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Entre a realidade e o onírico, Luis Buñuel mergulhou no surrealismo como meio expressivo libertário ¿e ampliou as fronteiras ¿da sétima arte

Há muito se discute a relação entre os governos ditatoriais e a produção cultural dos países que vivenciam regimes antidemocráticos. Considere-se ou não o reflexo do processo político na criação artística, no caso de Luis Buñuel, a Era Franquista – assim chamada devido ao general Francisco Franco, que tomou o poder na Espanha nos anos 30 do século passado – não pode deixar de ser mencionada. A arbitrariedade do regime ocasionou o exílio de Buñuel, que morou na França, nos Estados Unidos e no México. Por isso, grande parte de sua obra foi realizada longe de seu país de origem, embora mantenha ligação estrita com a região. “Mesmo interpretados por atores franceses ou mexicanos e falados em outro idioma, seus filmes são tipicamente espanhóis, pois Buñuel era apaixonado pela Espanha e por sua cultura”, explica Sílvia Marques, autora dos livros Hispanismo e Erotismo – O Cinema de Luis Buñuel (Fapesp, AnnaBlume, 2010) e O Cinema da Paixão – Cultura Espanhola nas Telas (Giostri Editora, 2013).
Buñuel nasceu em 1900, em Calanda, na Espanha. De família rica e religiosa, vivia sob a influência do pai militar e recebeu uma educação que obedecia aos valores mais conservadores e religiosos. Para Sílvia, o círculo familiar e o contexto histórico foram fundamentais para a filmografia do cineasta. Primeiro, “a representação de uma Espanha franquista e autoritária, através de relações amorosas impregnadas da dominação ‘homem x mulher’. Outro detonador foram os sete anos que viveu em Madri, numa pensão de estudantes. Foi nessa fase que conheceu Salvador Dalí e outros artistas surrealistas”, conta a pesquisadora, que o define como um homem puritano em sua vida, mas libertário em sua arte.
Buñuel e Dalí frequentaram a Residência dos Estudantes, na Instituição de Ensino Livre de Madri, entre 1917 e 1925. Lá conviveram com o jovem García Lorca, poeta que viria a ser uma das vítimas da Guerra Civil Espanhola (1936-39). O início da guerra culminou com o fim das atividades da instituição, que devido ao caráter laico não era vista com bons olhos pelo novo regime que se instaurava. A partir daí, o surrealismo e seus desdobramentos estiveram presentes na produção do cineasta.

