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Entrevista
Laura de Mello e Souza
Em seu último livro, 1680 -1720 - O Império deste Mundo (Cia. das Letras), escrito em companhia de Maria Fernanda Baptista Bicalho, Laura de Mello e Souza retrata a virada do século 17 para o século 18. Nesse período particularmente crítico, quando o ouro é descoberto nas Minas Gerais, o Império Português vê de perto seu próprio declínio. A corrida pelo vil metal desencadeia fatores inéditos na colônia: o eixo econômico, até então vincado na elite açucareira, migra para o interior e, com ele, as decisões políticas passam a ser centradas no Rio de Janeiro. Essa breve síntese é estudada em minúcias pela historiadora de uma forma peculiar. Laura e sua geração são os pioneiros em remontar o passado a partir da história dos anônimos e dos desclassificados. Portanto, em meio à trama graúda, da visão macroanalítica, busca-se trazer à tona a vida dos comuns, o cotidiano dos não-Napoleões. Nesta entrevista, a chefe do Departamento de História da USP faz um relato sobre o ambiente sociopolítico do Brasil minerador, além de comentar as conseqüências do jugo colonial (leia a entrevista na íntegra no site www.sescsp.com.br).
Seu primeiro trabalho publicado tratava da inclusão das classes menos favorecida nas pesquisas de história. Em que momento a historiografia abre suas portas para os desclassificados?
De uma forma geral, a questão da exclusão entra muito forte a partir da década 60 na historiografia internacional. No Brasil, manifesta-se primeiro na sociologia e depois na história. Meu trabalho é um dos primeiros, senão o primeiro, a tratar diretamente da desclassificação. Naquele momento, a questão da marginalidade social entrava em voga. Do ponto de vista da história social e política, isso tem a ver com uma tradição marxista. O meu trabalho se distingue porque procura enveredar por uma perspectiva histórica. Ele foi influenciado diretamente por E. P. Thompson, um dos historiadores exponenciais na revisão de história da classe operária, que autor de A Formação da Classe Operária Inglesa. Para mim, como para outros historiadores, assumiu muita importância uma outra reflexão sobre exclusão, mas dotada de um viés filosófico, exemplificada pela obra de Michel Foucault. Na década de 70, por natureza um momento de profunda reflexão política, seu trabalho era uma maneira de pensar a exclusão que aparecia mais cifrada. Os Desclassificados do Ouro identifica-se com esse momento: trata-se de uma reflexão de fundo mais filosófico, que ainda não tinha condições de avaliar, mas que, ao mesmo tempo, me permitia apreender, do ponto de vista de uma reconstrução de objetos, as figuras do louco, do preso, do doente. Sem dúvida, a questão da exclusão, para toda a minha geração, foi colocada por Foucault, pelo marxismo e pela nova esquerda inglesa.
E, quase vinte anos depois, como desemboca esse movimento renovador?
Eu não diria que foi um movimento renovador. As ciências humanas estão sempre se renovando. O grande momento de renovação da historiografia brasileira foi com a publicação de Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808), do Fernando Novais. Até então, quando eu entrei na faculdade, as grandes análises do Brasil eram sociológicas, de autoria do Fernando Henrique Cardoso, do Octavio Ianni. Líamos muito Caio Prado Júnior, Celso Furtado. Afinal era um momento de repressão política e nós procurávamos muito os autores de filiação marxista. A primeira parte da minha formação foi muito marcada por esses autores, apesar de eu sempre tê-los usado de uma forma pouco ortodoxa. O livro do Fernando Novais é a culminância de toda uma tradição que tentava entender o Brasil por uma perspectiva de análise globalizante e de esquerda. Eu não diria que a minha geração teria desconstruído esse modelo: todos nós fomos profundamente influenciados pelo Fernando Novaes aqui em São Paulo, mas houve um movimento mais ou menos geral que apontou para a retomada das fontes empíricas. Esse movimento não foi fruto de um projeto. Tudo se passou de maneira muito espontâneo e aconteceu em várias partes do Brasil. Existia uma espécie de frenesi de voltar aos arquivos.
Em contraposição a quê?
