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Em Pauta
Lazer

Um tempo de resistência

Durante toda a nossa vida somos preparados para o trabalho. A escola e a família nos ensinam a valorizar o tempo utilitário, sem cuidar em nenhum momento de nos educar com vistas a fruir o tempo livre e o lazer. Neste Em Pauta - 500 anos, especialistas debatem o tema em artigos exclusivos

Teixeira Coelho

Coisas estranhas andam acontecendo com a idéia e a prática do lazer, no mundo todo. Estranhas e preocupantes. Nos Estados Unidos, o tempo livre dedicado a atividades menos ou mais culturais (ir ao cinema, por exemplo) vem se reduzindo acentuadamente (40 horas semanais ou menos). No outro lado do mundo, no Japão, dados de meados da década de 1990 mostravam que mais de 80% dos softwares adquiridos cabiam na classificação "divertimento puro" (games), entrando na categoria dos "educacionais" o total insignificante de 0,8%.

Voltando aos Estados Unidos, o escritor Philip Roth, certamente sem conhecer a pesquisa japonesa e considerando apenas sua observação aguçada, constatou, em maio de 2000, que a sociedade atual, baseada na Internet, no vídeo, nos games, é uma sociedade que se afasta da procura de uma consciência maior da vida e do mundo (que deu a tônica à quase totalidade do século 20) e se entrega mais à superficialidade e aos efeitos de superfície, desinteressando-se pelo que um dia foi chamado de mistério humano.

E agora, em junho de 2000, um outro dado bombástico: uma pesquisa mundial indica que quase todos, no planeta, preferem ter mais dinheiro a ter mais tempo livre. Como para ter mais dinheiro é preciso, como norma, trabalhar mais, a conclusão é que as pessoas estão preferindo trabalhar mais a ter mais tempo livre. Como hoje as oportunidades de lazer (sobretudo lazer superficial, como observa Roth) são inumeráveis, mas custam caro, é possível até pensar que as pessoas queiram, sim, mais lazer e um lazer caro; mas, para tê-lo, precisam trabalhar mais - e ter menos tempo para se dedicar ao lazer... Mais um caso da famosa quadratura do círculo. Vale a pena?

Quando se começou a reduzir a jornada de trabalho, pensou-se que finalmente se entrava na sociedade do lazer. A França foi um dos primeiros países a adotar a jornada semanal de 35 horas. E a França, como se sabe, é o país da cultura. No entanto, ela é o segundo país do mundo, atrás apenas da Rússia, em número de pessoas que preferem ter mais dinheiro a mais tempo livre. Se isso não for preocupante, nada mais o será. E se para se ter lazer for preciso ter sempre mais dinheiro (é preciso pagar a mensalidade da academia, da passagem aérea, da TV a cabo, da Internet, da revista semanal, da escola dos filhos - em suma, hoje todo mundo vive de prestação, disfarçada em mensalidade...), como fica a situação se já se constata que estamos entrando na era da sociedade sem trabalho, uma vez que o trabalho desaparece sem que se fale de onde virá a renda para manter uma sociedade de desempregados e com empresas altamente concentradas na produção e na renda?

O trabalho (que some cada vez mais) pode não ter sido transformado em valor absoluto, e o lazer pode não ter sido desqualificado inteiramente. Mas no mundo todo as pessoas estão mais desesperadas com a falta de trabalho digno e ao mesmo tempo obcecadas com a idéia de entregar-se a um lazer de fato, na maior parte das vezes, de todo superficial. Esta não é mais nem uma cultura do trabalho, nem do lazer.

Para voltar a ter o lazer que os ideólogos do tempo livre um dia previram, será necessário não mais apenas ter mais dinheiro e mais espaços apropriados, mas ter um preparo muito maior - uma educação bem mais ampla que mostre (e justifique) para as pessoas o caminho para um outro padrão (qualidade) de vida. Claro, será preciso dizer de onde virá o dinheiro para pagar por esse lazer. Mas agora é necessário voltar a dizer o que é o lazer e preparar para o lazer. Parece que ninguém se lembra mais do que um dia foi o lazer.

Teixeira Coelho é diretor do Museu de Arte Contemporânea da USP

Domenico De Masi

O nosso modelo atual de vida formou-se no decorrer de muitos séculos, quando a duração da existência humana era de aproximadamente 350 mil horas, sendo metade delas consagradas ao esforço físico. Em apenas três gerações, dos nossos bisavós até nós, a expectativa de vida dobrou, ultrapassando as 700 mil horas, das quais só um décimo é dedicado ao trabalho, agora predominantemente intelectual.