Novo paradigma
Surrealistas e dadaístas são conhecidos por introduzir as práticas artísticas mais radicais para o cinema da época e Buñuel mostrou-se fundamental nessa espécie de revolução e quebra de paradigma. No Manifesto do Surrealismo, escrito em 1924 pelo poeta francês André Breton, a arte era descrita “com base na ausência do controle da razão, isenta de preocupação estética ou moral”. Em coerência com tal ponto de vista, o cinema se revelou o meio ideal para sua concretização expressiva. A psicanálise e os livros de Sigmund Freud foram relevantes para a consolidação teórica do do surrealismo, confirma Thiago Gil, doutorando pela Escola de Comunicações e ¿Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). “Sem dúvida, a psicanálise está na base não só das formulações teóricas do movimento, mas dos experimentos criativos que os surrealistas realizaram. Os livros de Freud – e especialmente suas investigações sobre os sonhos – eram leitura frequente no Bureau de Recherches Surréalistes, uma espécie de laboratório mantido pelos surrealistas nos anos iniciais de suas atividades, acrescenta o pesquisador. “As experiências de relatos de sonhos e de escrita automática, muito presentes em La Révolution Surréaliste (primeira revista editada pelo grupo), derivam diretamente desse interesse pela psicanálise. O que é importante destacar, no entanto, é que os surrealistas estavam interessados na poesia (visual, verbal) que pudesse surgir dessas experiências.” Ainda segundo Thiago, soma-se à psicanálise o contato que tiveram com artistas e poetas modernos, como Giorgio De Chirico, Guillaume Apollinaire, Pierre Reverdy, para quem a noção de imagem poética como aproximação entre realidades distantes era algo fundamental.
O especialista acredita que a valorização da capacidade criativa por uma atividade espontânea e semiconsciente, na qual surgem imagens e situações surpreendentes, deslocando pessoas e coisas de suas posições corriqueiras, seja um dos elementos que atraem tantas pessoas ao surrealismo até hoje.
Mais de 80 anos após a concepção de Um Cão Andaluz (1929), fruto da parceria artística entre Buñuel e Dalí, ainda se considera a abertura – um olho sendo cortado por uma navalha – uma das mais surpreendentes da história do cinema. E a influência de Freud pode ser notada na obra, já que um sonho de Dalí serviu de ideia para o filme. O pintor sugeriu que fizessem um filme juntos tendo como referência os sonhos de ambos. “Buñuel sonhou com uma nuvem cortando a Lua e uma navalha cortando um olho. Dalí sonhava constantemente com um braço cheio de formigas”, pontua Sílvia. No filme, temos na abertura o olho sendo cortado e, em outra cena, uma mão cheia de formigas. “A obra propiciou muitas interpretações, até mesmo uma de cunho erótico”, diz Sílvia, citando o pesquisador Fernando Cesarman. Segundo ele, o filme é altamente erotizado e apresenta, de forma pouco convencional, a impossibilidade de amar. “E essa é uma característica que esteve presente em toda a filmografia de Buñuel”, destaca a autora. O filme reflete o caráter colaborativo e interdisciplinar do movimento surrealista.
Cores brasileiras
Desdobramentos do surrealismo também apareceram no Brasil. Thiago Gil contextualiza que, meses depois da publicação do manifesto, já se discutiam as ideias de André Breton no país. “Mário de Andrade acreditava que o surrealismo era expressão de uma civilização europeia decadente após a Primeira Guerra Mundial e que, no Brasil, onde havia a urgência de construir uma civilização moderna com arte e cultura originais, o surrealismo não podia contribuir”, afirma. Mas, ao longo do século 20, muitos artistas brasileiros se aproximaram, cada um a sua maneira, dessa estética. “Tarsila do Amaral, em sua fase antropofágica, e Maria Martins procuraram um diálogo com o surrealismo através do imaginário mítico amazônico. E Jorge de Lima produziu um importante álbum de fotomontagens, publicado em 1943, inspirado em Max Ernst, por exemplo”, esclarece Thiago. Além disso, é possível sugerir que certas estratégias típicas das experiências visuais surrealistas, como o deslocamento de imagens e objetos na produção de situações que causam estranhamento, tornaram-se uma estratégia de comunicação. “Ela abrange da publicidade à arte contemporânea e ao cinema, passando pelos memes da internet, o que faz do movimento, de certa forma, uma referência entranhada na cultura contemporânea, embora com alguma perda da virulência crítica que os pioneiros desejavam dar a suas experiências”, completa. Ele lembra que ainda hoje, diante de uma situação surpreendente ou inusitada, uma das primeiras palavras que vêm à mente é “surreal”.