Análises mais globais. Por exemplo, um trabalho como o do Fernando Henrique ou do Florestan Fernandes, trabalhos muito importantes, não foram feitos com documentos manuscritos. A base era a documentação impressa e muitas vezes de segunda mão, ou seja, reproduzindo o que a historiografia já dizia. Eu acho que a primeira característica da nossa geração é que houve uma espécie de mania por fontes primárias. E alguns pesquisadores descobriram muita documentação original nos processos que julgaram os casos de sodomia, de bigamia, de feitiçaria. Infelizmente, na leitura muito miúda da documentação, alguns trabalhos se perderam, inclusive alguns meus. Agora é o momento de aliarmos as duas coisas: as análises mais gerais e essa prática adquirida de grande conhecimento de arquivo.
Recentemente, a história começa a ganhar mais projeção no campo das ciências humanas, com publicações que agradam não só os profissionais especializados, mas também, o público leigo. Por que isso aconteceu?
Como historiadora, eu sempre vejo as coisas sob o ponto de vista da história. Sinto até um pouco de receio de distorcer um pouco os fatos, mas penso que a história tem um impacto maior no grande público porque é mais passível de duas leituras: uma funda e uma rasa. Digo isso sem preconceitos. A sociologia ficou muito marcada por um jargão. Ficou impossível para um homem medianamente culto pegar um livro da década de 60 ou 70 e ler à noite antes de dormir. Ele não vai conseguir. Para isso, vai precisar de uma série de códigos e de conceitos específicos. No caso da história, há duas leituras. Ela pode ser lida como uma narrativa ou como uma tentativa de compreensão que implica uma relação mais elaborada com a disciplina. Um exemplo que dou é a obra da Natalie Davis, com seu livro O Retorno de Martin Guerre. Essa é uma história fantástica, uma mulher que se casa com dois homens diferentes dizendo ser a mesma pessoa. É, na realidade, um livro extremamente complexo do ponto de vista metodológico. Mas ele permite as duas leituras. A antropologia também é uma disciplina que permite duas leituras. Além disso, a história se renovou, sobretudo na sua relação com a antropologia. Em alguns pontos, as fronteiras entre as duas disciplinas quase se dissolvem.
Nos seus trabalhos mais recentes, a senhora destaca como os legados do processo histórico brasileiro, o pluralismo cultural e a intolerância. Como esses conceitos interagens com a suposta democracia racial, propalada como um dos traços singulares do Brasil?
Eles são conflitantes. O Brasil é evidentemente um país pluricultural. É claro que o nosso pluralismo cultural é um valor positivo, mas não pode encobrir a violência. O fato de termos várias culturas e várias tradições culturais convivendo de uma forma mais ou menos harmoniosa não significa que sejamos um país cujos problemas tenham sido resolvidos, seja nas diferentes matrizes cultuais seja na desigualdade e injustiça social. Muito pelo contrário: uma sociedade plural não quer dizer que seja uma sociedade justa. Me parece que convivemos mal com esse pluralismo. Nem sempre estamos confortáveis na nossa pele. Às vezes, gostaríamos de ser apenas europeu. Em outros momentos, como nas postulações do movimento negro baiano, gostaríamos de ser só africano. Como se harmoniza isso? O fato de sermos plurais do ponto de vista cultural é uma realidade. Como se lida com isso é um outro problema. Às vezes, lidamos bem, às vezes, mal. Eu acho que no mundo do futuro o pluralismo cultural será uma riqueza. No entanto, precisamos tornar essa experiência positiva. Quanto à questão da democracia racial, acho que se trata de um engodo. A democracia racial representaria o acesso aos bens culturais e econômicos a todos. No Brasil, não existe tal democracia. Raramente se vê um negro ocupando um posto de destaque intelectual ou como dirigente político. A democracia racial é uma questão muito complexa em que patinamos toda vez que tentamos enfrentá-la. Devemos assumir nossa mestiçagem. Temos que portar isso como um valor e uma especificidade. Se os japoneses têm os olhos puxados e são mais amarelados, nós somos encardidos porque somos todos mestiços, como já bem dizia Gilberto Freyre. Somos assim e é assim que nós temos que nos ver e dizer aos nosso filhos que eles são. Só assim poderemos nos olhar no espelho. Na verdade, ainda não assumimos nossa mestiçagem cultural e étnica.
Por outro lado, o pluriculturalismo não pode ser utilizado como uma defesa para tentar disfarçar os conflitos sociais que desde sempre brotaram no seio da sociedade?
