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Em defesa do jovem

 

Foto: Monica Zarattini/AE

Dez anos depois, código não oferece solução para crianças infratoras

IMMACULADA LOPEZ

Há exatamente dez anos, entrou em vigor no país o Estatuto da Criança e do Adolescente, destinado a substituir o antigo Código de Menores. Objeto de intensa polêmica, o ECA – como ficou conhecido o estatuto – determinou, para o Estado e a sociedade, uma nova forma de lidar com os adolescentes infratores. Uma década depois, a situação desses garotos (mais de 90% são meninos) ainda é um espelho de graves equívocos e abusos cometidos contra os adolescentes no país. Vários locais, especialmente o estado de São Paulo, as cidades do Rio de Janeiro e Porto Alegre e o Distrito Federal, mal começaram a reformular seus decadentes sistemas de atendimento e internação. Enquanto isso, em outras cidades, ações coordenadas do Poder Judiciário, Executivo, Ministério Público e organizações não-governamentais oferecem bons exemplos de mobilização e mudança social.

Nas grandes cidades brasileiras a violência transformou-se, nos últimos anos, na principal preocupação. O elevado grau de insegurança é alimentado por múltiplas causas, como o agravamento da miséria, a incapacidade do Estado, a impunidade, o desaparelhamento das forças policiais e o emperramento do Poder Judiciário. Nesse contexto, o tema adolescente infrator costuma ser debatido em ambiente de muita polêmica, e não faltam vozes que atribuam a esses jovens o recrudescimento dos atos violentos nos centros urbanos. Essa não é, porém, a opinião dos especialistas, preocupados em eliminar vários mitos que a sociedade criou em torno do assunto. "Há uma tendência a superdimensionar o problema, alarmando a população, como se os adolescentes fossem os grandes responsáveis pelo agravamento da violência urbana", diz Anselmo Carvalho, gerente do Programa de Reinserção Social do Adolescente em Conflito com a Lei, do Ministério da Justiça. Ele informa que hoje há em todo o país 7.489 adolescentes entre 12 e 18 anos em privação total de liberdade, 1.051 em semiliberdade, 12.540 em liberdade assistida e 1.756 em prestação de serviços à comunidade. Nos últimos três anos, acrescenta Carvalho, a parcela de crimes cometidos por adolescentes não ultrapassou 10% dos praticados no país. "E, deles, apenas 8% são contra a vida", ressalta a advogada Karina Sposato, pesquisadora do Ilanud (Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente). Os outros 92% referem-se a delitos contra o patrimônio, ao descumprimento de medida judicial e ao envolvimento com o tráfico de drogas. "Portanto, não podemos repetir indiscriminadamente que os adolescentes são cada vez mais perigosos", conclui Karina.

Em São Paulo, o pesquisador Sérgio Adorno, do Núcleo de Estudos da Violência, da Universidade de São Paulo, comparou os casos judiciais que envolveram adolescentes na capital entre 1988/1991 e 1993/1996. No passar dos anos, os roubos e furtos continuaram em primeiro lugar, repetindo o perfil da delinqüência da população em geral, no país e no exterior. "Portanto, o adolescente não é nem mais nem menos perigoso do que o adulto, apesar de observarmos uma tendência de maior participação em crimes violentos e ações em bando."

Adorno também buscou confirmar se é verdade que os adolescentes estão cometendo infrações cada vez mais cedo – outra idéia bastante comum. "Comparando os dois períodos, não houve variação significativa na idade dos adolescentes. O pico continua sendo entre os 16 e 17 anos."

A pesquisa mostrou também que as mudanças mais expressivas no perfil dos garotos ocorreram em relação a escolaridade e ocupação. Houve crescimento de 7,5% a 11,3% da parcela de adolescentes com ensino médio, mudança que pode corresponder ao aumento da escolaridade geral do país ou à maior presença de meninos de classe média no crime. Quanto à ocupação, o que mais chamou a atenção do pesquisador foi o aumento da parcela de desocupados: de 45,9% passou a 54,5%.

Entre 1995 e 1996, o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, do Distrito Federal, com o apoio do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), coletou dados sobre 4.245 adolescentes privados de liberdade em todo o Brasil. De maneira geral, o perfil coincide com os dados levantados em São Paulo. Quase 95% eram meninos; apenas 3% tinham carteira assinada quando praticaram a infração; 61% não freqüentavam a escola na ocasião; mais de 50% estudaram apenas até a quarta série do ensino fundamental; e 42% procedem da própria capital onde estão internados.

