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Hora de Comer

ilustração: Marcos Garuti
ilustração: Marcos Garuti



A alimentação sustentável ganhou força nas últimas décadas como uma alternativa para quem busca se alimentar sem colocar em risco o equilíbrio com o meio ambiente. O movimento visa retomar hábitos como preparar as refeições em casa, evitar industrializados, utilizar orgânicos e valorizar os produtores locais. De que forma essas atitudes podem contribuir para o desenvolvimento, a conservação do meio ambiente e a saúde de cada um de nós? Analisam o assunto o especialista em desenvolvimento sustentável e negócios Antonio Lombardi e a chef especializada em gastronomia orgânica Leila D.


A gente tem fome de quê?
por Antonio Lombardi

Desde que o movimento pela sustentabilidade ganhou força, essencialmente a partir de 2005, com a entrada em vigor do Protocolo de Quioto, a preocupação com os alimentos vem crescendo. Primeiro foi a grande indústria alimentícia a ser atacada. Seus métodos de produção e a forma como produzem a matéria-prima de que se servem têm sido severamente questionados. Em paralelo, os alimentos orgânicos vêm ganhando força. Recentemente, em São Paulo, no Parque da Água Branca, aconteceu a feira de produtos orgânicos que há alguns anos vem movimentando a capital. Por lá passaram mais de 30 mil visitantes. Em outro paralelo temos a enxurrada de dietas que desde os anos 1980 povoam os noticiários e a vida das pessoas, sempre preocupadas com estética. Mas, afinal de contas, o que é comer bem? O que é alimentar-se de maneira sustentável? Para ser sustentável tem de ser orgânico? Vejamos…
A primeira coisa a dizer é que não devemos demonizar a indústria de alimentos simplesmente por fazê-lo. A produção de alimentos em escala e no modo industrial foi, num dado momento histórico (de meados do século 19 a meados do século 20), muito importante. Ofereceu alimentação de qualidade a milhares de pessoas que não tinham acesso a comida decente, uniformizou matérias-primas e assegurou muitos empregos, na lavoura e nas fábricas. Então, qual o problema da indústria? Essencialmente a forma muito mais industrial e menos humana com que vem sendo administrada. Sendo um negócio, está sujeita às mesmas demandas de performance e resultados que qualquer outra indústria.
Com isso, o uso de pesticidas, adubos químicos, ingredientes – no caso de alimentos prontos – como sódio, gordura vegetal hidrogenada e açúcares, que transformam os alimentos em algo não tão saudável quanto esperado, passaram a ser intensamente usados. É o caso do famigerado DDT, hoje proibido, que provoca mutações genéticas em plantas e animais. Mesmo legumes, verduras e frutas recebem doses maciças de químicos que tornam esses produtos algo diferente do que esperamos de coisas que têm aparência de saudável. Isso quando não são geneticamente modificados. Sem falar em frangos que recebem antibióticos desde o dia em que nascem e gado que já não sabemos mais como se produz. Além de outras informações que passam despercebidas, como o fato de que cerca de 80% da soja produzida no mundo é destinada à alimentação animal.
A partir do momento em que grandes conglomerados alimentícios passaram a ser listados em bolsa e administrados como qualquer empresa, a busca por resultados e redução de custos ganhou terreno. Mas a indústria alimentícia não é uma qualquer. Estamos falando de produtos intimamente ligados à vida. E aí nos perguntamos: o que é comer bem? Todos já sabemos que não se trata de quantidade, mas de qualidade. Em que pese muita gente ainda acreditar que toda boa refeição deve ter quantidades pantagruélicas de comida. Se sabemos disso, por que temos tanta dificuldade em mudar? Mais do que isso, nos acostumamos a comer o dia todo. Além de ser um mau hábito, comemos em geral porcarias. Então, para facilitar sua vida, vamos combinar o seguinte: a partir de hoje se você não estiver com fome suficiente para comer uma maçã inteira, não coma nada.
A partir de hoje você também vai parar de confundir alimentos energéticos com alimentos calóricos. São coisas bem diferentes. E por isso mesmo você vai compreender que chocolate pode até ser gostoso, mas é calórico. Castanha-do-pará pode não ser tão sexy quanto o chocolate, mas tem muita energia, faz bem à saúde e é um produto que só existe no Brasil.