Eu acho que pode sim. Acho, inclusive, que é perigoso. Essas considerações podem levar a crer que nós acomodamos tudo, que nós somos uma sociedade não-violenta. Quando há um movimento de urgência social, como o MST, eles são colocados fora da sociedade, são tidos por baderneiros. Nunca se legitimam esses conflitos. Eles são sempre desqualificados. A violência nunca é qualificada, nunca é entendida como um dado do real. Isso porque se acredita que a nossa tradição é pacífica e não-conflituosa. Essa é a história que a gente conta para a gente mesmo há séculos. O pluriculturalismo foi um véu que encobriu conflitos sociais. A sociedade brasileira é muito perversa. É uma sociedade de meios tons. Toda cheia de subentendidos, que você precisa de códigos para decifrar. Fica muito difícil nos situarmos. Temos de tomar cuidado com o pluralismo cultural porque ele pode encobrir os conflitos. Conflitos com os quais lidamos muito mal.
Gostaria que a senhora discutisse a triste promiscuidade entre o público e o privado, outro legado pernicioso, muito bem identificado por Sérgio Buarque de Holanda, e que a senhora traz à tona nos seus trabalhos.
Esse é um aspecto que decorre da própria relação que a América portuguesa estabeleceu com o Estado português: um Estado que não esteve presente. Essa postura possibilitou que o bem público permanecesse muito difuso, uma vez que o Estado não se fazia presente. O que pairava na colônia era a representação do poder. A fonte real do poder estava do outro lado do mar. A distância com o poder central possibilitava manipulações e acertos informais. Mas na verdade houve muito tempo para que nós tivéssemos superado tudo isso. Como dizem alguns historiadores portugueses, não podemos culpar nossa herança colonial porque somos um país independente há praticamente 200 anos. Se pensarmos em outros países novos, notamos que é possível solucionar questões de uma maneira mais rápida e eficaz do que estamos fazendo no Brasil. A promiscuidade tem a ver, também, com a acomodação das elites desta terra que desde sempre tenderam a indistingüir o público do privado. As coisas públicas são sempre vistas como se não fossem de ninguém. É uma questão até ética, porque o político que não separa o público do privado infringe eticamente os códigos. Na verdade, não há uma relação do cidadão com o comum. Nós temos muita dificuldade de nos vermos como cidadãos.
Qual foi a importância da experiência mineradora do ponto de vista econômico e social no Brasil?
Nesse momento se cria um sistema de abastecimento interno. Agora, a historiografia privilegiou a economia exportadora. Quando eu digo privilegiar eu não digo que ela desconheceu a economia de subsistência. Esse é um dos enganos recorrentes. É como se aqueles historiadores, tais como Caio Prado Júnior ou mesmo Fernando Novaes, pesquisadores que se detiveram nos aspectos externos (economia de exportação e acumulação de capital nos centros hegemônicos) não tivessem se dado conta de que existe uma economia de subsistência e um mercado interno. Pelo contrário. O Caio Prado é um dos primeiros a chamar a atenção para a articulação do mercado interno e para a economia de subsistência. Só que eles não priorizaram isso em suas análises. No caso das minas, a grande novidade é que desde o início da mineração existe uma preocupação com a subsistência e com o abastecimento do mercado interno. Isso é um dado novo. É muito forte aquela imagem de que nos primeiros tempos morria-se de fome porque ninguém pensava em plantar. Mas nas escrituras de compra e venda das propriedades percebe-se que trinta anos depois da descoberta das minas havia pessoas preocupadas em criar moinhos para moer milho, para fabricar e comercializar aguardente. É preciso repensar essas relações. A mineração impõe, mais do que a pecuária, um ritmo diferente à colonização. E, sobretudo, repercute no plano político. Se até então tinha sido possível manter o centro político no Nordeste, a partir da descoberta das minas o centro político vai escorregando para o Sudeste. Até 1763, quando se consuma algo que já era fato: a sede do governo no Rio de Janeiro. Eu acho que o século 18 é o século que muda todo o equilíbrio do Império e que redefine a América portuguesa. Com a mineração, o Brasil ingressa definitivamente no mercado global.
Apesar da riqueza que a mineração produzia, havia resistência à busca do ouro?
Sim, isso é uma coisa milenar. A mineração é tradicionalmente tida como uma riqueza ilusória. Há a idéia de que a verdadeira riqueza é a da agricultura. No caso do Brasil, a resistência tem mesmo a ver com o interesse das elites do açúcar e das autoridades administrativas que, por sua vez, identificaram-se com essas elites. Depois de duzentos anos de colonização no litoral e de elites já bem sedimentadas na Bahia e em Pernambuco, de repente surge uma sociedade completamente aventureira e fluida, característica da sociedade das minas. Isso provoca um mal-estar muito grande. Mas realmente houve um preconceito imediato terrível das elites do litoral contra a mineração. A Coroa procurava brecar a entrada de portugueses nas minas numa tentativa desesperada de conter o despovoamento da metrópole. E com o tempo, o Império português passa a priorizar a nova atividade econômica. Isso provoca todo um desequilíbrio dentro do Império. Começa-se a cogitar de novo a transferência da sede para a América portuguesa sob a justificativa de que a colônia tinha mais vida e riquezas que a metrópole. Isso cria um problema gravíssimo.