Segundo os pesquisadores, ao procurar as causas da violência, a maioria das pessoas tiram também conclusões precipitadas. O "caminho do crime" é facilmente atribuído, por exemplo, ao uso de drogas. Mas, segundo o psiquiatra Auro Danny Lescher, coordenador do Projeto Quixote, que atende na capital paulista a crianças e adolescentes em situação de risco social, a prática do crime e o uso de drogas não seguem uma relação de causa e efeito. "São dois fenômenos paralelos, que podem se agravar, mas derivam de outras causas: a falta de espaços de afeto, prazer, expressão, de referências e perspectivas de vida."

Outro motivo comumente apontado é a "má índole" do menino. "O fator psicológico é apenas um dos ingredientes, ao lado do fator social, afetivo, cultural, familiar...", diz Lescher. É certo que nem todos os adolescentes na mesma situação cometem infrações. Não podemos jogar essa discussão para o campo moral, em termos de ser ou não bonzinho, concorda o padre Júlio Lancelotti, da Pastoral do Menor. "Temos de levantar uma discussão ética: a sociedade favorece essa infração? O que proporciona aos que já a cometeram?" A seu ver, a Febem de São Paulo, por exemplo, é apenas a ponta de uma série de exclusões na educação, na cultura, na justiça, no lazer e no mercado de trabalho.

Dois caminhos

Segundo Lescher, existe certa miopia geral da sociedade em relação aos infratores, que se origina na idéia de que o adolescente é sempre um problema. "Em vez de valorizarmos suas potencialidades, criatividade e capacidade de transformação, nos atemos à visão de que é problemático, não participativo, rebelde e agressivo." Essa é uma questão que se revela crucial, pois a partir dela as soluções se bifurcam: "Ou o Brasil aposta na paranóia e na desconfiança, colocando detectores de metais na escola e isolando os adolescentes em unidades de internação, ou investe em seu fortalecimento e em novos vínculos com a vida".

No entender do psiquiatra, a redução da idade de imputabilidade penal é um bom exemplo do primeiro caminho. Hoje, os adolescentes entre 12 e 18 que cometem alguma infração estão sujeitos às medidas e procedimentos do ECA e, em caso de internação, vão para unidades apropriadas. As sanções e procedimentos do Código Penal só valem para os maiores de 18 anos. Mas, neste momento, há 14 projetos de emenda à Constituição tramitando no Congresso – 12 na Câmara dos Deputados e dois no Senado Federal – que propõem a redução da idade para 16 anos (duas delas para 14 anos). "É como se quiséssemos curar uma febre alterando os medidores do termômetro", ilustra Lescher.

A deputada federal Rita Camata, da Frente Parlamentar da Criança e do Adolescente, tem a mesma opinião. Para ela, a mudança da lei seria um grande retrocesso, pois "apenas despejaria centenas de adolescentes no sistema carcerário nacional, impedindo qualquer perspectiva de nova vida social".

O deputado Jair Bolsonaro, entretanto, é radical: "Reduzir a idade penal seria uma forma de inibirmos a criminalidade", diz ele. Autor de emendas constitucionais que propõem a redução da idade de imputabilidade penal para 16 anos, Bolsonaro acredita que o ECA hoje "estimula e protege bandidos" e que é necessário "dar um basta nos direitos humanos daqueles que não podem mais ser considerados seres humanos". Ele não acredita na possibilidade de reinserção social dos adolescentes e defende que "a ameaça de prisão em um lugar horripilante pode ajudar a conter o crime".

Sem avançar no Congresso, as propostas repressivas ampliam a sensação generalizada de impunidade. Volta e meia, o ECA é apontado como uma lei excessivamente branda, que defende bandidos. "Na verdade, algumas interpretações ingênuas – como a de que não se pode algemar um autor de homicídio de 17 anos – colaboram com essa visão", diz o juiz de direito Leoberto Brancher, presidente da ABMP (Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude). Mas o principal motivo para o ataque ao ECA "é o desconhecimento e não cumprimento da lei".

O que diz a lei, então? O ECA determina que, comprovada qualquer prática de ato considerado como infração, a autoridade competente deve aplicar uma medida socioeducativa compatível com a gravidade e circunstâncias do ato, e com a capacidade de cumprimento. "A medida não tem teor punitivo e sim educativo, mas não deixa de haver responsabilização rigorosa do adolescente", explica Brancher. Não se busca uma "vingança", mas se investe na possibilidade de mudança de vida do garoto.

