao fim do ano, as bebidas alcoólicas fazem parte da rotina dos brasileiros. Seu consumo aumentou 25% no ano passado. A venda de uísque, por exemplo, cresceu 37%, comparando 1994 a 1995. A do vinho, 35%. E a da pinga, 1% (que, nesse caso, significa 10 milhões de litros a mais). No total, 1,5 bilhão de litros. Mas a performance que mais tem chamado a atenção nos últimos anos é a da cerveja. No ano passado, o aumento de vendas foi de 27%. No total, 8 bilhões de litros. Assim, o Brasil chegou ao patamar de 44,8 litros de cerveja por habitante ao ano. Embora ainda não seja um nível alto em comparação ao de outros lugares do mundo, é o dobro do que era bebido dez anos atrás. Esses números são motivo de comemoração para alguns e preocupação para outros. O Sindicato Nacional da Cerveja sustenta que o mercado pode e deve crescer ainda mais, mas muitos pesquisadores acreditam que o consumo crescente é perigoso, principalmente entre os jovens. O próprio Conselho Federal de Entorpecentes admite que, embora o principal foco de atenções esteja voltado para as drogas proibidas, os maiores abusos ocorrem com as permitidas - as chamadas drogas legais, entre elas o álcool.

Todos - indústria, universidade, governo - concordam que o consumo abusivo é um problema. Mas será que o álcool merece a atenção apenas no caso dos 5% que são dependentes, entre os 90% que bebem no país? (Os dados são estimados entre a população masculina adulta.) Os principais pesquisadores brasileiros respondem que não. Eles afirmam que a dependência só vai diminuir quando cair o consumo geral. E apontam a ausência de política pública nacional a respeito do álcool, como a preconizada por um relatório recente da OMS.

Desinformação

Com o nome "Política para o álcool e o bem público", o relatório foi publicado em dezembro de 95. "O que o inspirou foi a vontade de transformar conhecimento em ação", explica o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, coordenador da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad), da Universidade Federal de São Paulo. Uma ação que, para ele, está nas mãos tanto do poder público como do comunitário. "Uma comunidade bem informada produz grande diferença", acredita Laranjeira. "E, quando se pensa e fala em álcool, a desinformação é muito grande." A OMS quer, justamente, acender novas luzes sobre o tema e desfazer velhas idéias.

A organização afirma sem hesitar: os problemas com álcool não afetam apenas uma minoria que bebe muito. Não seriam problemas relacionados somente à saúde, mas também à violência familiar, acidentes de trânsito, de trabalho, etc. Situações comuns entre os vários bebedores, não só os dependentes, e que envolvem, além da própria pessoa, quem está ao seu redor em casa, na empresa ou na rua. Os custos sociais com atendimento médico, inquéritos policiais, processos judiciais, queda de produtividade, danos ambientais, etc. também são altos.

Não só as conseqüências, mas a origem do consumo também não se limitaria à pessoa. A OMS adverte que um bebedor leve ou moderado pode se tornar um bebedor abusivo num ambiente onde a bebida é barata, fácil de ser comprada e aceita como parte do estilo de vida normal. Beber não seria apenas uma questão de personalidade ou predisposição genética. Quando o preço da bebida sobe, o consumo cai - e vice-versa. Se há restrições ao acesso, como as relativas aos locais de venda ou idade mínima, o consumo também muda. "O contexto é o maior determinante na decisão de beber", diz Laranjeira. Na verdade, não há um consenso entre os pesquisadores sobre o peso de cada fator, pois ainda não se definiu o que causa o fato de as pessoas beberem nem o porquê da diferença de suas reações.

De qualquer forma, segundo o relatório da OMS, beber é um hábito cultural. Por isso mesmo, ela defende que os problemas com álcool podem ser minimizados através de políticas públicas. O que já foi comprovado em determinados momentos da história recente dos EUA e Europa.

