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Ana Paula Maia

ilustração: Marcos Garuti
ilustração: Marcos Garuti



por Ana Paula Maia


DESALMA

Havia deixado para trás toda esperança. Caminhava desgastado, arrastando as botas de couro no asfalto rachado e empoeirado. Quilômetros até encontrar um posto de gasolina. Cinco litros foi tudo o que conseguiu com o dinheiro que restava nos bolsos. Um caminhoneiro aceitou dar uma carona até seu carro, parado no acostamento, observado por um urubu. Encheu o tanque e seguiu viagem pela estrada pouco movimentada. O combustível era suficiente para concluir o seu dia de trabalho e isso só aconteceria quando chegasse a seu próximo destino.
Ao atravessar o portão do sítio, os vira-latas começaram a latir para o carro. Na varanda da casa, um homem sentado numa cadeira de balanço limpa cuidadosamente uma espingarda desmontada cujas peças estão espalhadas sobre o chão.
Estaciona o carro a alguns metros da varanda. No espelho retrovisor recompõe-se ao passar um pente nos cabelos e limpar o canto do olho esquerdo com um lenço de papel. Sai do carro e enfia a camisa para dentro das calças. É escoltado até a varanda pelos vira-latas que o rodeiam, que se atêm ao seu encalço.
– Achei que viesse mais cedo.
– Tive mais trabalho do que pensei.
– Quer uma bebida?
– Aceito, sim, senhor.
O homem se levanta e vai para dentro da casa. Retorna com duas latas de cerveja.
– Senta aí – entrega a cerveja.
– Obrigado – senta-se secando o suor da testa.
– Tá abafado hoje. É sinal de frente fria. Deve chover.
O estalo da lata de cerveja ao ser aberta faz os vira-latas irem em direção ao dono. Ele vira um pouco da bebida na boca dos cães.
– Por acaso tem um pouco de gasolina aí?
– Tenho, sim, lá no galpão.
– Vou precisar.
– Pegue o quanto quiser.
– Preciso de um carro novo. Tô de olho numa daquelas caminhonetes 4x4.
– São boas mesmo.
Ao lado da varanda, os vira-latas começam a brigar entre si. O homem grita com eles e aquietam-se.
– Estão muito agitados hoje. Voltei pra casa essa manhã com uma onça. Tava matando galinha, porco, bezerrinho, até um cavalo ela atacou. Mas a bichona é bonita. Matei com um tiro só. Quer ver?
– Claro.
Os dois seguem até a lateral da varanda e apoiam-se na mureta. Uma onça estirada sobre uma lona no chão é velada por outros vira-latas.
– Olha aqui ó: o tiro limpinho. Vou empalhar essa.
– Que disgrama bonita.
– É sim. Coisa bonita assim a gente precisa conservar pra mostrar pra todo mundo. Um pecado deixar pros vermes.
O homem enfia a mão no bolso da camisa e retira um par de olhos de vidro.
– Olha só isso. Comprei faz tempo. Vão combinar diretinho com a pelagem dela.
– É mesmo uma beleza.
Apanha um dos olhos de vidro. Admirado, suspende a sua frente, contra a luz e observa as nuances das cores amareladas.
– Então, Carnicara, o que você tem pra mim?
– O que o senhor me encomendou.
Caminham até o porta-malas do carro e Carnicara abre-o.
O homem dá um longo assobio de espanto e sorri.
– Deixa eu te ajudar a tirar daí.
– Vai empalhar também?
– Até que merecia, sabe disso? Essa vagabundinha merecia ser empalhada porque a diaba era mesmo bonita, não tenha dúvida, mas você não foi muito cuidadoso.
– Ela deu trabalho.
– Daqui a pouco o homem tá aí pra ver a encomenda.
Jogam o corpo da mulher ao lado do corpo da onça, os vira-latas mantêm a guarda.
– Enquanto estrebuchava, disse que tava arrependida – diz Carnicara observando os corpos no chão.
– Assassino só se arrepende de ser pego pelo crime que cometeu, nunca pelo crime em si. Tinha dezesseis anos quando matou a criança. Confessou e ficou menos de dois anos presa.
O vento da última hora espalha nuvens cinzas e carregadas. Chacoalha com força os galhos das árvores. Despenteia os cabelos de Carnicara.
– Estava certo. O tempo tá mudando.
– Vou pegar seu dinheiro. A gasolina tá lá no galpão.
Carnicara segue até o galpão e apanha alguns litros de gasolina. Abastece o carro e aproveita para jogar água no para-brisa empoeirado.
– Teu pagamento, filho.
– Quanto devo pela gasolina?
– Nada, é por conta da casa. Vai ficar na cidade?
– Não. Vou pegar a estrada e seguir.
– Vai pra onde?
– Pro Paraguai. Vou torrar um pouquinho desse dinheiro e descansar – diz sacudindo o envelope.
– Seu pai ficaria orgulhoso de você.