Outra parte do seu trabalho foi baseado em personagens ocultos da nossa história "oficial", como as feiticeiras. Como é trabalhar com esse tipo de personagem? Como reconstruir essas trajetórias que sempre foram tão escusas e afastadas?
Isso tem muito a ver com a tendência nos anos 60 e 70 de fazer a história dos vencidos. Não podemos fazer história só dos vencedores. Sejam eles os índios do altiplano andino ou aqueles que sempre foram oprimidos, ou seja, os operários, os pobres etc. Eu fui muito influenciada por esse tipo de história porque tinha a ver com uma necessidade de engajamento político. Tínhamos uma responsabilidade de dar voz a quem não tivera. E o tipo de documento que possibilita essa recuperação sãos os processos de Inquisição, os processos criminais...
É uma pesquisa indireta, não?
Sempre indireta. Raríssimas vezes você tem acesso ao diário de um escravo, por exemplo. Mas isso implica uma série de questões complicadas. Como é que o historiador filtra, como é que ele lê além dos documentos, como é que ele pode afastar os documentos dessas barreiras que não permitiram chegar até os vencidos. Mas essa pesquisa é muito gratificante. A sensação que eu tinha quando eu lidava com essas pessoas era de conferir uma identidade a elas. Trazer para dentro da história pessoas anônimas, que não são d. João V ou VI ou d. Pedro I, é uma empreitada muito emocionante. É possível, inclusive, reconstruir trajetórias individuais. Isso aproxima a história das pessoas. Do povo comum. Quando foi publicado o primeiro volume da coleção História da Vida Privada, eu recebi muitas cartas e telefonemas de pessoas que se diziam retratas pelo livro. Eu lembro de uma carta de uma pessoa do interior de Pernambuco, um leitor comum que tinha comprado o livro e que tinha identificado formas de vida e de alimentação que ele conhecia até hoje lá no interior de Pernambuco. Ele dizia: "Essa é a minha história. Dessa história eu sou protagonista. Eu não tenho nenhuma identificação com a história dos poderosos, mas essa história do dia-a-dia é a minha história". As histórias dos destinos comuns são emocionantes nesse sentido: são os destinos da maioria. Afinal, houve um Napoleão, um dom Pedro. Sobretudo a vida cotidiana tem um apelo muito grande para o leitor porque ele se reconhece e encontra sua identidade naquilo que está vendo. É um pertencer que não tem a ver com a batalha de Waterloo, por exemplo. Eu acho que se o grande tem direito à história, o pequeno também tem.
Quem são os grandes os grandes personagens anônimos que você já encontrou?
Eu gosto muito de Maria Gonçalves Cajada, cujo apelido era Arde-lhe o Rabo, uma feiticeira do século 16. Outra era Violante, mulher valente que enfrentava a Inquisição e que foi igualmente perseguida. Tem um barbeiro chamado Manoel João que morou no Maranhão. Eu comecei a acompanhar a trajetória dele ainda mocinho. Eram todas pessoas comuns que exerciam práticas que existem até hoje no interior do Brasil e mesmo nos grandes centros. Práticas que denotam a necessidade de lidar com as dificuldades do dia-a-dia através dos recursos do sobrenatural. Recursos legítimos de uma população desamparada que tem que explicar de alguma forma aqueles revezes e destinos tão truncados. Eu tenho muito carinho por dois irmãos, Sebastião de Carvalho e Serra e Antônio de Carvalho e Serra. Esse Antônio, de alcunha Requibimba, eu cheguei nele através do Luis Mott, que me remeteu documentação à respeito. É uma história muito emocionante. São dois mulatos no interior de Minas que foram presos porque usaram pedaços de pedra do altar como amuleto. O Sebastião ainda sobreviveu à Inquisição, mas o Antônio enlouqueceu na prisão. Ele morreu, segundo relatos, comendo alimentos crus, completamente louco, ensandecido. Essas personagens dão uma outra dimensão do próprio povo brasileiro. É uma história diferente, uma história de luta, não de concessão, de negociação e velhacaria. Mas sim de resistência, de dor, de revezes e muita coragem e imaginação, de muita malandragem, inclusive.
