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Justiça emperrada

 

Leis caducas e excesso de formalismo favorecem a impunidade

Na reunião do dia 10 de maio de 2000 do Conselho de Estudos Jurídicos (CEJ) da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (FCESP), presidido por Ives Gandra da Silva Martins, os juristas Damásio Evangelista de Jesus e Luís Flávio Gomes analisaram o código penal brasileiro.

IVES GANDRA MARTINS – Na sessão de hoje, o professor Damásio de Jesus, profundo conhecedor de direito penal, juntamente com nosso convidado especial, Luís Flávio Gomes, farão uma apreciação do Código Penal brasileiro, que vigora desde 1940, e falarão também das propostas de alteração apresentadas pela comissão de reforma que vem trabalhando para adequá-lo à realidade atual.

DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS – De início, quero apresentar o professor Luís Flávio Gomes, ex-promotor de justiça, ex-juiz de direito, doutorando pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, com pós-graduação na Espanha e também professor de direito penal em Madri, Buenos Aires e Montevidéu, e que tem obras de expressão publicadas no Brasil e no exterior.

O aumento da criminalidade no Brasil é assustador. Só na capital de São Paulo, em 1998, houve 4.814 homicídios. No primeiro trimestre de 99 ocorreram em São Paulo 1.359, e até ontem (9 de maio) o número de crimes desse tipo este ano já havia chegado a 1.596 na Grande São Paulo.

No ano de 1999, só na capital paulista, ocorreram 5.418 homicídios, um aumento de 12% em relação a 1998, com uma média de 14 por dia. Em 1999, no interior de São Paulo, o número total foi de aproximadamente 3.790. No ano corrente, na capital, só em quatro dias, durante um fim de semana, entre 31 de março e 3 de abril, aconteceram 72 homicídios.

E as pessoas presas no Brasil? Em 1992, havia 74 para cada 100 mil habitantes. Em 1993, 81. Em 1994, 81. Em 1995, 92. Em 1996, 90. Em 1997, 102. Em 1998, não há estatística. Em 1999, o total salta para 113 pessoas presas por 100 mil habitantes. É um dos mais altos índices de criminalidade do mundo. Em Bauru (SP), cidade de 260 mil habitantes, em 1992 havia 192 pessoas presas, e em 1999 já eram 293. E o sistema prisional é um dos piores do mundo. Em 1992, o Brasil tinha 114 mil pessoas presas. Em 1999, elas já eram 192 mil. E qual é o número de vagas? Somente 107 mil.

A que se deve esse aumento de criminalidade? Normalmente se coloca a culpa no Código Penal brasileiro, dizendo que é preciso reformá-lo. Mas notem o seguinte: o país tem hoje uma das maiores legislações do mundo. Existe crime para tudo no Brasil. Basta forçar um pouquinho que se encontra um delito. Até há pouco, dirigir sem carteira de habilitação era contravenção. Hoje, embora tenhamos um novo Código de Trânsito que define exatamente isso, há ainda uma parte da jurisprudência que diz que esse ato subsiste como infração penal, quando em outros países é um simples ilícito administrativo. No Brasil, se alguém tem um animal, um papagaio, por exemplo, que perturbe a vizinhança, está sujeito a ser condenado. Até colocar um vaso de flores no parapeito do apartamento é contravenção penal. Existe lei para tudo: crimes hediondos, tortura, meio ambiente, lavagem de dinheiro, interceptação de comunicação telefônica, furto e roubo de automóvel, receptação habitual, remoção de órgãos, tráfico de crianças, porte de arma, tóxicos, Código de Trânsito, prisão temporária, Código de Defesa do Consumidor, crimes contra a ordem tributária, lei do crime organizado, proteção de testemunhas e, tratando-se de menores, o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Por que, com uma legislação tão abrangente, ocorre esse aumento da criminalidade? As razões são muitas. Uma delas é a confusão legislativa. Não é raro um ex-aluno meu telefonar perguntando qual é a lei aplicável em determinado caso. Não é difícil um juiz ou um delegado ligar para nós dizendo: "Não sabemos o que fazer". Há uma confusão tão grande na legislação que eles acabam ficando em dificuldade. Essa situação leva não a uma sensação mas a uma consciência geral de impunidade, porque o sistema penal brasileiro não é sério, não funciona.

