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Adeus ao fantasma
CECÍLIA ZIONI E JANE SOARES
O balanço dos oito anos, completados em setembro, da aprovação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) é positivo em praticamente todos os aspectos. O que surgira como uma forte ameaça a muitos empresários é hoje tido como valioso aliado de quem produz e vende. O CDC é considerado item indispensável nas prioridades de qualquer estratégia empresarial bem-feita.
O código, transformado na lei 9.078, foi discutido durante dois anos no Congresso e entrou em vigência em março de 1991, seis meses depois de aprovado. Gerou polêmica desde o início e não faltou, entre lideranças empresariais, quem temesse ver o CDC transformado numa espécie de camisa-de-força, cerceadora das atividades normais da produção e do comércio. Decorridos oito anos, os 119 artigos do código permanecem praticamente sem alteração, e a maioria dos especialistas que o estudam parece acreditar que não se deve mexer em time vencedor.
Do lado do consumidor (ver texto abaixo), embora o sistema ainda não funcione à perfeição, o código valeu principalmente por ter ensinado as pessoas a serem mais exigentes e, por isso, mais atentas tanto a seus direitos como a seus deveres quando compram produtos ou encomendam serviços. Do lado do governo, o CDC produziu efeitos positivos, e já existem valiosas experiências que mostram ter o poder público aprendido a tratar melhor o contribuinte e o cidadão. E o empresariado é praticamente unânime ao apontar vantagens no CDC, considerado um eficiente meio de aproximação com o cliente, alavancador de negócios e fator de contínua atualização do produto no mercado, funcionando também como indutor de ações que visem o aumento de competitividade.
Mais que dar vigência legal a um conjunto de normas em garantia da defesa do consumidor de todo tipo de bens e serviços, o CDC acabou por criar comportamentos diferentes na prestação de serviços e oferta de produtos, abrindo canais de comunicação com o público não limitados a receber queixas e tentar soluções. Bem estruturados, os Sistemas de Atendimento ao Consumidor (SAC) são vigorosa alavanca de negócios. A expansão da Internet no país amplia ao infinito essa abertura.
Quem fabrica ou vende produtos ou quem presta algum serviço está agora mais preocupado em antecipar - para evitar - problemas que possam surgir na relação com o cliente. Em outras palavras, uma das principais vantagens do Código de Defesa do Consumidor foi criar condições para que o consumidor nem precise ser defendido.
Se isso é bom para o consumidor, é ótimo também para o empresário, cujo produto ou serviço ganha qualidade e, portanto, se reveste de um diferencial no mercado que nem sempre seria obtido por meio de grandes campanhas promocionais ou pesquisas de opinião.
Ganhar esse diferencial tem como efeito, também, melhorar o padrão da indústria brasileira. Isso funciona até em empresas que não atendem diretamente o consumidor de seu produto, como o grupo Rhodia, que fabrica matérias-primas, fios, fibras e medicamentos, e mesmo na General Motors, que monta carros, mas não os vende diretamente.
Fábricas e prestadores de serviços se empenham em cumprir três pontos principais: oferecer informações completas ao consumidor, cumprir os prazos combinados e tratar todas as questões com clareza, para que todo o processo ganhe qualidade e transparência.
Pioneirismo
O grupo Rhodia tem uma experiência pioneira no Brasil. Antes mesmo de o atendimento ao consumidor começar a ser discutido e mesmo não sendo fornecedora de produtos de consumo final, nos anos 70 a empresa criou uma etiqueta para ser usada pelas indústrias têxteis às quais fornecia matéria-prima ou pelas confecções e malharias que usavam produtos Rhodia. "Era uma forma de tentar impor padrões de qualidade a um setor ainda razoavelmente desorganizado", explica Plínio Carvalho, gerente de Comunicação Social do grupo. Em 1981, foi estruturada a ação da empresa nesse setor e em 1984 foi lançada a campanha "Você fala, a Rhodia escuta".