Esse espírito está presente nas cinco principais medidas previstas pela lei: advertência (feita de forma solene pelo juiz); reparação de dano (com restituição ou compensação do prejuízo); prestação de serviços à comunidade (realização de tarefas de interesse coletivo); liberdade assistida (com acompanhamento e orientação feitos por monitor, facilitando a reinserção familiar, escolar e profissional); regime de semiliberdade (internação com realização de atividades externas) e internação. Esta, sempre reservada aos casos extremos, deve ser o mais breve possível.

O ECA determina também que cabe ao município o atendimento em regime meio-aberto (liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade), reservando-se ao governo estadual as medidas privativas de liberdade. Mas o sistema deve ser descentralizado – garantindo a proximidade do garoto com sua família e comunidade –, em pequenas unidades (com separação por idade e gravidade da infração), com atividades pedagógicas e total respeito à integridade e dignidade dos adolescentes.

A Febem paulista

O estado de São Paulo tem mais de 4 mil adolescentes internos, o maior número do país. Mais de mil estão no Quadrilátero do Tatuapé. Até novembro do ano passado, outros 600 ficavam no Complexo Imigrantes. Após sua desativação, causada pela destruição das instalações em uma rebelião, eles foram transferidos para presídios adultos, como o Cadeião de Santo André, o de Pinheiros e o Complexo do Carandiru. "Em São Paulo, a lei é totalmente descumprida", denuncia o padre Júlio Lancelotti, da Pastoral do Menor. A rotina nas unidades da Febem são a superlotação, os maus-tratos, a intimidação e a ausência de atendimento socioeducativo.

Pressionado, o governo estadual anunciou, ainda em novembro de 99, um projeto de mudança no modelo de atendimento. "Já estamos entregando novas unidades menores e descentralizadas e modernizando os recursos humanos, com o afastamento de mais de 360 funcionários, novas contratações e requalificação da equipe, além de estarmos estimulando programas municipais em meio aberto", diz Edson Ortega Marques, secretário de Assistência e Desenvolvimento Social, responsável pela Febem.

Mas não faltam críticas ao ritmo das mudanças. Na avaliação de Mário Volpi, oficial de projetos do Unicef, o cronograma das ações é confuso, lento e contraditório. "É inaceitável, por exemplo, a transferência dos garotos para presídios adultos." Ortega alega que a solução é provisória e que não havia outra alternativa. Diz também que é difícil mudar uma estrutura de 26 anos e que o atraso ocorre não só em São Paulo, mas em todo o país.

Embora concorde que o corporativismo dos funcionários (são quase 4 mil) e a herança institucional da Febem dificultem as mudanças, o oficial do Unicef destaca que São Paulo tem os maiores recursos técnicos, científicos e financeiros do país (para este ano, estão previstos R$ 150 milhões para a Febem, incluindo as atividades de abrigo). E conclui: "O que falta é determinação política". Mas alerta que a responsabilidade não se limita ao Poder Executivo: "O Ministério Público de São Paulo continua calado, quando já deveria ter exigido judicialmente o cumprimento da lei".

Uma omissão que se repete pelo país afora. Segundo a advogada Karina Sposato, do Ilanud, "as prefeituras não querem municipalizar o atendimento, e os próprios juízes resistem às novas medidas socioeducativas". A União também parece não cumprir sua parte. Em 1999, foram utilizados apenas 24% dos R$ 14 milhões do Fundo Nacional da Criança e do Adolescente previstos para apoiar o atendimento de adolescentes infratores.

São muitos os empecilhos no caminho do novo código, mas a resistência mais grave, na opinião de Anselmo Carvalho, do Ministério da Justiça, é a do Judiciário. Antes do ECA, todas as decisões estavam centralizadas na autoridade do juiz. Com a lei, foram criados os conselhos tutelares (órgãos autônomos que devem zelar pelo cumprimento das regras, orientando e encaminhando os casos de crianças e adolescentes), o Ministério Público ganhou papel fiscalizador e o adolescente conquistou garantias processuais. Ou seja, tem o direito de ser informado formalmente da acusação, produzir provas de defesa, ser defendido por advogado, ter acesso a assistência gratuita, etc. "Ainda hoje, alguns juízes se ressentem por ter perdido o papel de ‘xerifes’, mas essa resistência está sendo superada por uma visão de um Poder Judiciário mais jovem e moderno", diz o juiz Leoberto Brancher, da ABMP.