Quais são as tendências do direito penal moderno? Uma delas é a do abolicionismo. Embora seja espantoso, há uma corrente que entende que o direito penal deve desaparecer. Como a pena privativa de liberdade, pela qual o direito penal se expressa, não funciona, há uma tendência minoritária para que o direito penal seja abolido e os problemas resolvidos por outras disciplinas.

Outra tendência é a do movimento de lei e ordem, que vem ganhando espaço na Alemanha e nos Estados Unidos. Esse movimento pretende agravar as penas, criar novos crimes, liquidar com os direitos dos réus e tornar a fase de execução da pena algo que constitua um momento dos mais terríveis na vida do cidadão.

A terceira tendência é a do direito penal mínimo, de intervenção mínima. É claro que no Brasil de hoje, na situação em que nos encontramos, não é conveniente falar em direito penal mínimo. Doutrinariamente, somos partidários de que o direito penal só intervenha quando haja lesão de bens jurídicos importantes e não em todos os casos, notadamente naqueles em que outra disciplina não possa resolver o problema.

Se me perguntarem, das três, qual é a tendência do direito penal brasileiro, eu direi: nenhuma, não se sabe. Há uma confusão muito grande, pois não existe harmonia entre o Executivo e o Legislativo, que não andam no mesmo sentido.

O Executivo balança entre lei e ordem e intervenção mínima. Existem propostas de ampliação dos crimes hediondos e há um projeto de lei que trata da criação de crimes de extrema gravidade. Então teríamos crimes comuns, hediondos e de extrema gravidade. E há a lei do Juizado Especial, com penas alternativas. Isso demonstra que o direito penal no Brasil não tem rumo certo.

Quais são os modelos de justiça criminal? Um deles é o sistema retributivo, que vê na pena privativa de liberdade simplesmente uma punição. O segundo é o sistema reabilitador, que visa à ressocialização do criminoso. É o caso das penas alternativas. E o terceiro é o sistema da justiça reparadora, com reparação do dano. Se me perguntarem qual é a tendência do direito penal brasileiro, eu direi que não se sabe exatamente.

Luís Flávio Gomes e eu estamos retornando do décimo congresso das Nações Unidas sobre prevenção do crime e tratamento do delinqüente, realizado em Viena de 10 a 17 de abril. O que as Nações Unidas estão dizendo hoje é que é preciso executar e aplicar o que se tem e não inventar coisas novas. Em relação ao Brasil, não conseguimos nem isso. A Declaração de Viena destaca a responsabilidade de cada Estado membro de estabelecer e manter um sistema de justiça penal que seja justo. O nosso não é. Que seja responsável. O nosso não é. Que seja ético. O nosso não é. E que seja eficaz. O nosso é absolutamente ineficaz.

Por que na Alemanha não há um número grande de crimes de sangue, homicídios e latrocínios? Porque lá se consegue apurar, processar e mandar para a cadeia 85% dos autores de crimes de sangue. Isso cria na população a consciência da punição. No Brasil, qual é a consciência?

Em relação a roubo e furto, temos declarações de delegados de que somente 15% das vítimas procuram a polícia. As outras desistem porque sabem que não vai acontecer coisa alguma. Temos conhecimento também de que algumas delegacias de polícia de São Paulo criaram o que chamam de "papel de bala". Quando o assalto ou o furto é de pequeno valor, o delegado ou agente policial que recebe a vítima usa um papel para anotar a reclamação e, depois que a pessoa vai embora, joga-o de lado.

As Nações Unidas também nos alertaram que não é possível só falar em reforma do Código Penal, esquecendo o problema dos menores. É preciso que haja um conjunto de providências sociais, melhora na distribuição de renda e na educação a longo prazo. Ficamos todos falando em reforma do Código Penal, mas temos o Estatuto da Criança e do Adolescente e não o aplicamos. Aí está o problema da criminalidade. Se não atentarmos para a delinqüência juvenil e infantil agora, esses jovens e crianças serão criminosos daqui a algum tempo.

E o que dizer do excesso de leis penais? Quando visito ex-alunos que são hoje juízes, verifico que, num processo de infração banal e num de latrocínio, eles gastam o mesmo tempo. É necessário descriminar certas contravenções para que a polícia, o Ministério Público e a magistratura tenham mais tempo para cuidar das coisas de maior seriedade.