Em 1985 foi contratada a primeira ombudsman empresarial, a especialista Maria Lúcia Zülzke, oriunda do Procon. "Ela criou a estrutura do serviço e impôs na empresa a mentalidade de respeito ao consumidor. O sistema se expandiu e, descentralizado, tornou-se rotina em cada área empresarial", acrescenta Carvalho. No setor farmacêutico, por exemplo, o sistema de atendimento ao consumidor quase entrou em pane nos últimos meses, reflexo do episódio dos remédios falsificados, comenta ele. "A cada nova notícia divulgada pela imprensa, dobra o número de ligações telefônicas de consumidores querendo esclarecimentos", diz. Isso está contabilizado na empresa: quando a televisão mostrou uma apreensão de remédios jogados num trecho de rodovia em que apareciam embalagens de produtos da marca, o número de telefonemas foi cinco vezes maior que a média diária, e a empresa dobrou o número de atendentes. "O consumidor queria esclarecimentos, e o canal de comunicação que abrimos comprovou assim a sua eficácia."
Carvalho diz que essa filosofia foi importada da matriz, o grupo Rhône Poulenc francês. "A idéia é estar atento à sociedade e às suas mudanças, para, respeitando essa demanda, antecipar soluções, o que funciona, no mínimo, como bom alavancador de negócios." Mas, acrescenta, "o conceito tem abrangência bem maior, como comprova, no caso brasileiro, a pronta aceitação do Código de Defesa do Consumidor pela sociedade. Veio com o CDC a pressão por leis mais profundas para garantia de seus direitos, de que são exemplos recentes as novas legislações do seguro-saúde, sobre porte de arma e até do trânsito".
Mostrando a cara
Vera Giangrande tem, talvez, um dos rostos mais vistos diariamente por milhares de pessoas. É ela quem, desde 1993, mostra literalmente a cara do serviço de atendimento aos clientes das 270 lojas de supermercados do Grupo Pão de Açúcar, de que também fazem parte as lojas Eletro, a rede de hipermercados Extra e a rede Super Box.
Uma idéia de quantas pessoas circulam por esses supermercados e lojas é dada pelo número de tíquetes emitidos por suas caixas registradoras: são 14 milhões a cada mês. Ou seja, o equivalente a quase toda a população da cidade de São Paulo. Sua fotografia está em muitas dessas lojas, na parede de uma espécie de saleta, com poltronas e sofás à disposição dos clientes, permanentemente convidados a dar sua opinião, fazer sugestões, apresentar queixas, reclamações e comentários. Essa é uma gentileza até certo ponto incongruente com o conceito de rapidez que caracteriza o auto-serviço, mas está perfeitamente de acordo com a filosofia que Vera Giangrande representa no grupo.
"O conceito que queremos fazer valer é o de sermos parciais no atendimento ao cliente", diz ela. "Temos de fazer o cliente sentir que é único e insubstituível e, por isso, importante e precioso para a loja." Isso norteia todo o serviço (pró-ativo e reativo) de atendimento ao cliente: cada caso, explica, é analisado sob o ponto de vista técnico e legal, mas as decisões são tomadas só depois de avaliado o grau de mágoa ou atingimento pessoal imposto ao cliente ou nele provocado. "Nossa missão é resolver o problema e recuperar o cliente, restabelecendo uma relação cordial dele com a loja. Queremos clientes encantados conosco."
Como isso se faz? O primeiro passo é procurar uma relação mais direta entre o pessoal da loja (e da empresa) e os fregueses. Vera e sua equipe fazem visitas às lojas, promovem encontros com clientes (cafés da manhã ou chás da tarde), organizam Conselhos de Clientes que se reúnem mensalmente para opinar sobre o funcionamento da loja.
A ação reativa do atendimento do consumidor no Pão de Açúcar, diz Vera, é intensa, e os números mostram isso: o serviço recebe 4,5 mil telefonemas por mês, 3 mil cartas são entregues nesse mesmo período nas caixas de sugestão colocadas nas lojas e um número crescente de mensagens chega pela Internet. A maior parte das ligações se refere a sugestões e pedidos de informação, e não a reclamações. Por mês, calcula Vera, são atendidos e resolvidos 500 casos de queixas apresentadas por telefone, 150 deixados nas caixas de sugestão e 120 enviados pela Internet.