Ao mesmo tempo, graças ao progresso tecnológico, ao desenvolvimento organizativo e à globalização, aprendemos a produzir uma quantidade crescente de bens e serviços com uma quantidade decrescente de trabalho humano. Nos países industrializados, as horas anualmente dedicadas ao trabalho baixaram de 3.100 para, aproximadamente, 1.800.

Se a vida média aumenta e as horas dedicadas ao trabalho diminuem, o tempo livre é maior, isto é, as horas que podemos dedicar ao estudo, ao jogo. E tudo isso é condizente com o desenvolvimento da humanidade que, desde a noite dos tempos, sempre procurou afugentar a morte, eliminar a fadiga e o sofrimento, aumentar as horas de despreocupação e de livre criatividade.

Infelizmente, porém, o nosso atual modelo de vida formou-se quando vivíamos pouco e trabalhávamos muito, de modo que o trabalho assumiu o papel principal, excessivo, até mesmo mitificado, tanto no plano civil como no religioso, e todos - a família, a escola, a sociedade inteira - preocupam-se em educar-nos para o trabalho, descuidando da formação para o tempo livre.

Conseqüentemente, essa parte preciosa, crescente e desprezada da nossa existência, capaz de nos fornecer energias, estímulos, inspiração, cultura, idéias, divertimento, alegria, é muitas vezes desperdiçada para "matar o tempo" em vez de valorizá-lo, dissipando-o no tédio ou até mesmo envenenando-o com a droga e a violência.

Se a tendência das últimas décadas continuar (e por que não deveria?), de um lado seremos sempre mais longevos, mais abastados e mais cultos, de outro teremos à nossa disposição meios sempre mais fáceis e baratos para viajar, para comunicar, para nos divertir.
Mas pelo menos duas questões continuam em aberto. A primeira questão consiste no fato de que, sendo agora o trabalho de natureza predominantemente intelectual, ele vai se confundir e se misturar cada vez mais com outras duas atividades intelectuais: o estudo e o jogo, determinando essa síntese vital que eu chamo de "ócio criativo". O trabalho, portanto, não será mais uma condição incômoda, um doloroso castigo bíblico como era para o operário na linha de montagem, mas se transformará em uma situação agradável como a do artista ou a do professor, na qual o trabalho que produz riqueza confunde-se com o estudo que produz aprendizado e com o jogo que produz alegria. Saberemos nos adaptar a esse progresso, reprimindo o nosso masoquismo sempre traiçoeiro?

A segunda questão consiste no fato de que durante os últimos dois séculos, muitos países se industrializaram, aprendendo a trabalhar e produzir riqueza, mas esquecendo como viver o ócio e produzir alegria. O resultado está à vista de todos: povos riquíssimos, como o americano e o sueco, neuróticos e incapazes de viver com serenidade o tempo livre, colocando a felicidade em primeiro plano na hierarquia de valores. Justamente agora que eles conquistaram o tempo e o bem-estar para serem usufruídos não sabem mais como fazê-lo, correndo o risco de transformar o ócio em alienação em vez de enaltecê-lo como arte criativa.
Devemos, portanto, reavaliar aquelas poucas regiões do mundo ainda capazes de viver o tempo livre sem sentimentos de culpa e com impetuosa vitalidade. Esses "parques antropológicos" da festa e da vocação para a alegria, como o Rio de Janeiro e o Nordeste do Brasil, como a Andaluzia, na Espanha e como Nápoles, na Itália, são verdadeiras reservas de humanidade, assim como a Amazônia é uma reserva de oxigênio. Por isso, devem ser preservadas com a mesma zelosa apreensão, defendendo-as a todo o custo do racionalismo exasperado das sociedades dominadas pelo mercado competitivo.

Só quem é verdadeiramente sábio pode chegar a compreender que a sabedoria não é tudo.

Domenico De Masi é Professor de sociologia da Universidade La Sapienza, de Roma, presidente da SIT - Società Italiana per il Telelavoro e diretor da revista Next- Instrumentos para a Inovação

Admir Júnior

Acredito que na atualidade a discussão acerca dos efeitos do processo de globalização na sociedade brasileira seja crucial. Dentro desse contexto a temática do lazer e suas interfaces com o mundo do trabalho ocupa um lugar central.

Dentre as grandes transformações ocorridas neste final de século em função da intensificação do processo de globalização, pode-se destacar os processos produtivos sendo realizados em escala mundial, a internacionalização da economia, a mundialização da tecnologia da informação, além de uma mudança brusca nas relações técnicas no mundo do trabalho, advindas sobretudo do impacto das novas tecnologias de produção e gerenciamento sobre o mesmo.