Precisamos acabar com o formalismo, que tudo impede. Se perguntarmos a um prefeito municipal a respeito de violência, ele vai dizer: "Não é problema meu". Se perguntarmos ao ministro da Justiça, ele responderá: "De acordo com a Constituição Federal, é problema do estado". E se perguntarmos ao governador do estado, ele dirá: "O problema é de dinheiro, e nós não temos". Então um empurra para o outro. É preciso que haja um pacto social entre os níveis federal, estadual e municipal e a comunidade para tratarmos disso com seriedade, coisa que ninguém parece querer. É necessário pôr a polícia na rua, e aparelhar a justiça criminal. Estou cansado de visitar juízes de direito que nem computador têm. Cansado de visitar delegacias de polícia em que o delegado diz: "Não tenho combustível. Se a vítima de furto quiser uma diligência, terá de ir com o motorista até o posto de gasolina para encher o tanque da viatura". É uma maravilha este país para a criminalidade.

LUÍS FLÁVIO GOMES – O que a comissão do Código de Processo Penal está pretendendo nos dias de hoje é modernizar um código de 1940, feito para um Brasil que ainda tinha todas as características de um país agrário. Isso significa mudá-lo quase completamente. E, de outro lado, ajustá-lo aos direitos e garantias fundamentais da Constituição de 88, visto que hoje se nota uma defasagem patente e clara entre o que está na Carta e o texto infraconstitucional do Código de Processo Penal.

Em primeiro lugar, é preciso que o inquérito policial se desburocratize. Não existe talvez no nosso país hoje nada mais cartorialista. É impressionante a quantidade de papel. Para se ouvir uma pessoa, que muitas vezes não tem nada a dizer sobre um fato, ela é intimada e tem de ir a uma delegacia de polícia, e o escrivão ali estará sempre com o seu espírito cartorialista para ouvi-la.

Para isso, estamos dividindo agora a investigação policial em três categorias. Uma coisa é o termo circunstanciado, para as infrações de menor potencial ofensivo, o que já está funcionando neste instante por força da lei 9.089. Outra novidade é a apuração sumária: todos os fatos que chegarem ao conhecimento da polícia passarão agora a ser objeto de uma apuração sumária, e o delegado terá 30 dias para investigar o que for possível. Depois encaminhará tudo ao Ministério Público e, se for o caso, abre-se o inquérito policial. Portanto, o inquérito policial deixa de ser a regra para ser a exceção.

De outro lado, para que um policial possa hoje ouvir uma pessoa, não é preciso que ela vá à delegacia de polícia. Se o policial conversar com ela no próprio trabalho e registrar num papel o que disser de útil, muitas vezes bastará para que isso sirva de base para o Ministério Público oferecer uma futura denúncia. Porque o que importa, para efeito de uma eventual condenação penal, é o que essa pessoa dirá perante o juiz dentro do devido processo legal, e não o que disse na fase policial.

Até há pouco tempo discutíamos se o interrogatório podia ou não ser realizado por precatória. Ora, se um acusado mora em Manaus (AM) e responde a um processo em São Paulo, não há mais o que discutir, temos de expedir uma precatória para Manaus a fim de que ele seja ouvido e não obrigá-lo a vir para São Paulo para ser interrogado. Ademais, discutiu-se muito na comissão o uso de videoconferências. Trata-se de uma coisa trivial nas justiças americana e italiana há anos, e a argentina desde fevereiro vem realizando interrogatórios a distância por esse sistema. No entanto, estamos aqui ainda discutindo se isso pode ou não ser realizado. Desde que sempre haja um advogado presente para fiscalizar a lisura do ato a que se está procedendo, não vemos como obstar a utilização de videoconferências no sistema judicial.

Não temos ainda uma disciplina no nosso direito processual sobre provas ilícitas, e hoje é um sufoco quando há uma prova ilícita dentro do processo. É necessário decidir se as provas subseqüentes, que são derivadas, têm ou não valor jurídico. Por exemplo, coloca-se uma interceptação telefônica autorizada por juiz dentro de um processo, e a partir dessa interceptação algumas outras provas são colhidas. Essas provas derivadas, por sua vez, são frutos da primeira, que é ilícita, então isso tudo é ilícito, mas não temos base legal de sustentação e ficamos às voltas com raciocínios e argumentações jurídicas terríveis.

De outro lado, quando se vai ouvir uma testemunha em juízo, vigora hoje o sistema chamado presidencialista. O juiz presidente é o catalogador de tudo. Quando um advogado tem de fazer uma pergunta a uma testemunha, não pode se dirigir diretamente a ela. É preciso que formule a pergunta ao juiz, que entende mal o que o advogado disse, corta pela metade e dita para a testemunha. Como a linguagem do juiz é muito distinta da das testemunhas em geral, a testemunha não entende a pergunta, mas diz alguma coisa. O que fica registrado no termo do depoimento não tem nada a ver com o que foi perguntado. Isso não tem cabimento nos dias de hoje.