O mecanismo de atendimento é o seguinte: recebida a queixa, são ouvidos o cliente e o pessoal da loja, para estabelecer a verdade dos fatos. Depois, o assunto é examinado pelas áreas jurídica e técnica. Definida a ação a ser tomada sob esses critérios, avalia-se também o grau de mágoa ou insatisfação do cliente e decide-se uma ação complementar, cujo objetivo é reconquistar o cliente.
Casaco novo
Vera gosta de contar alguns casos para mostrar como esse mecanismo funciona efetivamente, e não acoberta "cala-bocas" para aquietar fregueses:
- O casaco manchado: uma cliente reclamou ter manchado um casaco branco de couro por ter-se encostado em uma parede recém-pintada e na qual não havia aviso de tinta fresca. Para cumprir a lei, bastaria a loja providenciar a limpeza do casaco, mas a cliente não se satisfez, e a decisão foi mandar fazer um casaco novo, 100% igual ao da cliente.
- O cartão de crédito: houve um problema com o cartão de crédito de um cliente, que ficou muito irritado, mesmo depois de resolvido o caso. Para pedir desculpas, o gerente da loja levou ao freguês uma cesta de frutas. O freguês recusou o presente e recomendou que as frutas fossem dadas a um hospital de crianças. O gerente fez outra cesta, convidou o cliente a ir com ele ao hospital, entregou uma das cestas e levou a outra para a casa do freguês, para comprovar sua boa vontade.
- O cheque sem cadastro: uma cliente reclamou indenização pelo fato de não ter sido aceito um cheque seu para pagamento pré-datado por falta de cadastro. Consultado, o Procon informou que, legalmente, não caberia indenização, no caso. Nada foi pago à cliente, mas ela foi convidada a visitar o supermercado (loja e área interna) em um determinado dia, quando foi recebida com flores pelo gerente, pelo caixa e pelo fiscal, com quem tomou um chá e foram dissipadas as divergências.
Além da ombudsman para o público externo, o Pão de Açúcar tem uma para o público interno, 26 mil funcionários em todo o país. "Este pessoal precisa estar convencido do valor de seu trabalho, para atender bem o cliente", diz Vera, acrescentando que, se o sistema tem funcionado bem, é também porque tudo o que se faz passa por análises para detecção de erros que, discutidos com a diretoria, resultam na tomada de soluções permanentes. "Esse é o espírito do bom atendimento ao cliente", conclui.
Canal aberto
A experiência da Rhodia e do Pão de Açúcar não é única no mercado. Muitas outras empresas já descobriram que montar um Serviço de Atendimento ao Cliente (SAC) é um excelente negócio. É o que garante Paulo Gêzer Araújo, presidente da Associação Nacional dos Profissionais de Serviços ao Consumidor em Empresas (Secanp). "É uma das melhores formas de conseguir a fidelidade da clientela", argumenta, colocando em pauta o grande sonho de qualquer empresário.
Um sonho difícil de transformar em realidade, diga-se de passagem. Pesquisas realizadas nos Estados Unidos mostram que as empresas perdem, por ano, de 15% a 20% de seus consumidores - ou seja, em apenas cinco anos todos eles estarão comprando os produtos ou freqüentando a loja de algum concorrente. O motivo? Simples: 70% deles abandonaram o barco porque foram mal atendidos, como constatou a entidade americana Forum Corporation. E conquistar um cliente novinho em folha fica de cinco a sete vezes mais caro que manter os atuais.
"A maioria das empresas está preocupada em conquistar novos consumidores e não pára para pensar em quanto está deixando de ganhar por não reter os que já tem", explica Paulo Araújo. Um erro estratégico ainda mais grave agora, quando o concorrente pode estar no próximo quarteirão ou até do outro lado do mundo. Nesse sentido, o SAC pode ser um poderoso diferencial competitivo, aliado, é claro, a um bom preço e produtos de qualidade inquestionável.
Afinal, o serviço não serve, apenas, para ouvir lamúrias e reclamações. Ele pode e deve ser um canal aberto para detectar as ansiedades, desejos e aspirações do consumidor, e para registrar sugestões valiosas para aperfeiçoar produtos e processos. Não é à toa que atualmente 2,5 mil empresas brasileiras já criaram suas centrais de atendimento, como indicam estimativas da Secanp.