Na sua opinião, o principal entrave à aplicação do ECA é a falta de um sistema de atuação. Ao dividir as responsabilidades, a lei envolveu diferentes setores da sociedade e do governo, que não podem se ausentar nem agir isoladamente.

Esse envolvimento de vários setores, embora possa gerar um empurra-empurra de responsabilidades, pode também multiplicar as possibilidades de mudança. O que felizmente já se observa em diferentes partes do país.

Pioneirismo

Em Santa Catarina, o Ministério Público foi o primeiro a arregaçar as mangas. Em 1995, instaurou um inquérito civil para apurar se o ECA estava sendo aplicado no estado. Uma a uma, as 293 prefeituras foram visitadas pelos promotores. Desse total, 266 assinaram um termo de ajustamento de conduta, que está sendo cobrado. "Claro que isso é só um começo, mas já temos um saldo positivo a comemorar", diz o promotor Gersino Gomes, coordenador do Centro de Apoio Operacional às Promotorias da Infância e Juventude. Nos últimos cinco anos, o número de conselhos tutelares no estado passou de 106 para 280, o de conselhos municipais de 167 para 290 e o de programas de medidas socioeducativas de 10 para 90. "Antes, os meninos ficavam sem controle ou eram indevidamente internados. Isso representava um prejuízo para a sociedade e para o adolescente", avalia o promotor.

A cidade de Recife também tem resultados a apresentar. Em 1994, o Poder Judiciário tomou a iniciativa de fazer parceria com entidades comunitárias tendo em vista programas de liberdade assistida e prestação de serviços. "Através do envolvimento da comunidade, conseguimos um acompanhamento real dos garotos e maior eficiência nas medidas", comemora Márcia Maria Soares Arruda, uma das assistentes sociais do Núcleo Gerencial de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto da 2a Vara da Infância e Juventude da cidade.

Nos casos de liberdade assistida, um morador da própria comunidade é designado para orientar e acompanhar o adolescente em sua vida familiar e escolar. Na prestação de serviços, o monitor pertence à instituição onde a tarefa é realizada (pode ser por exemplo um hospital, quando a infração cometida foi lesão corporal, ou uma escola, quando houve depredação). Uma vez por mês, o adolescente e sua família são atendidos pela equipe do núcleo, que também capacita os monitores. Até agora, mais de 631 adolescentes já passaram pelo programa.

Alguns governos estaduais, por sua vez, decidiram reordenar suas instituições. A Funcap (Fundação da Criança e Adolescente do Pará) apresentou um dos projetos mais inovadores e bem-sucedidos. "A partir de 1995, decidimos enfrentar a mentalidade de que a única solução para os meninos infratores é a internação", conta o presidente da instituição, José Haroldo Teixeira. Em uma ação conjunta com o Poder Judiciário e o Ministério Público, eles estudaram o perfil dos adolescentes e as opções de medidas.

Para agilizar as intervenções, foi organizado o Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente, que reúne em um mesmo espaço agentes da polícia civil, do Ministério Público, da Defensoria Pública, do Poder Judiciário e da Funcap. Criaram-se novos programas, adolescentes que ficavam sem intervenção começaram a ser atendidos e, em cinco anos, o número de casos de liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade cresceu de 7 para 200, o de semiliberdade de zero para 30 e o de internação caiu de 92 para 82. Com custo mensal de R$ 40 por adolescente, a prestação de serviços e a liberdade assistida alcançaram o índice de 2% de reincidência, enquanto a internação (20 vezes mais cara) chegou a 9%. No sistema carcerário brasileiro, a média varia entre 40% e 70%.

"Em 1995, tínhamos uma única unidade de internação, com o dobro da lotação permitida", conta Teixeira. Hoje, são três unidades de semiliberdade, mais duas para sentenciados e uma para internação provisória. "O mais importante é que estamos implantando um currículo mínimo para a cidadania, incluindo atendimento à saúde, escolarização e profissionalização", diz o presidente. A próxima meta é um maior envolvimento das famílias.

Em São José dos Campos, interior paulista, as próprias famílias passaram a se organizar para melhorar a situação de seus filhos. "No discurso, a família sempre aparece como um personagem importante na reinserção. Mas na prática é comum os policiais, os juízes e a sociedade culparem e afastarem os familiares, acreditando que foram omissos, incompetentes ou que não se interessam por seus filhos", observa a assistente social Myriam Veras Baptista, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Criança e o Adolescente, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo.