Há uma lei no Brasil, de 1994, que exige que o perito tenha curso superior. Em princípio, a iniciativa é louvável. Contudo, quem legislou desse modo se esqueceu de que o fazia para o Brasil. É talvez muito fácil aqui no estado de São Paulo encontrarmos dois peritos habilitados em vários campos da ciência e do saber humano, com curso superior. Mas isso está fora da realidade do país, porque em determinadas localidades não há duas pessoas com curso superior em algumas áreas específicas. Daí nossa proposta de que se coloque um só perito ou duas pessoas habilitadas, mas não necessariamente com curso superior.

Em termos de liberdade provisória ou prisão, o sistema no Brasil é do oito ou oitenta. O juiz está dentro de uma camisa-de-força hoje em dia e faz o seguinte: ou mantém preso ou concede liberdade provisória sem praticamente nenhum vínculo do réu com o processo. Por quê? Porque simplesmente acabamos com o sistema de fiança, que virou algo alegórico no Brasil. Por isso temos a pretensão de não só restaurar a força e a eficácia da fiança, dizendo claramente no código que todos os delitos são afiançáveis, salvo as restrições constitucionais, a menos que haja motivo para decretar a prisão preventiva. Em suma, ou há razões para se decretar a prisão preventiva, portanto esse sujeito é um perigo para a sociedade e tem de ficar encarcerado cautelarmente antes da sentença final, ou ele deve ser liberado mediante fiança. Então revigoramos os valores das fianças, porque também não têm cabimento hoje fianças de R$ 20 a R$ 40. Mas isso não é tudo. A fiança agora vem ao lado de uma gama enorme de outras medidas cautelares em que o juiz vai poder fazer proporcional e equilibradamente um ajuste em cada situação concreta. Há outras medidas cautelares, como, por exemplo, proibição de deixar o país, de freqüentar certos lugares ou de se aproximar de determinada pessoa no curso do processo, ou suspensão provisória do cargo que ocupa, quando já há fundamentos de que o sujeito está se valendo do cargo para cometer delitos. Em suma, são medidas que o juiz vai poder combinar isolada ou cumulativamente, aplicando algo que vincule o réu ao processo, sem necessidade de colocá-lo no cárcere.

Estamos pensando também em alterar todo o sistema procedimental. Imaginamos que a audiência tem de ser concentrada num ato só para que haja observância do princípio de identidade física do juiz. Além disso, no que diz respeito aos recursos, há muitas propostas de eliminar alguns do nosso código, como, por exemplo, o protesto por novo júri, que já não se justifica. Estamos também restringindo as hipóteses de embargo de declaração, deixando claro quando são cabíveis. Em linhas gerais e brevíssimas, são essas as considerações pertinentes à reforma do Código de Processo Penal.

Um sociólogo alemão, Ulrich Beck, acaba de escrever um livro sobre a sociedade de riscos, e esse senhor nunca imaginou que o que escreveu em sociologia fosse tão útil para explicar um mundo de coisas no âmbito penal. Diz ele que estamos vivendo hoje uma sociedade totalmente distinta da época em que se criou o direito penal. Quando Feuerbach, que foi o idealizador do direito penal moderno, escreveu sua primeira obra, o fez para uma sociedade da época do contratualismo e do individualismo, em que se lutava pelos direitos naturais do ser humano contra o Estado, e o Estado deveria ser o garante desses direitos naturais. A atual sociedade traz de fato novos riscos sérios, como o nuclear, e os derivados do desenvolvimento tecnológico na biologia, na genética, etc. Mais do que isso, essa sociedade traz uma sensação de insegurança enorme – em parte real e em parte criada pela mídia, que por sua vez não faz outra coisa no âmbito criminal senão difundir o medo. Portanto, vivemos numa sociedade de medo difuso e de sujeitos passivos. Nunca na história da humanidade tivemos tantos pensionistas, aposentados, desempregados, tantos que vivem ou sobrevivem de ajuda do poder público. Essa sociedade de sujeitos passivos acaba se identificando muito com a vítima do delito. Quem é sujeito passivo acaba não tendo muita força e energia para produzir alguma coisa. Aquele que produz se identifica mais com o potencial criminoso, porque quem faz algo pode eventualmente incorrer em algum ilícito penal. Logo, é uma sociedade que está de acordo com que se desformalizem as garantias do acusado dentro de um processo, porque ela se vê como vítima e nunca como um potencial delinqüente que vá necessitar dos direitos e garantias fundamentais dentro do devido processo legal.