É bem verdade que algumas não passam de meros "enfeites" - e certamente seus empresários vão acabar pagando, a médio e longo prazos, um preço muito alto por tentar iludir consumidores cada dia mais exigentes e conscientes de seus direitos. As empresas mais inovadoras, no entanto, usam as informações vindas através de seus serviços para se manter na vanguarda.
"Em um mundo empresarial altamente competitivo, o atendimento já é e continuará sendo o grande diferencial", enfatiza Paulo Araújo. Um diferencial e uma poderosa arma de marketing para quem souber usar o SAC em toda a sua plenitude. Afinal, consumidor satisfeito indica serviços e produtos para parentes e amigos. E já está comprovado: não existe nenhuma propaganda mais eficiente - e mais barata - do que o velho e bom "boca-a-boca".
A experiência do SAC tem sido tão boa que os serviços públicos também passaram a usar o 0800. Um deles é o Disque-Saúde (0800-611997), criado em outubro de 1996 pelo Ministério da Saúde para divulgar informações sobre Aids e doenças sexualmente transmissíveis. Meio ano depois, o serviço já fora estendido para informar sobre outros tipos de doenças e tratamentos. Agora, a estrutura do Disque-Saúde vai ser aumentada para atender a demanda, muito ampliada durante a crise dos remédios falsificados. Quem liga não precisa se identificar; o sistema apenas anota a idade e o estado civil da pessoa e o estado de que está ligando, para efeitos cadastrais.
Ellen Zita Ayer, coordenadora do Disque-Saúde, diz que em junho e julho o sistema passou a receber de 10 mil a 14 mil chamadas diárias, o dobro da média dos meses anteriores. O Disque-Saúde funciona 24 horas por dia, com 90 pessoas em três turnos.
Vêm de São Paulo as chamadas mais numerosas, assinala a especialista, e a faixa etária dos consulentes mais freqüentes é muito baixa, entre 13 e 15 anos. "A maior parte das perguntas se refere a Aids, transplante e doação de órgãos, o que nos sugere haver entre os jovens muita preocupação pela cidadania", comenta.
O Ministério da Justiça também criou um número específico para receber denúncias de remédios falsificados: 0800-610033.
O governador em exercício de São Paulo, Geraldo Alckmin, era deputado federal nos tempos da aprovação do CDC, e foi um dos seus mais destacados defensores. Ele aponta alguns efeitos indiretos e diretos do código na gestão pública, que, nos últimos anos, acabou sendo obrigada a "tomar desde providências simples, de repartições e empresas públicas que passaram a dar informações aos usuários e atender queixas por telefone, até iniciativas mais complexas", modificando comportamentos convencionais do funcionalismo.
Entre estas, Alckmin cita a criação de uma ouvidoria na polícia, que, em dois anos, recebeu 12 mil chamadas da população. Segundo dados do governo estadual, nesse período, 1.382 policiais foram indiciados e 339 sofreram punição administrativa.
Por influência do CDC, foram instaladas cinco varas do Juizado de Pequenas Causas Especializado em Relações de Consumo (que funcionam no prédio do Procon, para dar agilidade ao atendimento). Também foram criados os Centros de Integração da Cidadania, por meio dos quais diversas secretarias estaduais são chamadas a solucionar situações de conflito que envolvam pessoas comuns. Além disso, conclui, todas as secretarias e empresas públicas desenvolvem programas de qualidade: "Ainda há muito a fazer, mas isso deve ser acelerado pela pressão dos contribuintes, cujo sentido de cidadania se aprimorou depois de aprofundada a consciência dos direitos do consumidor", conclui Alckmin.
Rede de queixas
Atender o consumidor pela Internet, complementando os convencionais serviços por telefone ou correspondência, também já acontece em crescente número de empresas, inclusive órgãos públicos.
Saude.gov.br é o endereço na Internet do Ministério da Saúde, cuja página abre um bom espaço para o departamento que, seguramente, é agora o mais conhecido pela opinião pública brasileira: a Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS). Ela é conhecida; o site, ainda não: no começo de agosto, registrava menos de 200 visitantes, mesmo oferecendo um sistema de correspondência para facilitar a comunicação (formulário pronto para gravar mensagem e remetê-la). Outro problema: o site parece não estar sendo atualizado com a rapidez que supostamente a crise atual exigiria: o último Alerta Sanitário (serviço de informações sobre suspensão e interdição de medicamentos) data de abril, e as portarias ainda são assinadas pela antiga titular do cargo, substituída em julho.