A OMS afirma que é possível alterar as atitudes e comportamento do bebedor através de informação. Mas a política preventiva não pode ser exclusivamente dirigida à minoria dos dependentes. "Não adianta investir em tratamento, se uma lata de cerveja continuar custando o mesmo que uma de refrigerante", alerta Laranjeira. "Uma droga não pode ser regulada pelo mercado", completa.

A entidade internacional propõe várias medidas, como restrições na propaganda e no acesso físico à bebida, projetos nas escolas, campanhas educacionais nas TVs, controle dos motoristas, taxação das bebidas... Entretanto, nenhuma iniciativa isolada provocaria as mudanças desejadas. A OMS aponta a necessidade de cada país definir uma política mista e eficiente.

Essas propostas valem também para o Brasil? Afinal, a OMS se baseou em pesquisas da Europa e da América do Norte. Com essa preocupação, acaba de ser criado um comitê para os países em desenvolvimento. A idéia é fazer uma "fotografia" da realidade local. "Não é possível fazer uma simples transposição das propostas. Não estamos falando de um problema de saúde pública causado pelo mesmo vírus em todos os lugares", explica a socióloga Beatriz Carlini Cotrim, única integrante brasileira do comitê e pesquisadora do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), da Universidade Federal de São Paulo.

Primeiro porre

No Brasil, quase inexistem levantamentos sobre consumo de álcool, sua relação com os vários problemas sociais ou sua alteração a partir de medidas públicas. Mas, por mais que seja desconhecida a real dimensão do problema com álcool no Brasil, sua presença se evidencia. "O brasileiro bebe bastante. Bebe para se divertir, para relaxar, festejar, confraternizar... É um hábito culturalmente tolerado e até estimulado. Ele aprende a beber em casa. Quantos pais não se orgulham do primeiro porre do filho?", relata Beatriz, do Cebrid. A bebida é com certeza uma fonte de prazer, e nenhum pesquisador defende seu desaparecimento.

A solução apontada não é uma lei seca e sim o consumo não abusivo. Segundo os especialistas, os limites devem ficar claros. O primeiro é a idade. Recentemente, foi feito pelo Cebrid um levantamento sobre o uso de drogas entre estudantes de primeiro e segundo graus em dez capitais brasileiras. O álcool e o tabaco se destacaram como as drogas mais preocupantes. Isso leva os pesquisadores a questionarem: "Será que não está ocorrendo uma abordagem errada em relação ao abuso de drogas no país, colocando todos os esforços sobre a cocaína - eleita a droga da década -, e desfocando a atenção do aumento do uso de outras drogas?"

Faltam números, mas os pesquisadores fazem coro: o consumo de álcool entre os jovens está aumentando e é cada vez mais precoce (ver texto abaixo). A constatação vem do dia-a-dia. "É a primeira droga a ser experimentada. Geralmente, quando o adolescente tem 11 ou 12 anos", informa a psiquiatra Sandra Scivoletto, coordenadora do Ambulatório de Adolescentes e Droga do Hospital das Clínicas, em São Paulo. "Isso preocupa muito, pois quanto mais cedo a pessoa começa a beber, mais cedo e rapidamente poderá ficar dependente."

E, para o adulto, quando começa o abuso? "O limite não está nem na freqüência, nem na quantidade, nem no tipo de bebida. O problema vem quando a vida familiar, sexual, escolar, profissional... começa a ser afetada", avalia o psiquiatra Arthur Guerra de Andrade, coordenador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (Grea) do Hospital das Clínicas, em São Paulo.

Questão de saúde

A pessoa deixa de ser um "bebedor social" e passa a ser um "bebedor problema". Não necessariamente no nível físico, mas no psicológico. A pessoa percebe que mudou, se sente culpada, recriminada. Entre os "bebedores problema", alguns podem progredir para o alcoolismo. Ainda não se sabe o que faz uma pessoa ser dependente e outra não. De qualquer forma, há alguns anos, a dependência é encarada como uma questão de saúde e não mais de personalidade. Além da dependência psicológica, o alcoolismo gera dependência física.