Ademais, a sociedade atual tem um descrédito total pelas instituições, as quais neste instante passam por crise. As esquerdas, quando cumpriram muito bem o papel de denunciar as injustiças do sistema nos anos 60 e 70, sustentavam a constituição de direitos e garantias fundamentais. De repente, essas esquerdas passam a assumir o poder, e a primeira bandeira que levantam é a do direito penal para tudo. Exemplo no Brasil: a lei ecológica. A lei ambiental tem 67 tipos penais, um recorde mundial. Se considerarmos que a média européia é de seis tipos penais para tutelar esse bem jurídico que se chama ecossistema, veremos que no Brasil os grupos ecologistas e o legislador exageraram. Obviamente, uma legislação desse tipo tende a não funcionar.

Em síntese, no contexto do momento atual, qual é a tendência do direito penal? Ele é cada vez mais simbólico, totalmente diferente do direito penal do Iluminismo, da escola clássica. O direito penal moderno se caracteriza pelos crimes de perigo abstrato, pela tutela de bens jurídicos vagos, indeterminados. Diante da lei ambiental, com seus 67 delitos, cabe perguntar: o que protege, qual é o bem jurídico que tutela? Aí existem várias correntes: é o ecossistema, é a vida e a integridade física, é o ar puro que temos de respirar. Não há consenso, porque se trata de um bem jurídico vago.

Como conseqüência, todos aqueles princípios com os quais trabalhávamos no direito penal clássico – legalidade, ofensividade, culpabilidade – hoje estão ultrapassados. Por exemplo, o princípio da legalidade do crime. Será que o legislador está agora descrevendo crimes com clareza? De forma nenhuma. Raramente um tipo penal novo vem completo, perfeito. O legislador descreve uma parte e deixa a outra para que o juiz complemente. Logo, já não dependemos mais apenas do legislador e da lei para saber o que é proibido e o que é permitido. Dependemos do legislador e da cabeça do juiz que vai interpretar a lei. Conclusão: se temos no Brasil 11 mil juízes que aplicam a lei, temos em tese 11 mil códigos penais.

No direito penal clássico, trabalhávamos com a figura de tipo penal que era a do crime doloso comissivo: só responde por crime quem atua com intenção e pratica uma ação. No moderno direito penal, mudou tudo, e a grande novidade é o delito por omissão. Assim, já é difícil nos dias atuais compreender ou vislumbrar qualquer infração em que não tenha havido nenhum tipo de crime. Por quê? Quando não se prova que o sujeito praticou algo comissivamente, se pretende imputar-lhe uma responsabilidade penal pelo âmbito do dever de diligência. Por exemplo, é difícil nos dias de hoje que uma morte dentro de um hospital seja aceita como natural. Sempre se procura um culpado, alguém que na cadeia causal foi responsável por essa morte. Se não foi o médico que operou, foi o que assistiu. Se não foi o que assistiu, foi o anestesista, a enfermeira ou o hospital, que tinha péssimas condições. Logo, já não aceitamos mais os eventos e acontecimentos como naturais, sempre temos de descobrir um culpado. Por que isso? Porque vivemos numa sociedade de riscos e temos de encontrar os garantes. E encontrá-los significa ir apontando-os por todo lado, sobretudo no âmbito da criminalidade. Isso é um desastre, porque em todo delito tributário, financeiro ou econômico alguém é culpado por algo, alguém tem de ser culpado, porque ocupa a posição do garante.

Em suma, esse é o moderno direito penal, em que estamos lutando para colocar as coisas no devido eixo. Para o que é sério, o que ofende um bem jurídico alheio, o que afeta a segurança e a tranqüilidade, o direito penal, sanção penal. Para o que não é sério, o que não perturba a convivência social, o direito administrativo sancionador. Não estamos advogando a impunidade, queremos que todos sejam sancionados quando cometem erros. Mas sancionados proporcional e equilibradamente. Porque no fundo direito é isto: razoabilidade, proporção e equilíbrio.