Mais dinâmico parece ser um "filhote" indireto da crise dos remédios falsos: em dois meses de funcionamento, um site aberto em Porto Alegre em parceria com o Procon gaúcho recebeu pouco mais de cem mensagens (queixas e denúncias, principalmente). O editor da página, Chico Oliveira, diz que a origem do serviço está relacionada com o caso dos remédios falsificados, tema de boa parte das mensagens. O site recebe a queixa e a repassa ao Procon, que dá andamento ao caso em prazo de 48 horas a uma semana. O endereço é: riogrande.com.br/cons.
Na primeira semana de agosto, o site do Procon do Rio de Janeiro na Internet (ibase.org.br/~proconrj) atingia a marca de 45 mil visitantes. No mês anterior, o Procon cearense (procon.ce.gov.br) inaugurara, em seu site, um novo serviço: orientação para o consumidor reconhecer um remédio falsificado e para evitar sua compra.
O Procon paranaense também presta contas de suas atividades pela Internet (celepar.br/proconpr), e o governo da Paraíba tem um site geral (parai.com.br/procon), criado em janeiro do ano passado e que já foi visitado por mais de 135 mil pessoas. Faz parte da página paraibana um bom serviço de divulgação do Código de Defesa do Consumidor, prestado pelo Procon estadual.
Em São Paulo, o Procon não tem site na Internet e suspendeu o e-mail por causa de problemas com linhas telefônicas. O sistema está sendo reelaborado e a assessoria do Procon não pôde precisar quando entrará em operação, mas já está definido que não serão atendidas reclamações pela Internet. O Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), que só atende seus associados, tem e-mail (idec@uol.com.br), para mensagens, e site (http://www.uol.com.br/idec), para informações gerais.
Bronca na Internet
Mais de mil consumidores já apresentaram suas queixas ao site carioca Reclame&Ame (reclama.com), criado em janeiro de 1997 por dois irmãos, Liliane e Alexandre, e que tem o objetivo de divulgar problemas para facilitar sua solução. Os irmãos abriram o site quando se cansaram de pedir a uma concessionária a segunda chave para o carro novo. Seus pedidos não tinham retorno, e a idéia de expor o caso pela Internet deu certo. A página não faz intermediação entre as partes: "Apenas abrimos o espaço, e muitas vezes o 'reclamado' aparece no site, espontaneamente, para resolver a questão". Quando isso acontece, o site comemora, e surge no vídeo uma mensagem de congratulações. "É uma forma de pressionar os empresários a se manifestar. O êxito da Reclame&Ame - depende da percepção dessas pessoas quanto ao peso do questionamento público de seus produtos e serviços", diz Liliane, agora empenhada na busca de anunciantes para ampliar o atendimento.
No Rio de Janeiro, surgiu, há alguns anos, o site Odeio a Telerj, que acusa visita de 29.299 pessoas em seu endereço na iss.com.br. Existem, também, as versões Odeio o Imposto de Renda (no mesmo servidor) e Odeio a Cerj (geocities.com/TheTropics/2867). Esta, criada em janeiro deste ano, registra quase 2 mil visitantes, que fizeram 155 reclamações e denunciaram 190 cortes de energia em menos de um ano. A página tem atualização diária. Meia dúzia de variações da Odeio a Telerj aparecem em alguns servidores, algumas delas dando condições ao visitante de repetir a queixa diretamente à Anatel, órgão nacional encarregado das telecomunicações, nestes tempos de privatização.
Carlos Magalhães, o criador da Odeio a Cerj, conta ter feito a página em 1995 "em protesto contra a demora de dois anos para conclusão de processo de ressarcimento pela queima de uma bomba de água da minha piscina". Magalhães venceu a causa, mas não desistiu: quer, com o site, "chamar a atenção da Aneel, agência do governo encarregada, com a privatização, dos assuntos de energia elétrica, para os problemas da Cerj e conscientizar a população do estado contra a empresa". Ele acha que está dando certo: "Já é grande o número de e-mails que recebo, e aumenta com a queda acentuada da qualidade dos serviços da Cerj. As pessoas me param na rua, porque meu carro ostenta o logotipo da campanha".