Carnicara dá de ombros. Espreme os lábios como quem se esforça para traçar na mente a possibilidade de uma ideia.
– Acho que não... mas quem sabe?
– Bem, eu estou orgulhoso de você e o que precisar saiba que o Tio Luiz está aqui.
Carnicara dá um abraço apertado no homem, entra no carro e atravessa o portão do sítio escoltado pelos vira-latas barulhentos.
Seus planos de ir ao Paraguai são adiados. Dificilmente consegue tirar férias.
Um pistoleiro de aluguel é movido por vingança pessoal que desencadeia a vontade de vingar tudo o que julga errado ou o prazer de matar e ainda ser recompensado financeiramente. Evidente que uma alta dose de coragem e habilidade são indispensáveis. O seu caso é o primeiro, mas quando começou a ganhar dinheiro matando assassinos, estupradores, pedófilos, entre outros, percebeu que esse era o seu propósito.
Sua vida não saiu como planejado. Não é sonho de criança ser assassino profissional. No final das contas, não são os sonhos, mas as circunstâncias que movem cada um.
Estudou e chegou a cursar três períodos da faculdade de engenharia. Aos vinte anos de idade, vivia longe da família, fazendo faculdade e trabalhando meio expediente na biblioteca da universidade.
Numa certa noite, perto da madrugada, o telefone do alojamento toca. Seu melhor amigo o chama e, depois de atender a ligação, Carnicara permanece sentado no chão frio até o dia amanhecer. Vai para a rodoviária e pega um ônibus de volta para casa.
No necrotério do hospital observa toda a sua família deitada paralelamente em camas de aço inoxidável. A policial que o acompanha explica o ocorrido. Uma invasão na casa, os bandidos roubaram e mataram toda a família. A mulher garantiu que a polícia pegaria o bando.
Ele somente assentiu com a cabeça. Dois meses depois, ninguém sabia de nada, a polícia não sabia de nada. Sua família morta importava somente para ele e para mais ninguém.
Vendeu todos os bens da família. Nunca mais retornou à faculdade nem ligou para os amigos. Na maior parte do tempo, não sentia nada. Chorava, mas não sabia se era de saudade ou de raiva. Ou as duas coisas misturadas. Não havia terapia que pudesse organizá-lo, igreja para consolá-lo, amigos ou namorada para distraí-lo.
Perto de uma das pensões em que morou, havia um clube de tiro e foi ali que começou a sentir alguma coisa. Passava seis horas por dia treinando. Aprendeu a usar todo tipo de arma. Aprendeu que no Paraguai ele conseguia todo tipo de arma. E foi assim que Carnicara conheceu todo tipo de gente.
Um dia, tomando café da manhã numa padaria da região, conheceu um sujeito que definitivamente seria a sua cura, a sua salvação. Não, não era um religioso pregando as boas novas do evangelho, nem um vidente indicando uma nova direção alinhada com os astros, mas era o Tio Luiz.
Em duas horas de conversa Carnicara se mudou para a casa dele. Desde então, aprendeu a abater porcos, a criar galinha, a ordenhar vacas, a capinar, a preparar macarronada, a consertar motor de caminhonete e a matar. Carnicara havia colecionado recortes de jornais sobre a chacina na casa da sua família. Havia espalhado na parede de seu quarto e permanecia muito tempo olhando para eles e pensando até quando aquela amargura ia persistir dentro dele.
– Eu posso te ajudar, garoto.
– E como? Essa maconha que o senhor fuma não tá resolvendo. Eu fumo todo dia e continuo oco.
– Não estou falando de tratamento homeopático.
– Então do quê?
– A gente mata os sujeitos que mataram a sua família. Assim, você se liberta. Não aguento mais ver essa sua cara deprimente.
Carnicara debocha.
– A polícia não conseguiu pegar ninguém.
– Quem falou em polícia?
– O senhor está falando sério?
– Claro que estou.
Carnicara sorri pela primeira vez depois de quase um ano. A última vez que sorriu com prazer foi na noite anterior ao telefonema, quando sua namorada e ele foram ao cinema e depois saíram para jantar num restaurante pé sujo da cidade e namoraram por horas deitados na grama de um mirante.
– Anime-se, guri. Vamos matar os assassinos dos seus pais. – Fala alto e sorridente. – Vem, vamos encher a cara pra comemorar.

O trecho é parte da novela Desalma

Ana Paula Maia é escritora e roteirista. Possui cinco romances publicados, entre eles Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos (Record, 2009), Carvão Animal (Record, 2011) e De Gados e Homens (Record, 2013).