Alguns estudiosos acreditam que as transformações que vêm ocorrendo no mundo do trabalho favorecem o aumento do tempo livre/disponível para o lazer. Essa afirmação não deixa de ser correta, sobretudo se considerarmos a realidade de países centrais pertencentes às sociedades capitalistas contemporâneas. Nesses países, onde algumas conquistas sociais ainda são garantidas, como, por exemplo, o salário-desemprego e a redução da jornada de trabalho, pode-se perceber um aumento significativo do tempo livre/disponível e, conseqüentemente, utilização do mesmo em atividades de lazer.

Mas, e a nossa realidade? Como é que se tem configurado o lazer e a apropriação do tempo livre/disponível na sociedade urbana brasileira?

De início, é preciso pontuar que no Brasil é forte o discurso que alia as transformações técnicas dentro dos processos de trabalho à noção de progresso e de uma real apropriação do tempo livre/disponível. Segundo o professor e geógrafo Milton Santos, esse discurso cria, na verdade, mais uma miragem, como tantas outras criadas no bojo do processo de globalização.

Parece-me claro que ao conquistar ou se apropriar de seu tempo livre/disponível, o cidadão brasileiro se vê frente a um paradoxo. Isso porque o seu tempo de lazer tanto pode ser preenchido pela vivência de valores que podem contribuir para um projeto de emancipação individual e social, promovendo mudanças de ordem moral e cultural, como pode ser tomado e controlado pela indústria cultural do entretenimento. Dessa forma, as atividades de lazer podem ser consideradas, potencialmente, mercadorias.

Entretanto, ao considerarmos o lazer como um campo de criação humana, não podemos deixar de considerá-lo um espaço privilegiado de práticas culturais de resistência à lógica do discurso globalizante da indústria do entretenimento. Ao mesmo tempo que a globalização faz com que a apropriação do tempo livre/disponível se dê de forma pouco crítica, ela mesma cria condições para que grupos de identidade cultural diferenciada reivindiquem e proponham vivências culturais de lazer adequadas à sua realidade e contexto social.

Nesse sentido, acredito que o papel dos setores público e semipúblico seja primordial na perspectiva da criação de políticas e projetos que democratizem o acesso aos conteúdos culturais do lazer.

Admir Soares de Almeida Jr. é Professor do curso de Educação Física do Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH), Membro do CELAR (Centro de Estudos do Lazer e Recreação), Especialista em Lazer, Mestrando em Educação

Heloisa Turini Bruhns

Mudanças significativas vêm ocorrendo na contemporaneidade, exigindo olhares novos e diferenciados em relação ao quadro social no qual estamos inseridos. Isso significa afirmar a pluralidade sociocultural que evidencia a complexidade do real.

Considerando essa exigência, citarei dois casos para exemplificar como instrumentos tradicionais de análise - considerando lazer como tempo destacado ("tempo livre") e bem determinado em relação ao todo da vida - mostram-se obsoletos.

O primeiro refere-se ao processo de desindustrialização e de reestruturação ocorrido nas grandes metrópoles. Esse processo resulta em poucas opções para as mesmas, além de aumentar a competição entre elas, que se tornaram centros financeiros, de consumo e de entretenimento. Foram criados meios para atrair capital e pessoas do tipo certo a partir de meados de 1970. Na preocupação com imagens positivas e de alta qualidade, as metrópoles desenvolveram projetos urbanos e arquitetônicos, que se tornaram suas identificações. Exemplo de Curitiba com o circuito urbano propiciado pelo passe-passeio e de São Paulo com os grandes shoppings. Devo alertar para o aspecto perverso desse processo manifestado na "expulsão" dos antigos moradores de baixa renda dos centros urbanos.

Alguns empreendimentos denominados business centers surgiram nesse contexto, envolvendo num mesmo espaço uma sinergia entre trabalho (redes sofisticadas de informática proporcionando acesso aos maiores nomes do setor de terceirização de serviços do mundo, bem como salão de convenções com auditório para até quatrocentas pessoas), lazer (piscinas aquecidas, academias de ginástica, saunas, bares e restaurantes) e moradia ou residência temporária (flats, lofts e outros).

Passando para um ambiente mais "natural", algumas atividades revelam a dificuldade de enquadramento num ou noutro setor da existência (lazer ou trabalho), traduzindo conceitos da "nova cidadania mundial".

Temos os denominados "ecovoluntários", oriundos de diversas partes do planeta, chegando a desembolsar quantias consideráveis ou irrisórias (dependendo da proposta), viajando para trabalhar e participando de programas como observar abutres na Croácia ou baleias nas Ilhas Canárias, contar a população de morcegos "raposa voadores" na Índia, acompanhar o nascimento de tartarugas no Brasil, dentre outros, muitas vezes (pois nem todos os programas ecológicos são sinônimo de pouca estrutura) devendo preparar a comida e auxiliando na limpeza do barco onde ficam hospedados.