Não há apenas um caminho para o tratamento. Terapia, internação, ambulatório, dinâmicas de grupo são algumas das opções. Geralmente, envolvem não apenas a pessoa, mas também seus familiares. Os pesquisadores denunciam o despreparo do sistema público de saúde no Brasil. Não há programas especiais para o álcool nos postos e hospitais em geral. Dessa forma, os poucos existentes, como o do Hospital das Clínicas, ficam saturados.

Paralelamente, a comunidade começa a criar soluções. O trabalho mais lembrado é o dos Alcoólicos Anônimos (ver texto abaixo). Há também projetos pioneiros em escolas, universidades e empresas. Para os especialistas brasileiros e da OMS, essas iniciativas deveriam se multiplicar. Além de ser uma alternativa de tratamento, são um espaço valioso para a prevenção. Eles propõem que as pessoas repensem sua relação com o álcool e percebam como afeta seu dia-a-dia.

Dia de pagamento

A violência familiar, por exemplo, mantém uma ligação perigosa com o consumo de bebidas. "Em 90% dos casos que passam pelas delegacias da mulher, o que desencadeia a agressão é o álcool", afirma a delegada Maria Inês Valente, do Serviço Técnico de Apoio das Delegacias de Polícia de Defesa da Mulher, em São Paulo. De janeiro a julho deste ano, por exemplo, foram 17,5 mil casos de lesões corporais e 9 mil de ameaças de morte registrados no estado paulista.

"Isso não significa que o álcool é a causa da violência. As causas são outras. Mas o agressor geralmente está alcoolizado. E não é um dependente, porque este está tão fragilizado que nem agride mais." Segundo Maria Inês, a história se repete muitas vezes: no dia em que recebe o salário, o homem vai pagar os vales que tinha pedido adiantado, o dinheiro acaba, ele vai até a venda, bebe cachaça fiado, volta para casa, a mulher cobra o dinheiro do salário, a discussão começa, ela é espancada. Entretanto, Maria Inês faz questão de ressaltar que a violência doméstica não se limita às famílias de baixa renda. "Muda a história, muda a bebida, mas a violência é a mesma."

Homem contra a mulher, pais e mães contra a criança. "Quase 70% dos casos de agressão física ou sexual que atendemos envolvem o consumo de álcool", aponta a advogada Lia Junqueira, coordenadora do Serviço de Advocacia da Criança, em São Paulo, com 3,6 mil casos em andamento no mês de agosto. "O álcool não é a causa. Se fosse assim, a solução da violência doméstica até seria simples. Mas, com certeza, para resolver o caso de uma família temos que enfrentar o problema do álcool. Se o agressor bebe, não há como harmonizar a família sem encarar o problema", adverte Lia.

Índice zero

Com a violência no trânsito, a relação é ainda mais estreita. "O alcoolismo é a primeira causa de acidentes no Brasil e no mundo", destaca Fabio Racy, presidente da Associação Brasileira de Medicina de Trânsito (Abramet). "É um perigo que independe do tipo de bebedor. Ele pode ter bebido pela primeira vez ou ser bebedor eventual, o risco é o mesmo", completa.

A Abramet defende o índice zero. Isto é, que não seja tolerada nenhuma quantidade de álcool no sangue do motorista. Atualmente, a taxa legal é de 0,8 g/l. "Nesse sentido, o novo Código Nacional de Trânsito parece que não vai avançar o necessário. No projeto, está definido o índice 0,6 g/l. O que pode ser muito para uma pessoa. A sensibilidade é variável, muito pessoal. Por isso, pregamos o índice zero", explica Racy.

Para os especialistas, beber e dirigir são comportamentos incompatíveis. Na teoria, os próprios motoristas parecem estar de acordo. Mas, na prática, poucos deixam de beber numa festa porque vão dirigir depois ou decidem pegar um táxi porque beberam demais. "Beber e dirigir não é um comportamento que escandaliza", observa a psicóloga Ilana Pinsky, da Uniad. "Muitas pessoas nunca pararam para pensar em alternativas, além de desconhecer a legislação." No estado de São Paulo, por exemplo, há uma lei que proíbe a venda de bebidas alcoólicas nas estradas.