O mesmo sentimento levou Rômulo Fritscher a criar um dos sites Odeio a Telerj em outubro de 1996. "Queria desabafar com relação ao péssimo serviço técnico e pessoal que a Telerj prestava na época, e o site fez com que a empresa melhorasse um pouco o atendimento." A página recebe correspondência dos consumidores, que não têm obtido, diz Fritscher, respostas da Telerj. Mas a Anatel respondeu ao seu primeiro e-mail e informou que passaria a encaminhar "todas as mensagens recebidas aos órgãos competentes". É um bom começo.
Sem medo de reclamar
Consumidor descobre que vale a pena apresentar queixas: só no Procon paulista reclamações cresceram 93%
Há oito anos, grande parte das empresas temia fechar suas portas, diante das exigências do Código de Defesa do Consumidor. Mas, até onde se sabe, nenhuma empresa faliu por não conseguir atender às determinações do código. Muitas desapareceram, é verdade, por conta dos planos econômicos, dos períodos de recessão e até das profundas mudanças ocorridas na economia brasileira com a abertura do mercado e a estabilização monetária. Transformações que resultaram também em grandes avanços para o consumidor e para toda a sociedade, como reconhecem alguns dos personagens envolvidos na elaboração e aprovação do código, reconhecidamente um dos mais exigentes do mundo.
"A lei deu suporte a um movimento mais amplo de resgate da cidadania, iniciado com a abertura política e estimulado, em alguns momentos, pelos planos econômicos", analisa a socióloga Maria Inês Fornazari, 42 anos, metade deles vividos no Procon, onde ocupa hoje o posto mais elevado, a diretoria executiva. "Nestes últimos anos, a sociedade brasileira se conscientizou da importância de resguardar os direitos dos consumidores", reforça o procurador do estado Marcelo Sodré, ex-coordenador do Procon no período de 1988 a 1994. Hoje, grande parte do empresariado reconhece, inclusive, que a lei contribuiu para melhorar as relações de consumo.
Isso não ocorreu apenas por conta do código. A nova "abertura dos portos" verificada nesta década fez o cidadão comum descobrir que, na maioria dos casos, pagava muito caro por produtos ruins - e ele resolveu colocar a boca no trombone para exigir seus direitos. Esse foi um dos subprodutos das importações que cresceram no país nesse período. Do lado dos empresários, a concorrência dos importados, que tiveram que enfrentar, obrigou as empresas nacionais a se preocuparem não só com seus produtos e serviços. A nova exigência, com a qual não estavam acostumados, foi buscar a todo o custo a satisfação de seus clientes. "O código acabou sendo uma enorme vantagem competitiva para o empresariado nacional, por antecipar, por exemplo, exigências com a qualidade dos produtos, item fundamental para garantir a sobrevivência das empresas nestes tempos de globalização", explica a engenheira agrônoma Marilena Lazarini, que pilotou o Procon de 1983 a 86, época do Plano Cruzado, quando foi convidada a assumir a Sunab de São Paulo, onde ficou sete meses, até abril de 87.
Nesses oito anos, o Código do Consumidor, respaldado pela abertura econômica e pela estabilidade trazida pelo Plano Real, fez os brasileiros perderem o medo de reclamar e de brigar por seus direitos.
Aos poucos, parte do empresariado nacional passou a ver seu cliente como o principal personagem da história de sua empresa. Os avanços são evidentes. Além do aumento das consultas e queixas aos Procons, as faculdades de direito incluíram o direito do consumidor em seus currículos, a Justiça criou vários tribunais de pequenas causas, as empresas montaram seus próprios serviços de atendimento, só para citar alguns exemplos.
A nova postura do consumidor, no entanto, foi a mudança mais significativa para todos os envolvidos na criação da lei. "A maioria das pessoas está preocupada em resguardar seus direitos", explica Maria Inês Fornazari. "Muitas brigam por valores muito pequenos, para deixar claro que está em jogo um princípio, e não o dinheiro." Bobagem? Longe disso.