Esses mixes envolvendo lazer e trabalho nos mostram a necessidade de enfocarmos a questão considerando a ambivalência e a contaminação de diversos elementos (sério e frívolo, razão e emoção, público e privado) vividos na sua reversibilidade constante, de maneira concomitante, sem fixação de hierarquias, repelindo enquadramentos rígidos.

Heloisa Turini Bruhns é professora doutora no Departamento de Estudos do Lazer da
Faculdade de Educação Física daUnicamp

Adyr Balastreri Rodrigues

Ao serem definidas as megametrópoles que concentravam grande parte da produção material no auge do desenvolvimento industrial, processo intensificado a partir da Segunda Guerra Mundial, a cidade foi alardeada como monstro causador de estresse. Paralelamente, criou-se a "indústria" do lazer e do turismo, que consagrou a viagem como a única forma de se livrar das neuroses urbanas e do cotidiano constrangedor das cidades. Tudo é divulgado como se o trabalho fosse intrinsecamente desagradável e a viagem sempre prazerosa. Acompanhando o desenvolvimento das formas de produção material, expandiram-se enormemente as formas de produção não-material e, conseqüentemente, do consumo não-material, como o lazer e o turismo, produtos criados e ampliados pela sociedade de consumo de massa.

Atualmente, o cotidiano é marcado cada vez mais pelo enclausuramento. Vivemos uma realidade travestida pelo simulacro. Desaparece a rua como locus da sociabilidade. Da mesma forma que desaparecem a família e a rua, as relações de vizinhança e de compadrio, tende a desaparecer o lugar, entendido por Milton Santos como o "acontecer solidário da vida cotidiana". Observamos assustados um aumento brutal da violência, do terrorismo e do vandalismo. Pesquisas recentes sobre a periferia social na metrópole paulistana revelam que a violência é mais freqüente nos bairros onde não existem alternativas de lazer, intensificando-se nos fins de semana. Outro agravante recente: a violência extrapola da periferia social para os estratos sociais favorecidos.

O convívio nas grandes cidades vai se enfraquecendo na medida em que a nova megavia de comunicação - a Internet - penetra nas empresas, nas universidades, nos lares, nos bares. A ciberestrada tornou-se rapidamente o canal de comunicação global. O homem consegue tornar-se onipresente - além de estar em vários lugares ao mesmo tempo, pode interagir simultaneamente com o passado, com o presente e com o futuro. Porém, os efeitos perversos do mundo globalizado virtual, paradoxalmente doméstico, conduzem a humanidade à solidão.

Qual seria o contraponto desse processo?

O historiador Domenico De Masi, que tem se dedicado a estudar o ócio como um tempo de criação (O Ócio Criativo), mostra que na sociedade contemporânea é cada vez mais difícil distinguir o tempo do trabalho de outros tempos. Há que se considerar os novos tempos que surgem na chamada pós-modernidade: o tempo dos desempregados, dos ocupados na produção flexível, dos empregados em part time, dos que se dedicam ao teletrabalho e o tempo cada vez mais amplo dos aposentados, graças ao grande aumento da expectativa de vida. São preciosos "tempos livres" canalizados para as mais variadas funções, de natureza individual ou social: passiva, ativa, criativa, laboral, física ou mental. Os hobbies vão se mesclando às atividades remuneradas na invenção de novas e prazerosas ocupações. Como diz De Masi "aprende-se, enfim, a viver a plenitude da vida pós-industrial, feita não só de trabalho cansativo, mas também de ócio inteligente".

Há que se resgatar as formas de expressão cultural nascidas e administradas pelos segmentos excluídos, formas genuínas de lazer, com grande força política porque mobilizam a sociabilidade e, por extensão, reforçam a solidariedade.

Adyr Balastreri Rodrigues é geógrafa

Dante Silvestre Neto

Gaston Bachelard, em A Poética do Espaço, refere-se à casa, ao lar, como "nosso canto no mundo", "nosso primeiro universo". Diz que "ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida". A casa protege, abriga, demarca território, põe fronteira entre o mundo de fora e o mundo de dentro, impõe um "daqui não passa" a tudo aquilo que, gerado no caos do universo exterior, ameaça atirar violências contra o domínio sagrado do eu recôndito. A casa é foco de resistência, trincheira frágil e derrisória, mas imponente em sua fidelidade, contra o excesso de mal no mundo.