A solução estaria num trabalho educativo constante e em leis mais efetivas. "Ao criar uma lei, deve se saber o que a população pensa. Quando entrar em vigor, ela tem que ser realmente aplicada", conclui Ilana. "Quando uma lei é lançada, o número de acidentes cai. Mas muitas vezes o efeito é só momentâneo, pois não há fiscalização", completa Racy. Pelo menos, fica provado que é possível alterar o quadro de acidentes com medidas apropriadas.

O mesmo pode ser dito em relação aos acidentes de trabalho. "Mais da metade desses acidentes são provocados por pessoas com algum tipo de dependência química", informa a psicóloga Maria Heloisa Bernardo, consultora de dependência química da comunidade terapêutica Bezerra de Menezes, em São Bernardo do Campo (SP), que mantém convênio com quase cem empresas. Além do tratamento, a clínica está se dedicando a um trabalho de prevenção. "Ao estreitarmos o relacionamento com as empresas, percebemos a necessidade de aumentar a discussão sobre a dependência química no ambiente de trabalho (ver texto abaixo), através de cursos e conferências."

A lista de problemas causados pelo consumo de álcool parece ser grande: queda de produtividade, faltas, tensão, mau relacionamento, dificuldade de concentração, quebra de sigilo, além dos graves casos de acidente. Segundo Heloisa, algumas empresas já estão agindo. "O que as impulsiona são os programas de qualidade. Para alcançar a qualidade total, o problema de dependência química não pode ser ignorado." A nova tendência é ir além das campanhas, implantando programas que incluam prevenção, tratamento especializado e reintegração do profissional.

"Simplesmente desligar o funcionário não é interessante nem do ponto de vista econômico", completa o médico Paulo de Abreu Leme, do departamento de medicina preventiva do Sesi (Serviço Social da Indústria), em São Paulo. "Dispensar, contratar e treinar um novo profissional sai mais caro que tentar uma reabilitação do antigo." Melhor ainda é prevenir. "Os custos diretos com auxílio-doença, aposentadoria precoce, internações... são surpreendentes. E podem ser evitados." Há seis meses, o Sesi promove encontros com assistentes sociais, técnicos de segurança e outros profissionais da área. A iniciativa surgiu ao se perceber a carência de informações sobre a forma de lidar com o problema nas empresas.

Vício barato

No trabalho, nas estradas ou em casa, o álcool marca presença. Os especialistas repetem que não propõem a extinção da bebida. Apenas defendem a definição de limites para conquistar mudanças no consumo. Até a indústria não tem como se opor (ver texto abaixo). "Os fabricantes têm que promover um consumo mais responsável. Não podem omitir do consumidor que o abuso causa males, mesmo que isso restrinja o consumo. Se a indústria não respeitar esses limites, não vai sobreviver. É melhor ela se autocontrolar do que esperar imposições de fora", avalia Fabrizio Fasano, presidente da Associação Brasileira de Bebidas (Abrab), representante das indústrias de destilados, cuja cadeira de honra pertence à aguardente.

"Apesar da carga tributária alta, a bebida nacional é barata. No caso da pinga, o baixo preço se explica pela matéria-prima abundante." O setor, segundo Fasano, não deve crescer muito como um todo, mas é claro que cada marca pode aumentar seu território de vendas.

E a cerveja? "O que explica a redução de preço dos últimos dois anos é o aumento da produtividade das indústrias", avalia Marcos Mesquita, superintendente do Sindicato Nacional de Cerveja (Sindicerve). Nesse período, foram investidos US$ 2 bilhões no setor, que reúne 43 fábricas de cerveja, com 40 mil empregos diretos e 120 mil indiretos. Só de publicidade devem ser gastos este ano US$ 200 milhões na caça ao consumidor.