A pesquisadora conta que, ao contrário do que se pensa, a maioria das famílias vivem com os filhos e se surpreendem com a notícia do crime cometido por eles. Ficam assim totalmente desamparadas. Sem entender o que os juízes falam, tentam contratar a todo custo um advogado, não conseguem visitar os filhos na capital e sofrem angústias a cada rebelião.

Para alterar essa situação, alguns pais se uniram na Associação de Pais e Amigos do Adolescente em Risco (Apar), criada em 1995 junto com a equipe da PUC. Através de espaços de discussão, apoio e terapia, pais e mães saem fortalecidos. "Eles têm um importante papel de agentes políticos na defesa dos direitos de seus filhos, como também de parceiros no seu processo socioeducativo", esclarece Myriam.

Com a Apar, pequenas mudanças foram sendo conquistadas. Seus integrantes começaram a exigir defensores públicos para os filhos e a acompanhar o processo judicial de perto. Também já participaram de reuniões de reformulação da Febem e de campanhas para que os municípios aceitem as unidades descentralizadas. Mas talvez o ganho maior seja o fortalecimento da auto-estima dos adolescentes, que recuperam o ânimo com o apoio e empenho das famílias. Uma forma de dizer que é necessário acreditar neles.

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A cidade bacana

O alvoroço toma conta da meninada. Foi anunciada a primeira brincadeira da manhã. É bem simples: duas equipes vão para o meio da quadra e, quando o monitor diz um número, um representante de cada equipe corre para pegar o lenço. Todo sábado, a alegria brinca solta até o meio-dia. São quase 200 meninos e meninas reunidos na "Cidade Bacana", um projeto criado pelo Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Mônica Pavão Trevisan (Cedeca) no Parque Santa Madalena, na periferia de São Paulo. Na parte da tarde, é a vez do hip-hop e dos jogos do campeonato de futebol.

Nem sempre foi assim. No desolado bairro cinza, sem praças, bibliotecas, áreas verdes ou centros culturais, não havia o que fazer no fim de semana. "Conversamos então com a escola, pedimos a quadra emprestada e criamos uma oportunidade de lazer, convívio e formação", conta a psicóloga Ana Lúcia Macret. Antes das brincadeiras, todos são envolvidos em uma discussão sobre cidadania.

"Aqui aprendem que não precisam bater para conseguir o que querem, nem empurrar o menorzinho quando ele erra, nem xingar quando discordam de alguma coisa", conta Maria, uma das educadoras. Com os adolescentes, a proposta é a mesma: conhecer seus direitos, exigir que os respeitem e buscar novas formas de participação e mudança social.

Não é uma tarefa simples. Do outro lado do muro, a escola exclui, a polícia ameaça, a família agride, o mercado de trabalho fecha as portas, o crime organizado atrai... Muitos acabam cometendo infrações. Alguns adolescentes que freqüentam o Cedeca, por exemplo, estão em liberdade assistida. Outros nunca foram presos – alguns até morrem antes disso. As meninas também são vulneráveis, atraídas pela prostituição ou envolvidas na cumplicidade com os infratores.

Dia após dia, como na maioria das grandes cidades brasileiras, os adolescentes do Parque Santa Madalena pagam o preço da falta de políticas públicas. O trabalho de entidades como o Cedeca é quase quixotesco. Mas pelo menos pode contar com bons sonhos. Recentemente, os educadores perguntaram aos meninos sobre o futuro. Cada um falou uma coisa diferente, mas ninguém disse que sonhava ser bandido.

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Um novo caminho

O país ficou 20 anos "de costas para os direitos humanos", durante o regime militar. Com a Constituição de 1988, abriu-se um novo caminho para a infância e a juventude. A afirmação é de Antonio Carlos da Costa, diretor da Modus Faciendi Desenvolvimento Social e Ação Educativa, de Belo Horizonte. Era necessário, diz ele, remover o "entulho autoritário", que incluía o Código de Menores, de 1979, e a Política Nacional de Bem-Estar do Menor, de 1964, que criou o modelo da Febem. Em seu lugar, juristas, advogados, promotores, representantes de órgãos governamentais e de movimentos sociais se uniram para elaborar o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, aprovado em 13 de julho de 1990.