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As incoerências da lei

• No Brasil, se alguém cometer um ato obsceno em praça pública, estará sujeito ao artigo 233 do Código Penal. Se incitar à prática de um crime ou fizer apologia de um criminoso, poderá ser enquadrado nos artigos 286 e 287. Mas se colocar numa praça pública um aparelho de televisão ligado, veremos incitação a crime, ato obsceno, apologia de delito e uma série infindável de infrações penais, e não acontecerá nada. Dependendo do meio de execução, há punição ou não.

• De acordo com o artigo 303 do Código de Trânsito, se um cidadão atropela culposamente uma pessoa, sofre uma pena de seis meses a dois anos de detenção e suspensão ou proibição da permissão para dirigir veículo. Mas, se agride dolosamente a vítima, pelo Código Penal a pena é de três meses a um ano, sem outra sanção administrativa. De modo que o réu poderá sair em vantagem se alegar que realmente quis atropelar a vítima.

• Na lei ambiental, de número 9.605, o artigo 30 diz o seguinte: "Exportar para o exterior peles e couros".

• Se um caçador destruir um ninho com ovos de espécimes da fauna silvestre, a pena mínima será detenção de um ano e seis meses, pelo Código Ambiental; se a mesma pessoa provocar um aborto, a pena será de um ano, pelo Código Penal.

• No Código Ambiental, o artigo 37 nº 4 diz o seguinte: "Não é crime o abate de animal quando realizado por ser nocivo o animal, desde que assim caracterizado pelo órgão competente". Ou seja, se o cidadão se defronta com um animal e há necessidade de abatê-lo, não pode fazer isso sem antes pedir um parecer do órgão competente. Como a lei não diz qual é o órgão competente, a pessoa morre.

• Se no dia do aniversário de uma menina de 14 anos, seu namorado, de 18 anos, lhe der um beijo lascivo, cometerá atentado violento ao pudor, considerado crime hediondo, com pena de seis anos de reclusão, aumentada de metade por se tratar de menor. Resultado: nove anos de reclusão, sem direito a liberdade provisória. Se no mesmo dia, em vez de beijá-la, ele a matar, a pena será de seis anos de reclusão e, como não se trata de crime hediondo, caberá liberdade provisória, de acordo com o artigo 310, parágrafo único.

• Segundo o artigo 180 do Código Penal, se um sujeito sabe que um objeto é produto de furto e o compra, sua pena será de um a quatro anos de reclusão. Se é comerciante e não sabe, mas devia saber, que o objeto foi furtado, a pena será de três a oito anos de reclusão. Ele devia saber.

• Com respeito à lei do porte de arma, há quatro correntes na jurisprudência. Uma diz que a lei entrou em vigor em 20 de agosto de 1997. Outra, que foi no dia 8 de novembro, uma terceira, em 9 de novembro e ainda uma quarta, em 21 de agosto. Isso é importante, porque, dependendo do dia que se vai considerar, há crime ou não.

• Na lei 9.613, que trata de lavagem de dinheiro, o artigo 2º, parágrafo 2º, diz: "No processo por crime previsto nesta lei não se aplica o disposto no artigo 366 do Código de Processo Penal". O artigo 4º, parágrafo 3º, diz: "Nenhum pedido de restituição será concedido sem o comparecimento pessoal do acusado, podendo o juiz determinar a prática de atos necessários à conservação de bens, direitos ou valores nos casos do artigo 366 do Código de Processo Penal".

• A nova lei de proteção de testemunhas funciona? No Rio de Janeiro, uma casa foi alugada para esse fim, e na frente dela afixaram uma tabuleta: "Casa de Proteção de Testemunhas". E foi uma autoridade pública que determinou colocar essa placa.

• Os estabelecimentos prisionais no Brasil, penitenciárias, cadeias e institutos penais, pertencem ao Executivo, mas quem manda o preso para lá é o Judiciário, que fica na dependência de vagas. Quando um juiz condena o réu, não sabe se existe vaga ou não.

• Na iniciativa privada, as empresas mantêm uma estrutura compatível com o porte do empreendimento. No Judiciário, a estrutura do fórum de uma comarca com 3 mil processos em andamento é a mesma que a de outro com 600 processos. O número de funcionários e de computadores também é igual.

• Se um pai, no Piauí, entender que um programa de televisão prejudicou seu filho, terá de ir a São Paulo ou ao Rio de Janeiro para a proposição de uma queixa, porque, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, a competência é do lugar onde o programa foi gerado.

• Como não há no Brasil um sistema nacional de reincidência, o cidadão pode cometer um crime em cada estado e será sempre primário, porque não existe interligação do Judiciário de um estado com os dos demais.

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