Se a casa é uma resistência fincada no espaço, o tempo livre é uma casa no tempo. Ele é um tempo demarcado e conquistado, paulatinamente surrupiado, como ensina de boa cátedra Joffre Dumazedier, à sem-cerimônia invasiva do trabalho e das instituições que, movidas pelas melhores entre as boas intenções, reivindicam tomar o volante da vida de cada um. Ele é ou pode ser, ou, numa afirmação mais categórica, deve ser, um ato de resistência contra a heteronomia, palavra sombria que o Aurélio define como "condição de pessoa ou de grupo que receba de um elemento que lhe é exterior, ou de um princípio estranho à razão, a lei a que se deve submeter".

Ele é resistência contra o trabalho naquilo que este pode comportar de mais incômodo: fazer algo de que não se gosta, num lugar do qual não se gosta, em companhia de quem se desgosta, do jeito que não se quer, em troca do insuficiente.
Exagero? Sem perder de vista que, para uma minoria de homens e mulheres que trabalham, o trabalho é uma esplêndida fonte de felicidade e realização pessoal, cabe não esquecer que, para a grande maioria dos trabalhadores (de 70 a 80%), ele não é senão, para dizer o mínimo, uma amolação que se suporta apenas porque a espora da necessidade é pontuda. Hierarquias rígidas, condutas padronizadas, espaços desagradáveis, horários mal-humorados, regras intransigentes e repetitividade enfadonha transmutam alquimicamente o ganha-pão - que poderia ser razão de orgulho e felicidade - numa condenação mítica a fabricar milhões de Sísifos, todos a empurrar pedras morro acima, indefinidamente.

Ele é resistência contra o saber embrulhado no jornal de cada dia que, exceção feita a alguns bravos comentaristas, serve a sopa geral de banalidades úteis exclusivamente à conversa obrigatória na mesa de refeições ou na fila do banco; contra a estética dos sites e da publicidade televisiva; contra a musicalidade chinfrim do rádio autotransportado. Ele é tempo de largar o prosaico - obrigatório - e decolar para o extraordinário- conspiratório. Dentro dele é possível ler Eça, Machado, Morin, Tolkien e são João Evangelista. E jogar fora as letras e números da página econômica.

Ele é resistência contra o afeto estilizado da sociabilidade obrigatória, expresso pelo aperto de mão industrializado, pelo som burocrático do tapinha nas costas, ruído de carimbo batendo na certidão. Como é tempo de se estar com quem se quer, é tempo do abraço franco, que envolve, protege e troca temperaturas.

É resistência contra os erros da ação, sempre vaidosa de sua produtividade e quase nunca consciente do sentido, do significado e da utilidade daquilo que produz. É um tempo em que a liberação da obrigação de agir permite a pesquisa do sentido, a averiguação do impacto do agir do agente sobre o agido.

É resistência contra a espiritualidade formalizada em gestos de prostrar-se diante do Absoluto, aterrorizado pela expectativa do castigo, como se Deus fosse um Führer vingativo, ávido de submissões impostas, e não de adesões consentidas. Como não é tempo de obrigatoriedade de ir à igreja - de qualquer denominação - é possível e lícito dirigir-se ao Senhor do Tempo como quem fala a um pai afetuoso, não a um chefe de bando. É tempo de pedir conselho, de fazer críticas respeitosas ao estilo de administração do mundo, de modestamente sugerir métodos de gestão e controle de qualidade mais adaptados ao tempo presente do que àqueles em que o Pai era compreendido como um rude capitão de tropas no Sinai.

É, finalmente, um tempo de resistência contra o tempo; contra o tempo que passa e não diz a que veio, com que função e que serventia. É um tempo que libera de pensar e agir por delegação da necessidade, e que permite pensar por conta própria, sem compromisso com nada de sério a não ser com a descoberta do sentido profundo das coisas. É um tempo de resistência contra o tempo que nos saqueia aquilo que temos de mais precioso, que nos rouba presenças amáveis e as substitui por ausências insuportáveis. É um tempo em que, afastados temporariamente da pressão das necessidades, podemos perder tempo com inutilidades. Dá até para jogar fora duas horas assistindo a um filme como Todas as Manhãs do Mundo. Uma bobagem que só tenta ensinar que a música - e portanto a arte, o saber, o pensar, a chamada cultura, enfim - servem, entre outras coisas, para tornar presente o que está ausente, para trazer de volta o que o tempo levou. Ou será que isso se aprende batendo teclas oito horas por dia, seis dias em cada sete ?

Dante Silvestre Neto é sociólogo e gerente de Estudos e Desenvolvimento do Sesc São Paulo