Proponho um exercício especulativo: na sua opinião quais foram os grandes equívocos de nossa história. Momentos em que se tivéssemos optado por seguir um outro rumo, as consequências seriam menos desastrosas.
Um dos momentos mais horrendos da história brasileira foi o golpe militar de 1964. Até aquele momento, o Brasil estava num rumo interessante, basta ver o que se produzia em termos culturais. O golpe foi um atraso medonho. Um preço horrível que se pagou. Esse foi um dos acontecimentos mais nefastos da recente história brasileira. Seguimos vivendo o rescaldo desses anos de chumbo. Mostramos muita dificuldade de participar politicamente do processo democrático. Depois, os anos de ditadura relegaram-nos uma grande irritação com os políticos. Além disso, restou o desconforto com nós mesmos. Acreditamos que somos um país inviável e isso é muito ruim. Estamos o tempo todo praticando um autocastigo. É claro que eu incluo também a questão da escravidão. Na verdade, imputo o fato de a escravidão ter durado tanto tempo no Brasil. Esse sistema nefasto se estendeu por tanto tempo porque as elites enriqueciam com o comércio de escravos, que concentrava o grosso do capital. Porém, outros países coloniais e escravistas, a exemplo dos Estados Unidos, aboliram a escravidão antes. Nós demoramos muito. Nesse caso, a perda foi irreparável.
O estudo e a pesquisa de história nos vários níveis escolares, desde a escola fundamental até a pesquisa mais avançada, pode ajudar a recuperar a auto-estima e evitar que os erros se repitam?
Acho que sim. No momento eu ando obcecada com o problema da educação. Uma das piores coisas que existem no Brasil hoje em dia é o sistema educacional público. Não existe um país decente no mundo que não considere o seu sistema público de educação prioritário e, por outro lado, que não tenha mecanismos que prendam as crianças na escola. Ou seja, você tem de obrigar as crianças a ir para escola e obrigar os pais a mandá-las para a escola. Caso contrário, o país não anda. Isso é assim em qualquer país civilizado do mundo. Eu acredito na revolução educacional. Eu acho que Cuba é um exemplo fantástico de país que aboliu o analfabetismo. Um país pequeno, com poucos recursos e que resolveu, com ou sem a ajuda da União Soviética os problemas de saúde e educação. Nós, com auxílio do capital internacional, não consideramos prioritário nem saúde nem educação. Se o Brasil não recuperar o sistema público de saúde e de educação ele não conseguirá se erguer.
Recentemente passamos por uma greve nas universidades públicas estaduais. A senhora, como chefe do Departamento de História da USP, enfrentou de perto esse problema. Qual foi o rescaldo da paralisação?
Durante a greve, em vários momentos, a imprensa noticiou aspectos muito negativos sobre a universidade brasileira. Atualmente, a produção média das universidades brasileiras é muito boa. Nós temos o melhor sistema de pós-graduação da América Latina. Sou uma defensora ardorosa das universidades públicas no Brasil. Mas é preciso enfrentar os problemas por que ela está atravessando e, talvez, repensar as estruturas. A universidade pública tem tido um papel fundamental na sociedade brasileira. O mundo contemporâneo precisa da universidade. Só a universidade pode realizar a pesquisa de ponta. Mas em contrapartida, há uma série de problemas, como a impossibilidade de contratar novos professores, que têm de ser enfrentados com vigor.
Não se contrata porque não há dinheiro?
Não há vagas. As universidades públicas paulistas não conseguem contratar jovens porque alegam gastar muito com a folha de pagamento. É preciso rever a questão dos professores aposentados e, além disso, retomar uma política de contratação que, na USP por exemplo, foi abandonada há quinze anos. É preciso empregar os jovens que são formados pelos bancos universitários. Depois, as universidades públicas são praticamente as únicas que garantem pesquisa. Claro há outras privadas que tem um alto nível, como as Pontifícias Universidades Católicas, mas também não são entidades com fins lucrativos. Sou muito reticente com aquelas universidade que são privadas e cujo objetivo máximo é empresarial. Devemos garantir autonomia universitária, a pesquisa desinteressada e a pesquisa nas universidades de maneira geral. Não pode haver universidade com professor que só dá aulas. Tem que ser garantido, inclusive na remuneração, o tempo da pesquisa.