Sintonizado com a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, o ECA revolucionou conceitos, modelos e estruturas. "A criança e o adolescente passam a ser tratados como sujeitos de direitos, pessoas em condição peculiar de desenvolvimento e que devem ser prioridade absoluta do Estado e da sociedade", diz Antonio Carlos. Ou seja, deixam de ser meros objetos de intervenção. São considerados pessoas plenas, com todos os direitos aplicáveis a sua idade, que podem ser exigidos por lei, sem ficar à mercê da boa vontade dos adultos.

Antes do ECA, valia a doutrina da situação irregular: o adolescente que cometia uma infração, usava drogas ou estava na rua era considerado "irregular", sendo passível de uma intervenção judicial. "O novo estatuto consagrou a doutrina da proteção integral: quando essas situações acontecem, quem está irregular não é a menina ou o menino, mas a família, a sociedade e o Estado, que devem proteger e defender as novas gerações, sem excluir a responsabilização dos adolescentes por seus atos", diz Antonio Carlos.

Trata-se de uma lei avançada, sem dúvida. Nisso concordam tanto os defensores como os críticos do ECA, que acreditam igualmente que ela está muito distante da realidade. A diferença entre eles começa aqui: para reduzir essa distância, alguns querem piorar a lei, cortando direitos, criando punições. Outros preferem melhorar as políticas públicas, transformando a realidade.

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O desafio da sexualidade

Sexo na adolescência ainda é encarado pelos adultos com muito preconceito e desinformação

Para a maioria dos adultos, a sexualidade dos adolescentes é sinônimo de problema. A primeira idéia que vem à cabeça costuma ser a gravidez. "Hoje, nossa prioridade é a prevenção da gravidez", informa José Domingues, coordenador da Área de Saúde do Adolescente e do Jovem, do Ministério da Saúde. Segundo o médico, em 1999 foram realizados mais de 700 mil partos em meninas entre 10 e 19 anos no Sistema Único de Saúde (SUS). Estima-se que outros 300 mil tenham ocorrido na rede particular. Sem esquecer os milhares de gestações interrompidas, especialmente pelas meninas de classe média e alta.

Além da gravidez, a Aids é outra grande preocupação de pais, autoridades, médicos e educadores. "A maior parte das contaminações ocorre na fase jovem da vida", informa Rosemeire Munhoz, responsável pela Unidade de Prevenção da Coordenação Nacional de DST/Aids (DST é a sigla de Doenças Sexualmente Transmissíveis). Portanto, torna-se essencial que o adolescente já comece sua vida sexual com práticas seguras. Mas, segundo Rosemeire, "para fazermos prevenção de Aids, precisamos abrir a discussão sobre sexualidade". Foi com esse objetivo que a unidade lançou um site dirigido especialmente ao público adolescente (www.adolesite.gov.br).

Essa dupla preocupação – gravidez e Aids – vem obrigando governos, escolas e serviços de saúde a adotar uma nova atitude, começando por encarar o fato de que ainda existe grande dificuldade em lidar com o adolescente.

Na opinião dos jovens, a dificuldade começa com o enfoque da questão. "Como o adulto pode falar de gravidez sem falar antes de transa?", pergunta a estudante paulista Carolina Zacchi, de 20 anos, reunida em Campinas (SP) com outros colegas do Movimento dos Adolescentes Brasileiros (ver texto abaixo). "A gente quer saber como lidar com nosso corpo, com nosso sentimento", continua Karen Marques Rosso Ishiguro, de 15 anos, "mas chegam os adultos falando de gravidez, Aids, DST..." Para a mineira Alessandra Araújo, de 20 anos, "os adultos agem como se o adolescente nunca transasse ou, ao contrário, transasse a toda hora". De qualquer forma, parece que o sexo é sempre tratado como um problema. "Na verdade", conclui Alessandra, "acho que o adulto não consegue lidar abertamente com a sexualidade do adolescente porque vive a sua de forma reprimida."

A discussão da sexualidade, portanto, é um campo minado por diferentes concepções e valores. O próprio tema da gravidez é um bom exemplo disso. "A gravidez não pode ser usada como argumento para reprimir a sexualidade do adolescente", opina o sociólogo Benedito Medrado, um dos coordenadores do Programa Papai. Atuante no Recife, na Universidade Federal de Pernambuco, o programa foi o primeiro projeto criado no país destinado a apoiar o pai jovem e adolescente. Segundo o pesquisador, a sexualidade "faz parte da intimidade das pessoas e não deve haver políticas controlistas".

