Postado em
PS
Nossa língua portuguesa, mestiça e tropical
]
Nurimar Maria Falci
A língua portuguesa é comumente reconhecida como uma língua latina e neolatina, no primeiro caso por ter se originado da transformação do latim, e no segundo, por ter sofrido a influência de outras línguas locais já existentes, como a dos celtas e dos iberos, bem como a de diversos invasores através dos séculos, dentre eles os romanos, os bárbaros e os árabes.
"Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal! [...]" ("Mar português", Fernando Pessoa). Posteriormente, com os descobrimentos marítimos portugueses, a língua portuguesa viria a se expandir em diversos cantos do mundo do mundo, firmando-se como língua nacional e concorrendo com as línguas e com os dialetos nativos locais. Desse encontro, resultou frutos mestiços, muito saborosos, realmente especiais.
No Brasil: "[...] O passopetro, chefe dos passopretos da margem esquerda, pincha num galho de cedro e convoca os outros passopretos, que fazem luto alegre no vassoral rasteiro e compõem um kraal nos ramos da capoeira - branca. [ ...] - finca, fin-ca, qu'eu ranco! qu'eu ranco... (Sagarana - Guimarães Rosa)
Em Angola: "Ué, Mama ué? Senhora da Muximé! / Toma conta do meu homem/ Que está lá no mato ainda./ Com tantos pirigos a espreitar/ como posso me aquietar/não doer meu coração!/Lhe prometo uma vela /uma vela bem arta/no seu artar/se ele vortar depressa." (Muxima, Maria. F. Cabral)
Em Moçambique:"Rôsinha / Eu estar chatiado/ Não ir trabalhar / Rôsinha/ Agente aôje vai amar". (...) Rôsinha.... Eu vai comprar rimédio pra Chiquito/ele vai ficar bom/ eli ádibrincar. Tira capulana Rôsinha/ agente aôje vai amar! (Calane, Moçambique).
Em Cabo Verde: "Onda sagrada di Tejo?/ Dixá-me bejá bo água..../ dixá-me dá -bo um bejo/ Um bejo di mágoa/ um bejo de sodade... (Bejo di sodade, B. Leza)
Guiné Bissau, São Tomé e Príncipe, Timor Leste, Macau, Açores, Madeira, dentre outros, também receberam como herança essa língua poética, musical, doce mas simultaneamente guerreira e corajosa. Digo guerreira e corajosa pois foi com a língua portuguesa do colonizador que Angola - e em menor escala Moçambique - conseguiu sua independência, sua identidade cultural e se fez nação; foi primeiramente através da alfabetização, e posteriormente com a literatura, utilizada sob a forma de ficção e poesia, veículo de informação e de conscientização que se fez a sua história.
Ultimamente, outro fato interessante tem me chamado a atenção, contrariando as estatisticas mundiais, que colocam a língua portuguesa na retaguarda, junto com as línguas menos utilizadas no mundo, como uma quase "ilustre desconhecida", solitária e perdida nesse imenso continente sul-americano: a freqüência com que várias pessoas, oriundas de países heterogêneos, notadamente os de origem latina, germânica e até anglo-saxônica, dentre outros, se encantam ao ouvir-nos falar o português, língua, segundo eles, cadenciada, cheia de sensualidade e de melodia. Encantam-se até mesmo ao ouvir-nos falar seu idioma de origem com sotaque peculiar, "malemolente" e doce.
Nosso colonizadores portugueses sentem também uma certa admiração (embora na maioria das vezes não declarada abertamente) pelo "enxerto tropical" que fizemos com a língua européia que eles nos deixaram como herança, sobretudo na linguagem oral, através da fusão com alguns vocábulos e expressões indigenas, africanas e de outros imigrantes que por aqui passaram e continuam a passar.
Com o tão decantado processo de globalização e ainda com a intensificação da inserção mundial da informática no nosso dia-a-dia, nossa língua tem presenciado uma invasão cada vez maior de inúmeros vocábulos técnicos de língua inglesa utilizados na informática e que passaram a integrar nosso vocabulário cotidiano: formatar, deletar, print, hardware, software, link, end, dentre tantos outros modismos ingleses que vieram se juntar à enorme lista de termos, já sorrateiramente impostos ao nosso idioma como: out, in, cheesburguer, hot dog, ok, feeling, insight, feed back, forever, check in, rank mundial, e tantos outros tão rapidamente introjetados na linguagem escrita e falada.
Apesar da global invasão high tech, nossa língua portuguesa resiste e não se dá por vencida. Continua rainha no seu esplendor tropical, sempre generosa, mantendo firme suas raízes européias, o seu jeitinho africano de nunca dizer nunca, não, mas talvez, quem sabe, vamos ver, aceitando também as expressões regionais e os sotaques tão peculiares bem como os vocábulos e as expressões dos inúmeros imigrantes que contribuíram e ainda contribuem na formação do nosso país e da nossa identidade cultural, tornando-se cada vez mais incrivelmente bela, mestiça charmosa eu ousaria a dizer, através dos inúmeros poetas, escritores e letristas brasileiros.
Nossa língua é portuguesa, SIM, mestiça TAMBÉM, como mestiças são as nossas raízes, a nossa cultura. E estamos cada vez mais orgulhosos por essa maravilhosa capacidade caleidoscópica que ela tem de se expressar sob tantas formas diversas: "Vamo brincá de ficá bestando e fazê um cafuné no outro e sonhá que a gente enricô e fomos todos morar nos Alpes Suiços e tamo lá só enchendo a cara e só zoaindo? Vamo brinca que o Brasil deu certo e que todo mundo tá mijando a céu aberto, num festival de povão e dotô?"(Hilda Hilst).
Nurimar Maria Falci - Técnica da Gerência de Ação Cultural do Sesc e Mestra em Literatura e Ciências Sociais.