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Perigo a bordo

A morte ronda o transporte fluvial na região amazônica

HERBERT CARVALHO

Os rios são os caminhos naturais da Amazônia. Servida por escassos 14 mil quilômetros de rodovias pavimentadas (muitas delas intransitáveis na época das chuvas) e ínfimos 450 quilômetros de ferrovias, a região possui metade do total de 48 mil quilômetros de vias navegáveis do país.

Se o transporte fluvial é, dessa forma, quase o único meio de atender aos deslocamentos de carga e da população, a precariedade das embarcações e a falta de instalações portuárias compatíveis, a frota obsoleta, do tipo gaiola, a superlotação constante de carga e de passageiros e uma fiscalização despreparada e omissa fornecem os ingredientes das tragédias, que todos os anos ocorrem nos rios Amazonas, Madeira, Solimões e afluentes menores.

Desde meados do século passado, quando o empresário Irineu Evangelista de Sousa, o barão de Mauá, criou uma companhia de navegação no Amazonas, a iniciativa privada e mesmo os governos se desinteressaram de investir na formação de linhas regulares, fazendo proliferar um tipo de transporte que opera em bases semelhantes às dos perueiros clandestinos nas grandes cidades.

A situação se agravou a partir dos anos 1970 e 1980, quando o garimpo, a rodovia Transamazônica (hoje engolida pela selva) e projetos como o Jari, que representavam a "integração" e o "Brasil grande" dos governos militares, trouxeram para a Amazônia uma leva de migrantes maranhenses, piauienses e cearenses, atraídos pela possibilidade de empregos. A população do estado do Amapá, por exemplo, cresceu 357% em 30 anos em função desses projetos e de outros, como a exploração de manganês na serra do Navio.

Foi precisamente na rota pelo rio Amazonas, entre Macapá, capital do Amapá, e o enclave de 36 mil quilômetros quadrados do Projeto Jari, às 8 horas da noite de uma segunda-feira, 6 de janeiro de 1981, que o barco Novo Amapá naufragou com mais de 600 pessoas a bordo, quando sua capacidade não ultrapassava 150 passageiros.

Como se tratava de modestos trabalhadores braçais e não da elite endinheirada, como aquela que em 31 de dezembro de 1988 submergiu, em pleno réveillon na baía de Guanabara, junto com o Bateau Mouche, o episódio não chegou a causar comoção nacional, nem serviu de alerta para evitar tragédias futuras. Foram resgatados pouco mais de 300 corpos e outros 70 foram dados como desaparecidos, tornando impossível precisar o número total de vítimas fatais.

O que há de comum entre o naufrágio do Bateau Mouche e as tragédias na Amazônia é a ganância dos proprietários, favorecida por sua impunidade e pela omissão das autoridades, no caso as capitanias de portos da marinha. Quando existe excesso de peso, um barco pode afundar até mesmo pelo prosaico motivo de os passageiros se deslocarem para um lado para ver a paisagem. Foi o que ocorreu com o Sobral Santos, já atracado no porto paraense de Óbidos, na manhã de 19 de setembro de 1981, quando foi a pique com 530 passageiros e 400 toneladas de carga, provocando perto de 300 mortes.

Em meados dos anos 90, mais dois naufrágios, embora com um número menor de mortes, ilustram o descaso pela vida humana. Em agosto de 96 o barco Luana virou nas margens do rio Solimões, a 30 quilômetros de Manaus. A embarcação navegava com excesso de carga – aparelhos eletrônicos e antenas parabólicas. O comandante, que não tinha habilitação, saiu do porto de Manaus por volta das 22 horas de uma quinta-feira, horário em que a fiscalização da Capitania dos Portos não estava atuando. Ao chegar ao local conhecido como furo Paracuúba, um barulho estranho do lado direito chamou a atenção dos passageiros. "Depois de alagar, a embarcação foi arrastada pela correnteza até a margem do rio, ficando apenas com o casco fora da água", relatou a sobrevivente Luzinete Rodrigues, que conseguiu salvar a filha de um ano.