O ministro José Serra, entretanto, já expressou opinião favorável ao adiamento da iniciação sexual como estratégia de prevenção, especialmente de gravidez. Ainda este ano, o Ministério da Saúde pretende gastar mais de R$ 4 milhões na campanha Prevenção da Gravidez na Adolescência, valor que corresponde a mais de 80% de toda a previsão orçamentária da Área de Saúde do Adolescente e do Jovem. Nesse caso, caberia ao poder público informar qual a idade mínima para iniciar a vida sexual, mas essa é uma decisão difícil, segundo José Domingues, do ministério. "A discussão, portanto, não deve ser transe ou não transe", diz Rosemeire Munhoz, "mas se o adolescente se encontra ou não preparado para transar. Pois pode até começar mais tardiamente e continuar despreparado." Estar preparado, em sua opinião, é saber escolher o parceiro e o momento da relação. E usar o preservativo.

Riscos

Há entretanto certo consenso entre médicos e educadores de que entre 10 e 14 anos a prática sexual deve ser evitada, inclusive devido aos riscos biológicos de gravidez. "Quando a menina é muito nova, com 11 ou 12 anos, o organismo ainda não está preparado para uma gestação", adverte a ginecologista Maria Ignez Saito, responsável pela Unidade de Adolescentes do Instituto da Criança, do Hospital das Clínicas, em São Paulo, pioneiro no atendimento específico a adolescentes.

Mas entre as mais velhas, para as quais não vale mais o argumento de imaturidade biológica, muitos dos problemas estão relacionados não à idade, mas ao fato de ser a primeira gravidez, esclarece Maria Ignez.

Também já se sabe que muitos agravamentos na saúde da mulher e da criança resultam da falta de assistência adequada e não da gravidez em si. "No geral, as gestantes adolescentes chegam mais tarde ao pré-natal, por medo, vergonha ou por não se sentirem acolhidas pelos serviços de saúde", relata a médica. A falta de atendimento pré-natal aumenta os casos de complicações no parto, de bebês prematuros e até mesmo de mortalidade materna. Para Maria Ignez e muitos outros especialistas, esses riscos são hoje um forte motivo para prevenir a gravidez.

No Hospital das Clínicas, por exemplo, o atendimento privilegia a prevenção. "Através de informação, discussão e respeito à autonomia do adolescente, buscamos valorizar sua auto-estima e torná-lo sujeito de escolhas", diz a médica. Na sua opinião, apesar de as meninas mais velhas já terem maturidade biológica, elas não têm estrutura psicoemocional, nem social, para uma gravidez. "Não têm maturidade para compreender o processo, não têm vínculos estáveis nem projetos de vida definidos". Na vida real, diz a médica, a gravidez não é como a da novela, onde aparecem até dois candidatos a pai, e nem toda produção independente pode ser como a da Xuxa.

Para Albertina Duarte Takiuti, médica responsável pelo Programa de Atenção Integral ao Adolescente do Estado de São Paulo, "a adolescência não é a melhor época para engravidar justamente pela dificuldade de enfrentamento psicossocial". Em outras palavras, a participação do pai é rara, a escola não sabe acolher, faltam creches, o mercado discrimina... "Muitas vezes, a gravidez é até desejada, mas a menina não tem clareza desses obstáculos", destaca a médica.

Consumada a gravidez, é certo que tanto a mãe como o pai precisam de suporte. Mas esse apoio é difícil de encontrar, pois as instituições, tanto a escola como o serviço de saúde ou a empresa, ainda estão "impregnadas de preconceitos e ficam sem saber o que fazer", diz o psicólogo Eugênio Chipkevitch, coordenador do Instituto Paulista de Adolescência. A falta de amparo torna-se, então, um bom motivo para não engravidar.

Escolha consciente

No Recife, o Programa Papai questiona a proposta de prevenir a gravidez como se fosse doença ou algo sempre indesejável. Um dos coordenadores, Benedito Medrado, informa que o programa trabalha, junto aos adolescentes e profissionais, não com a perspectiva de prevenção, mas de programação da gravidez. O adolescente é encarado como sujeito de sua sexualidade, podendo fazer escolhas conscientes. "Trazemos informações, criamos espaços de reflexão e buscamos fortalecer sua autonomia, sem alarmismos", diz o coordenador.

Na cidade do Rio de Janeiro, o Programa de Saúde do Adolescente, da Secretaria Municipal de Saúde, também tenta lidar com a gravidez encarando-a não necessariamente como um problema, mas como um desafio. "Buscamos qualificar o serviço para que receba a adolescente grávida sem julgar, discriminar ou perguntar o porquê", diz a psicóloga Dilma Kupti de Medeiros, integrante da equipe.