"O brasileiro ainda bebe muito pouca cerveja", afirma Mesquita. Ele acredita que o setor pode crescer muito mais. "E dentro de uma margem de consumo saudável." Segundo Mesquita, os fabricantes buscam um consumo com moderação, mantendo a cerveja como sinônimo de prazer.

A indústria, de um lado e de outro, afirma se preocupar com o consumo irresponsável. Ao mesmo tempo, reconhece que suas iniciativas continuam bastante tímidas e aproveita para prometer campanhas. Por enquanto, ela simplesmente coloca advertências no rótulo e respeita as restrições de propaganda. Restrições que recentemente cresceram para os destilados, poupando a cerveja e o vinho.

Maniqueísmo

"É difícil esperar que justamente os produtores evitem os abusos", reconhece Luiz Matias Flach, presidente do Conselho Federal de Entorpecentes (Cofen), ligado ao Ministério da Justiça. Mas o próprio governo ainda não arregaçou as mangas. "Há alguns anos, decidimos que também devíamos atuar em relação às drogas legais (álcool, tabaco, cola de sapateiro, medicamentos). Estamos conscientes de que são as drogas consumidas com mais abuso. Mas o maniqueísmo entre droga lícita e ilícita ainda existe. É uma mentalidade geral. As drogas ilegais chamam e recebem mais atenção, inclusive do governo." O Cofen ainda desconhece as novas conclusões e propostas da Organização Mundial da Saúde. Parece que, por enquanto, o Brasil vai continuar sem política pública para o álcool. "Esperamos que o interesse e a preocupação geral se transformem logo em ação", cobra o psiquiatra Ronaldo Laranjeira.

 

Os estudantes e a bebida

Qual a atitude dos estudantes frente às drogas? O que pensam e usam? Desde 95, uma equipe da USP está procurando essas respostas entre os alunos de graduação da universidade. Um ponto de partida para o trabalho de prevenção que deve começar no próximo ano. "Depois de sabermos o que está acontecendo, podemos propor campanhas, seminários e ajudar a definir uma política sobre uso de álcool na universidade", aponta a psicóloga Ana Zahira Bassit, uma das coordenadoras do programa, intitulado Projeto USP.

Desde 91, já é feito anualmente um levantamento junto aos estudantes de Medicina. "Ficou claro que o álcool é a droga menos desaprovada. Na vida, 90% do grupo teve experiência com bebida", informa Ana Zahira. "Entre eles, ainda há um uso recreacional. Com certeza, é uma fonte de prazer, mas é necessário alertar sobre as conseqüências e limites e oferecer opções. Muitas vezes, o consumo está ligado a situações de estresse."

Enquanto a prevenção não acontece, o tratamento já está sendo oferecido. "Atendemos alunos, professores e funcionários", explica o psiquiatra André Malbergier, outro dos coordenadores do projeto. Há atendimento individual, trabalho em grupo, além de uma abordagem familiar. As internações são raras. Durante o tratamento, o objetivo é não beber nada. "Nossa estratégia é levantar junto à pessoa quais as situações de risco no seu dia-a-dia. Ou seja, em que momentos ela bebe, por quais motivos, em que ambiente... A partir daí, buscamos opções. É essencial que ela encontre outros caminhos para enfrentar a ansiedade ou ter prazer", aponta André.

Ajuda anônima

Mais de 400 grupos no estado de São Paulo, quase 5 mil em todo o Brasil. No mundo, são 120 mil grupos, distribuídos em 150 países. Com certeza, os Alcoólicos Anônimos (AA), associação criada nos EUA há 60 anos, são a opção mais próxima para os brasileiros que se deparam com o problema do álcool. Não é necessário esperar na fila pelo tratamento, como ocorre em vários serviços. Não é necessário pagar nada, a não ser as publicações. Nem se identificar. Aliás, o anonimato é a alma do grupo. As reuniões são abertas, participa quem quer, com exceção dos encontros "de serviço", para fortalecimento do grupo. O único requisito para ser dos AA, dizem, é o desejo de parar de consumir bebidas alcoólicas.