Mas alimentar-se bem tem tudo a ver com alimentar-se de maneira sustentável. O que é isso, afinal de contas? Simples: tem a ver com as escolhas que fazemos. Parar de jogar comida no lixo também é altamente sustentável, tanto quanto separar itens para a reciclagem. Contudo, a fundamental decisão está naquilo com que decidimos nos abastecer – e às nossas famílias – no momento em que vamos ao supermercado ou ao restaurante. É verdade que nossas vidas andam muito mais dinâmicas e com menos tempo disponível do que a vida das nossas avós, mas também é verdade que nos tornamos preguiçosos. Afinal de contas, é muito mais fácil comprar um bolo pronto do que ter de preparar um. Entretanto, você não pode fechar os olhos ao fato de que comida feita em casa oferece muito menos riscos à saúde do que aquela comprada pronta. Alimentação sustentável é, atualmente, a grande sensação em países como Estados Unidos, Itália, França e Reino Unido. Almoçar em restaurantes pode ser bacana, mas por lá as pessoas “chiques” levam sua comida de casa.
Não se aborreça. Não fique preocupado só porque não conhece nenhuma quitanda de produtos orgânicos. Evidente que gêneros orgânicos são o que há de melhor e não tenho dúvidas de que a humanidade caminha nessa direção. Mas antes de buscá-los, procure entender o que é ser sustentável na hora de comer.
Acredito e defendo que uma das coisas mais sustentáveis que podem ser feitas em termos de alimentação é prestigiar o comércio e os produtores locais. Em vez de comprar em grandes redes varejistas, prestigie os comerciantes do seu bairro. Se ele não tem hoje o que você busca, pode estar certo de que se a demanda aumentar ele passará a ter. Além disso, há um grande número de pequenos produtores, no Brasil todo, que diariamente oferecem frutas, verduras, legumes, ovos, queijos, iogurte e muitas outras coisas. São produtos elaborados em pequenas propriedades ou pequenas cooperativas. Mesmo na cidade de São Paulo há diversos fornecedores que entregam, uma vez por semana, na sua casa, uma cesta com produtos direto da fazenda. Muitos deles orgânicos.
Alimentos industrializados têm alguns riscos ocultos e sobre os quais poucas pessoas comentam. Tenho uma amiga que, há alguns anos, foi internada com uma grave crise renal. Uma constelação de pequenas pedras em ambos os rins. ¿Claro que ela ficou bem, mas, ao investigar as causas desse evento, seu médico ficou intrigado, justamente porque ela só comia o que era preparado em casa (ela leva comida ao trabalho até hoje). Até que descobriu sua paixão por chás. Sim, chá. Não aquele feito a partir dos saquinhos, mas aqueles engarrafados, comprados prontos nos supermercados. Bingo! Esses produtos têm uma quantidade enorme de sódio. Quando você lê nos rótulos dos alimentos que ali há conservantes, não se engane, é sódio. O mesmo presente no cloreto de sódio (NaCl), o sal de cozinha. Separado do cloro, o sódio não tem gosto e é o responsável pela conservação de alimentos desde a mais remota antiguidade, vide a nossa carne seca.
Outra atitude sustentável, além de escolher bem o que vai comer, é resgatar uma tradição ancestral e que foi perdida: a preparação do alimento em família. Sim, isso mesmo. Em vez de deixar tudo a cargo da esposa ou da mãe, que tal reunir a família para produzir o que será consumido? Em vez de bolo pronto, fazer um bolo em casa. Da mesma forma pães, biscoitos, sucos e o que você conseguir imaginar. É mais barato do que comprar pronto e, pode ter certeza, depois que se acostumar com sabor do que é feito em casa, não vai querer comer outra coisa. Adicione a essa receita de sucesso a enorme quantidade de informações disponíveis sobre comida saudável na internet.
Resumindo, nem tudo o que parece saudável o é de verdade. Para ser sustentável não necessariamente o alimento precisa ser orgânico. Mas é bom começar a perseguir os orgânicos (confira as certificações!). Prestigiar o comércio e os produtores locais é uma ideia mais do que sustentável, assegurando emprego e renda para muitas pessoas como você. Finalmente, prepare a própria comida e com isso você começará a dar mais valor ao que come, a respeitar o alimento em si, quem o produz e, principalmente, você mesmo. Coma bem e seja feliz!