Para facilitar a chegada da adolescente aos postos de saúde, antes ou depois de uma gravidez, foi criado, em parceria com as escolas, o projeto Sinal Verde. Quando há suspeita ou confirmação de gravidez, indício de Aids e DSTs, e mesmo no caso de início de vida sexual, o professor pode dar ao aluno um cartão verde que lhe garante atendimento imediato no posto de saúde. "Os motivos da procura estão quase sempre ligados à sexualidade", conta Dilma. "Buscamos então fortalecer e qualificar as opções do adolescente, pois acreditamos que a adolescência é um tempo de escolhas", diz a psicóloga.

Na área da educação, o assunto continua um desafio. A maioria das escolas ainda se limita a organizar palestras pontuais, geralmente desconectadas da realidade do adolescente. "O trabalho muitas vezes fica restrito aos limites da formação do professor", diz o psicólogo Roberto Pereira, coordenador-geral do Cedus (Centro de Educação Sexual), que há seis anos capacita e acompanha professores da rede pública do Rio de Janeiro. O objetivo do órgão é criar espaços de reflexão e discussão, para que os docentes possam ampliar seu conhecimento e refletir sobre valores e atitudes. Ele relata que, para muitos deles, é a primeira oportunidade de pensar e falar abertamente sobre Aids, homossexualismo, violência sexual, aborto e gravidez na adolescência.

Em São Paulo, uma das grandes referências no trabalho com os professores é a Ecos (Estudos e Comunicação em Sexualidade e Reprodução Humana). Para Silvani Arruda, uma das coordenadoras, a educação sexual deve conter uma ampla reflexão sobre sexualidade, saúde reprodutiva, preconceitos, relações entre homens e mulheres, violência e tabus. "Quando o tema é gravidez, por exemplo, buscamos envolver igualmente meninos e meninas. Ensinamos os métodos anticonceptivos, mas também falamos da necessidade de comunicação e negociação entre o casal", diz Silvani. São discutidas igualmente as motivações e fantasias que podem levar um adolescente a desejar um filho. O objetivo, diz Silvani, é promover uma vivência saudável, responsável e respeitosa da sexualidade.

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Da sexualidade à cidadania

Em vez de problema, uma grande solução. Essa é a idéia de adolescência defendida pelo Movimento dos Adolescentes Brasileiros (MAB), que articula grupos de jovens e educadores de diferentes partes do país. "Podemos participar das discussões sobre a nossa vida e a sociedade como um todo", diz o estudante Júlio César de Almeida, reunido em maio, em Campinas, com outros integrantes do MAB para debater os próximos passos do movimento.

O MAB surgiu em 1998 buscando fortalecer e manter interligados os grupos participantes dos encontros nacionais de adolescentes (Enas), realizados desde 1990. O próximo acontecerá em setembro, em Salvador, com o tema "Vem voar com a gente, direito não é utopia", quando serão discutidos os dez anos do Estatuto da Criança e do Adolescente. A cada ano, reúnem-se mais de 500 garotos e garotas, todos vinculados a mais de 70 projetos comunitários, escolares, ambientais, em encontros também municipais e estaduais.

Nas primeiras reuniões, o assunto principal era a sexualidade. Mas, com a chegada de outros grupos, o eixo central da discussão passou a ser a cidadania. "A importância do movimento é trocar experiências, métodos e informações", diz Fábio Robson da Silva, da capital paulista. "Conhecemos gente do sul e do nordeste, da periferia e da classe média. E aprendemos que, apesar das diferenças, somos todos adolescentes", completa Danilo Ramos, de Campinas.

O objetivo desses encontros, segundo a pedagoga Maria Teresa Machado Luz, uma das coordenadoras do Ena, é preparar o jovem para uma nova construção social. "Vários adolescentes estão convencidos de que têm um papel importante já nessa fase da vida e não apenas no futuro." Busca-se assim incentivar sua reflexão, autonomia, fortalecimento e comprometimento social. Segundo a pedagoga, "todos podem participar, cada um de sua forma, pois não acreditamos em um adolescente-padrão".

Sem envolvimento partidário, mas político e muito afetivo, na expressão de Maria Teresa, o MAB pretende se fortalecer nos próximos anos. "Buscamos apoio para ampliar nossa rede, auxiliar os grupos que precisam de ajuda e promover ações coletivas em todo o país."

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