Sem fronteiras
A longa carreira de Buñuel permite que sua produção seja dividida em três fases: A primeira, com Um Cão Andaluz (1929) e A Idade do Ouro (1930) – considerado mais agressivo pela sociedade da época do que o anterior. No espaço de interlocução entre a primeira e a segunda fase, produziu o documentário Terra sem Pão (1932), “que não era surreal nem comercial”, diz Sílvia, sugerindo que essa obra alimentou de vez a perseguição do governo franquista ao cineasta. “Nesse filme, Buñuel revelou sua preocupação com as mazelas sociais. Através das fantasias tentava conscientizar os espectadores sobre as questões sociais, políticas, morais e religiosas”, enfatiza.
A segunda fase tem início nos anos de 1940, quando Buñuel se muda para o México, onde produz filmes mais comerciais para agradar ao público. Entre os títulos, Os Esquecidos (1950) e O Anjo Exterminador (1962). Chamada de europeia, a terceira fase é a mais lembrada, com filmes que remontam ao conceito de cinema de autor, sendo reconhecida como um amadurecimento do cineasta. Nela tivemos A Bela da Tarde (1967), O Discreto Charme da Burguesia (1972) – vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1973 – e O Fantasma da Liberdade (1974).
Em A Bela da Tarde, a personagem de Catherine Deneuve recebe uma caixinha. O conteúdo não é mostrado ao espectador, só às parceiras da atriz em cena. Ao ser questionado em entrevistas sobre o que havia dentro da caixa, Buñuel respondia: “O que você quiser”. Tal postura ajuda a entender como conduzia seus trabalhos e, segundo o crítico de cinema José Geraldo Couto, a passagem é exemplar da relação que Buñuel estabelecia com seu espectador, “deixando-o livre e, mais que isso, instigando-o a participar ativamente da fabulação, em vez de apresentar a ele uma verdade fechada, uma mensagem de mão única”, opina o crítico, reforçando a qualidade do diretor em criar um continente próprio no cinema. “Penso que nenhum outro cineasta aboliu com tanta desenvoltura a fronteira entre o real e o imaginário, ou seja, entre os acontecimentos da chamada ‘realidade’ e as manifestações do sonho, da fantasia e da imaginação. Acho que é essa característica que distingue o cinema de Buñuel, constituindo o que chamei de seu continente”, explica Couto.
O escritor mexicano Octavio Paz disse em vida que o cinema de Buñuel tanto nos revelava a realidade humana como nos mostrava uma via de ultrapassá-la. Embora tenha regressado à Espanha nos anos de 1970 para rodar seus últimos filmes, Buñuel se naturalizou mexicano e viveu na Cidade do México até morrer em decorrência de um câncer, em julho de 1983.


BOXE - A fundo

Veja sugestões de livros e filmes que jogam luz no mosaico ideológico de Luis Buñuel

Para uma introdução ao surrealismo, Thiago Gil recomenda a coletânea Manifestos do Surrealismo, de André Breton (Editora Nau, 2001). Para um estudo de como o movimento foi percebido no Brasil, a dissertação de mestrado do pesquisador, Uma Brecha para o Surrealismo: Percepções do Movimento Surrealista no Brasil entre as Décadas de 1920 e 1940 (no prelo pela Alameda Editorial), pode ser acessada gratuitamente no site: www.teses.usp.br/
Além dos filmes realizados em parceria com Salvador Dalí, Um Cão Andaluz (1929) e A Idade do Ouro (1930), Sílvia Marques indica o documentário A Propósito de Buñuel (José Luis López-Linares e Javier Rioyo), lançado nos anos 2000.
Outras obras importantes são a autobiografia de Buñuel, Meu Último Suspiro (Cosac Naify/ Mostra Internacional de Cinema, 2010), e também as publicações em espanhol El Ojo de Buñuel: Psicoanálisis desde una Butaca, de Fernando Cesarman (Anagrama Editorial, 1976), e Luis Buñuel: Biografia Crítica, de Francisco Aranda (Lumen Editoral, 1975). 

Clássicos na telona

Filmes marcantes da história do ¿cinema são exibidos no Sesc Pinheiros

Entre os meses de março e abril o Sesc Pinheiros deu continuidade ao projeto Tela Clássica exibindo oito filmes dirigidos por Luis Buñuel. Técnico de programação da unidade, Cristiano Luiz Sottano explica que o ciclo foi organizado em ordem cronológica, passando pelos filmes experimentais de Buñuel, Um Cão Andaluz (1929) – sob influência e com coautoria do amigo surrealista Salvador Dalí – e A Idade do Ouro (1930), para em seguida mostrar uma produção da chamada fase mexicana, Os Esquecidos (1950), com o qual conquistou o prêmio de melhor diretor em Cannes em 1951. Além desses, Viridiana, de 1961, banido da Espanha por ser considerado um manifesto anticatólico, grande vencedor da Palma de Ouro em Cannes, O Anjo Exterminador (1962) e A Bela da Tarde (1967), com Catherine Deneuve, foram exibidos em março. “Em abril a mostra prossegue com três produções franco-italianas, O Discreto Charme da Burguesia (1972), com roteiro original do parceiro e colaborador Jean-Claude Carrière, O Fantasma da Liberdade (1974) e Esse Obscuro Objeto do Desejo (1977), último trabalho do cineasta”, acrescenta Cristiano. Os títulos que integram a programação da Tela Clássica são exibidos gratuitamente no auditório, (3º andar) do Sesc Pinheiros, sempre às 20h. Consulte a programação completa no Em Cartaz.