Antonio Lombardi é advogado e especialista em desenvolvimento sustentável e negócios, pós-graduado pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e com especialização em gestão de projetos. É sócio fundador da Lombardi & Co. e consultor associado da Green Domus Desenvolvimento Sustentável

"Uma das coisas mais sustentáveis que podem ser feitas em termos de alimentação é prestigiar o comércio e os produtores locais. Em vez de comprar em grandes redes varejistas, prestigie os comerciantes do seu bairro."

 

Gastronomia evolutiva
por Leila D.

Existem somente três substâncias brutas que conscientemente absorvemos para sustentar o nosso processo de vida: comida, ar e água. No passado, respirar e beber água não exigiam muitas reflexões. Antes da poluição do ar e da água, isso era automático. A comida, por outro lado, consome muito o nosso tempo.
Vamos ao supermercado ou às lojas de alimentos naturais para comprar os alimentos. Também devemos plantá-los ou ganhar o dinheiro para comprá-los. Ao completar esse processo, deveríamos ter uma compreensão especial sobre nossa comida. No entanto, nos últimos 200 anos, para a maioria de nós, esse conhecimento foi se perdendo e sendo esquecido.
Precisamos resgatar outra forma de pensar sobre a alimentação consciente e justa. Perdemos a ligação instintiva com a qualidade da comida e com a Mãe Terra. Não sabemos mais a sazonalidade dos alimentos e de que forma a natureza nos oferece o melhor a cada estação. Com as tantas novas descobertas na “ciência da nutrição”, há tantos detalhes de fato diversos que não podemos nos manter atualizados com o que e como comer. Os nossos parâmetros conceituais básicos, as nossas percepções do significado da nutrição e os nossos próprios instintos naturais estão confusos.
A gastronomia sustentável e evolutiva tem como proposta alimentar a pessoa como um todo – corpo, mente e espírito. Com essa base, podemos propor um novo paradigma. Hipócrates há centenas de anos atrás dizia: “Faça do seu alimento o seu medicamento”. 
O movimento em favor da agricultura sustentável ou orgânica surgiu em um momento de crise para o meio ambiente e, de forma geral, para a agricultura baseada no padrão técnico moderno. Apesar de as primeiras correntes de agricultura orgânica terem surgido nas décadas de 1920 e 1930, foi no final dos anos 1980 e principalmente nos anos 1990 que organizações ligadas à produção orgânica se multiplicaram e a produção cresceu em quantidade, qualidade e diversidade.
Depois das conferências da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1972, 1982 e 1992 fortaleceram-se as evidências de que a agricultura e a agropecuária haviam se tornado a principal fonte difusa de poluição ambiental, colocando em risco a estabilidade da vida no planeta e das gerações futuras.
Pode-se relacionar a agricultura orgânica com a promoção da base da saúde humana. Essa relação se estabelece, primeiramente, a partir da oferta de alimentos com baixa toxidade e melhor valor nutricional, que apresentam ação preventiva contra carências vitamínicas, minerais e doenças crônico-degenerativas.
Temos o poder de nos recusarmos a consumir o que é prejudicial para a nossa saúde e para a conservação do planeta. Como há pouco controle por parte do governo ou das indústrias químicas, a responsabilidade por nossa saúde está em nossas mãos, como sempre esteve. Então vamos colocar o nosso dinheiro onde está a nossa boca e comprar produtos orgânicos sempre que possível.
Ao comprar produtos orgânicos não ajudamos apenas a evitar o envenenamento do nosso alimento por pesticidas, mas também apoiamos os agricultores que estão reconstruindo o nosso solo. É um círculo virtuoso: quanto mais agricultores que cultivam alimentos sem veneno existirem, mais barato pagaremos pelos produtos orgânicos.
A forma de produção de alimentos dentro do padrão convencional técnico e moderno tem sido responsável pela contaminação de lençóis freáticos, rios e oceanos, comprometendo nossa água e a fertilidade do solo, destruindo a biodiversidade e fortificando a dependência de energia petroquímica e de agroquímicos.
Com a agricultura orgânica e sustentável, ao contrário, percebe-se o ambiente como um agroecossistema cujo modelo conceitual se centra na qualidade das águas e do solo – como um organismo vivo. A agricultura orgânica e sustentável, portanto, pode ser uma ferramenta poderosa para alcançarmos os objetivos de desenvolvimento do milênio, particularmente os referentes à redução da pobreza e ao meio ambiente.
Temos um grande desafio pela frente, alimentar o mundo de forma sustentável e saudável para todos neste planeta. Não se trata de rejeitar o sistema atual ou eliminar as tecnologias, mas, sim, de desfrutar suas potencialidades, de introduzir o conceito de qualidade sustentável como condição sine qua non antes de efetuar qualquer tipo de escolha.
Comer é um ato político. Quando escolhemos um alimento para comer, interferimos em toda a cadeia, adquirimos a responsabilidade ambiental, social, econômica, intelectual e espiritual. A sustentabilidade começa dentro da gente, cuidando do alimento que colocamos dentro do nosso pequeno mundo: o nosso corpo.

Leila D. é chef de cozinha especializada em ¿gastronomia orgânica e umas das idealizadoras ¿do Festival de Gastronomia Orgânica de São Paulo.


"Comer é um ato político. Quando escolhemos um alimento para comer, interferimos em toda a cadeia, adquirimos a responsabilidade ambiental, social, econômica, intelectual e espiritual."