Certamente isso é indício de que o código realmente ajudou os brasileiros a resgatar parte de sua cidadania.
Ainda há um longo caminho a percorrer, é evidente, como demonstra a história recente dos remédios falsificados. O caso mais evidente foi o do laboratório Schering, que colocou no mercado pílulas anticoncepcionais falsas, produzidas para testar equipamento novo. "A empresa deveria ter comunicado o problema imediatamente às autoridades, alertado os consumidores e retirado o produto do mercado, como determina a lei", esclarece o procurador do estado José Geraldo Brito Filomeno, um dos redatores do código. A falha acarretou problemas para consumidoras que engravidaram, mas os prejuízos para a empresa poderiam ser menores se agisse rapidamente. Em casos assim, aguardar a denúncia é o pior caminho.
Falta também à sociedade criar entidades civis de defesa do consumidor, como as que foram instituídas em outros países - uma das poucas existentes é o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). Além disso, grande parte das pessoas procura o abrigo do Procon como a primeira instância para garantir seus direitos, até por desconhecimento da lei. "É preciso investir na educação formal e informal para o consumo", recomenda Filomeno.
O papel do Procon
Mesmo assim, os números são vistosos. Apenas o Procon paulista registrou um aumento de 93,6% desde o início da vigência do Código de Defesa do Consumidor. Em 1991, foram feitas 123.086 consultas e reclamações. No ano passado, foram 239.324 ocorrências.
Desse total registrado em 1997, a maior parte refere-se a consultas (184 mil). As reclamações (20,9 mil) concentraram-se mais na área de produtos e serviços (13,6 mil), mas também estiveram presentes no setor de saúde (3,1 mil), serviços financeiros (2,3 mil) e habitação (1,1 mil). Foram expedidas 33 mil cartas aos fornecedores, em busca de solução de problemas apresentados pelos consumidores.
Com uma estrutura muito enxuta, o setor de atendimento do Idec, por sua vez, realizou 44.613 atendimentos entre março de 1997 e fevereiro deste ano, e tem aproximadamente 700 processos tramitando na Justiça. Uma das grandes bandeiras da entidade, a recuperação das perdas em poupança ocorridas durante o Plano Verão, em 1989, conseguiu trazer de volta R$ 2,3 milhões para o bolso dos consumidores.
Os mais exigentes diriam que, apesar de expressivo, esse crescimento ainda é muito pequeno frente ao tamanho da população paulista. E têm razão. No entanto, esses números ganham novo destaque quando se coloca na berlinda a profunda mudança de mentalidade que representam, não só por parte dos consumidores, mais exigentes e conscientes, como por parte das empresas. Balanço feito pelo Procon e pelo Idec reconhece ainda avanços em diferentes áreas, como na rotulagem dos setores de alimentos, vestuário, acessórios domésticos, eletroeletrônicos e brinquedos.
A recente aprovação da lei que regulamenta a atuação das empresas de convênio e seguro médico também pode ser debitada na conta da atuação dos órgãos de defesa do consumidor nos últimos anos. Nesse meio tempo, as cobranças violentas e difamatórias saíram da ordem do dia, enquanto o segmento habitacional ganhou leis específicas, mais transparência nas propagandas e contratos mais claros - aliás, as letras miúdas nesses documentos praticamente desapareceram.
Ainda existem muitos problemas, é claro. Para o Procon, as escolas particulares, por exemplo, continuam sendo um dos segmentos mais resistentes aos avanços promovidos pelo código, e os consumidores ainda enfrentam muita dificuldade para lidar com os estacionamentos, principalmente nos casos de ressarcimento por dano ou furto de veículo. Isso sem falar em setores como o moveleiro, o automotivo e o bancário, que, na visão do Procon, conseguiram piorar seu desempenho nos últimos anos.