O lema da associação é "não beber nas próximas 24 horas". E, assim, dia após dia, superar a doença. Nas reuniões, as pessoas dão o seu depoimento, recebendo atenção especial de um "padrinho", pertencente ao grupo há mais tempo.

Cada grupo tem autonomia, mas precisa se manter fiel às "Doze Tradições". Algumas delas: manter o anonimato, não criar hierarquias, não receber verbas de grupos e não se manifestar sobre outros assuntos.

Trabalho sem álcool

Depois de um dia tenso no trabalho, de um caminho cansativo até chegar a casa, nada melhor do que uma bebida para relaxar. A cena é rotineira, mas merece reflexão, segundo Ângela Herrero, do Programa de Prevenção e Recuperação de Alcoolistas, da Eletropaulo. "As pessoas devem repensar sua relação com o álcool. Avaliar de que forma ele faz parte da sua vida." Afinal, é justamente o tipo de relação criada com a bebida que pode resultar em dependência, e não a quantidade ou freqüência do consumo.

Ângela e sua equipe estão convencidos de que os problemas podem ser prevenidos. Em breve, devem lançar uma campanha de prevenção. O programa de tratamento já existe desde 1989. Hoje, são 11 grupos. As reuniões acontecem na própria empresa, semanalmente. Em paralelo, há o atendimento individual e o apoio em clínicas conveniadas, se necessário.

Três idéias muito claras orientam o trabalho. "Primeira: álcool é uma questão de saúde. Segunda: o trabalho deve ser realizado em conjunto por médicos e assistentes sociais. Terceira: deve haver co-responsabilidade, incluindo a equipe, a pessoa, sua família e o chefe", esclarece Ângela. Assumir a prevenção e o tratamento dos problemas com álcool é uma tendência cada vez mais necessária nas empresas. Por uma questão de custos e de qualidade. "Os resultados com os grupos são animadores. Algumas mudanças são imediatas, mas o mais difícil é mantê-las. O projeto exige paciência e persistência, de todos os lados. A pessoa acaba descobrindo uma nova qualidade de vida. Os reflexos no seu trabalho são evidentes", observa Ângela.

O papel da indústria

As grandes distribuidoras de bebidas da Europa, aliadas aos fabricantes, nos últimos anos passaram a encarar seriamente o problema do consumo abusivo de bebidas alcoólicas, procurando abordar e esclarecer fatos e mitos sobre a questão.

O Alcohol Issues Group, que reúne a Allied-Lyons, Hiram Walker e Carlsberg-Tetley, colige permanentemente estatísticas a fim de acompanhar os índices de consumo de bebidas, verificando, por exemplo, se os jovens estão bebendo em demasia ou se o aumento de publicidade provocou um incremento de consumo acentuado (o que não vem acontecendo na Europa ocidental, Estados Unidos e Austrália). Informações médicas também são divulgadas - principalmente sobre os cuidados que as mulheres devem tomar na gestação -, a fim de elucidar riscos concretos e desmistificar alguns problemas atribuídos ao álcool.

Os esforços pelo consumo moderado de bebidas estendem-se a programas de televisão, vídeos educativos para donos de bares, programas universitários para estudo do alcoolismo, etc. Na Europa participam desses esforços, além do Alcohol Issues Group, o Amsterdam Group, com ação no continente, e o Portman Group, na Grã-Bretanha. Nos Estados Unidos destaca-se o trabalho do Century Council, concentrado no alerta sobre os riscos que a bebida oferece aos motoristas e no endosso a medidas punitivas e de combate aos infratores alcoolizados.

No Brasil a participação da indústria de bebidas em favor do consumo moderado de seus produtos ainda é discreta, limitando-se, em alguns casos, a advertências nos rótulos ou sua participação em campanhas educativas sobre o risco da bebida para motoristas.

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