A função do órgão não é só defender, dar sugestões, criticar ou cobrar. Desde 1992, o Procon também resolveu se expor, contrariando um velho ditado - "casa de ferreiro, espeto de pau". Criou uma ouvidoria para registrar queixas e sugestões de seus "clientes" sobre sua atuação, corrigir rumos e auscultar o público interno, seus atuais 377 funcionários. Os trabalhos são divididos entre a jornalista Vera Ramos, que se encarrega de ouvir os consumidores, e a administradora de empresas Maria Regina Vilhena de Almeida, escolhida para encaminhar as sugestões da equipe, da qual faz parte há 19 anos. "Os resultados são animadores, porque criamos um termômetro adequado para acompanhar a atuação do dia-a-dia do Procon, e que nos permite alterar rapidamente procedimentos inadequados", conta Vera Ramos, que no ano passado atendeu pouco mais de 26 mil pessoas, 90% delas por telefone. No período de janeiro a julho deste ano, 4,5% dos "clientes" entraram em contato com a ouvidoria para fazer sugestões, 23,7% para reclamar, 3,8% para fazer críticas, 5,5% para elogiar e 62,5% por outros motivos - a maioria, solicitando informações não diretamente relacionadas ao órgão.
E do que reclamam os consumidores? "Principalmente da dificuldade para acessar nosso número de telefone, 1512", revela Vera Ramos. Apesar do aumento no número de linhas, o sistema recebe cerca de 6 mil chamadas por dia, e tem capacidade para atender apenas mil. Para amenizar o problema na cidade de São Paulo, além do atendimento feito nas unidades da Barra Funda, Centro, Estação Tatuapé e no Poupa-Tempo da Sé, o Procon conta com a caixa postal 3050 (CEP 01061-970), com uma linha de fax (3824-0717) e estuda a possibilidade de abrir um canal via Internet - atualmente, existe um site da fiscalização (www.mtecnet.com. br/pessoal/proconsp), onde empresários podem conhecer a legislação para evitar problemas.
Outra grande queixa é quanto à demora no encaminhamento dos problemas - algumas audiências podem levar seis meses para ser marcadas.
Tudo o que chega à ouvidoria é levado diretamente à direção do Procon, incluindo sugestões para instalar mais postos de atendimento, aumentar o número de linhas, agilizar os serviços ou colocar televisão nos postos, para exibição de vídeos sobre educação para o consumo - uma das práticas já adotadas. E como em todo bom serviço de atendimento, todos os "clientes" recebem uma resposta, incluindo os funcionários. "A iniciativa de ouvir o público interno foi um enorme avanço, e mostra a disposição do Procon de estar sempre à frente na defesa dos direitos dos consumidores", conta Regina Almeida. "Afinal, estamos caminhando para construir uma sociedade melhor." (CZ e JS)
História de conquistas
1971 - Apresentado no Congresso Nacional projeto de lei para assuntos de Saúde e Segurança do deputado Nina Ribeiro / Criação do Conselho de Defesa do Consumidor (Condecon), no Rio de Janeiro1975 - Criação da Associação de Proteção ao Consumidor
1976 - Criação do Sistema Estadual de Defesa do Consumidor no Estado de São Paulo
1977 - Lei Herbert Levy, que obriga a exposição de preços à vista e a prazo
1979 - Primeiro Encontro Nacional de Entidades de Defesa do Consumidor em Curitiba, promovido pela Adoc do Paraná / Criado o Centro Nestlé de Informação ao Consumidor
1982 - Rhodia, Johnson & Johnson e Sadia montam seus SACs
1983 - Criação da Delegacia do Consumidor (Decon) no estado de São Paulo / Aparecimento de inúmeros Procons em estados e municípios / Criada a Curadoria de Defesa do Consumidor no estado de São Paulo / Começam a funcionar Juizados de Pequenas Causas em vários estados
1985 - Criado o Conselho Nacional de Defesa do Consumidor
1986/87 - Mobilização de entidades públicas e privadas para incluir na Constituição o princípio de defesa do consumidor
1987 - Nasce o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec)
1989 - Apenas três estados brasileiros não têm Procon / Constatada a existência de 144 órgãos públicos de defesa do consumidor no estado de São Paulo / Criada a Associação Nacional dos Profissionais de Serviços ao Consumidor em Empresas (Secanp)
1990 - Aprovada a Lei de Defesa do Consumidor
1991 - Lei de Defesa do Consumidor entra em vigência / Constatada a existência de SACs em 50 empresas
1997 - Aprovado o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor / Mais de 2 mil empresas contam com SACs
(Fonte: Secanp)
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