Em novembro de 96, o barco São José Acará, do tipo gaiola, integralmente construído de madeira e com aberturas nas laterais, para ventilação, foi atingido na proa por um tronco de 4 metros de diâmetro por 10 de comprimento. Em 20 minutos adernou no igarapé Mariquita, matando 25 pessoas, romeiros que se dirigiam para a festa do Círio de Nazaré, no município de Acará (PA). O barco tinha 25 anos de uso, e o tronco que o levou a pique provinha das inúmeras serrarias existentes nas margens dos rios e igarapés da Amazônia.

O maior e um dos últimos naufrágios da década ocorreu em fevereiro de 99 na rota Porto Velho (RO)–Manaus, pelo rio Madeira. O barco Ana Maria 8, de 25 metros de comprimento, 3 andares e 17 camarotes, afundou quando faltavam 20 quilômetros para atracar no porto de Manicoré, no estado do Amazonas. A embarcação podia levar até 150 passageiros, mas transportava quase 300, além da carga, composta até de veículos estacionados no porão. Um redemoinho provocado pela forte correnteza causou a tragédia, que matou mais de 50 pessoas, a maioria crianças.

A bordo do "Cristo Rei"

Menos de um ano depois do naufrágio, a reportagem de Problemas Brasileiros refez a rota Porto Velho–Manaus, a bordo de um barco semelhante e em condições idênticas ao que afundou.

A viagem pelo Cristo Rei até Manaus leva três dias e começa em Porto Velho, onde não há nenhum porto, nem mesmo velho: o embarque é feito por pranchas, precariamente colocadas ao pé do barranco na margem do rio Madeira, e que possibilitam, com certa dose de equilibrismo, o acesso à embarcação.

Não há recipiente para lixo a bordo. Latas de cerveja e de refrigerantes e todo tipo de embalagens são atirados sem dó nem piedade pelas amuradas. O Cristo Rei, como quase todos os seus congêneres, é um barco de três andares, com um porão de carga. No período das chuvas, ou "inverno", como dizem os habitantes (de novembro a março), quando as poucas rodovias, como a Porto Velho–Manaus, ficam intransitáveis, a única opção de transporte é a fluvial. Quem estiver de carro em Porto Velho pode despachá-lo por uma balsa e apanhá-lo em Manaus.

Dessa forma, o transporte de carga é o que garante a maior fatia de lucro para os proprietários, como admite Manoel Bentes de Freitas, um ex-garimpeiro com dentes postiços de ouro, que ocupa o único camarote com televisão, reservado ao dono do Cristo Rei e sua família.

No que seria o andar térreo, a carga transbordou do porão e ocupa a maior parte do espaço entre a cabine de comando e a cozinha, deixando um reduzido lugar no qual se espremem duas centenas de redes.

No segundo andar está o grosso da "classe econômica". São cerca de uma centena de redes com homens, mulheres e crianças. O preço para pendurar a rede (cada passageiro tem de trazer a sua) é de R$ 40 por pessoa, o que inclui as refeições – invariavelmente um prato feito de arroz, feijão, macarrão e cozido de batatas com pedaços de músculo, nos quais se encontram, entre gordura e sebo, vestígios de carne.

Ainda no segundo andar se localizam os banheiros, três para "elas" de um lado e três para "eles" do outro. São iguais: portas de madeira, uma latrina e um chuveiro. Papel higiênico ou qualquer outro produto de higiene pessoal é por conta de cada um.

Apenas no terceiro e último andar existe um espaço que se pode chamar de convés, onde se respira ar puro e se desfruta da exuberante noite amazônica. Ali ficam também o bar e alguns camarotes, que proporcionam ao ocupante, ao preço de R$ 100 por pessoa, um leito num beliche e um ventilador. São trancados à chave, o que evita os furtos, rotineiros entre os que dormem nas redes. Porém, para subir a esse oásis, o passageiro não pode ser obeso: a escotilha ou buraco de acesso, ao final de uma estreita escada, exige um exercício de contorcionismo até de quem tem menos de 1,60 metro de altura ou 70 quilos.

Apesar da superlotação de carga e passageiros, o Cristo Rei é tido como seguro, por ser novo e por ter um casco chato, em forma de prato. Na Amazônia, os maiores naufrágios ocorreram com barcos com casco em forma de T, mais vulneráveis ao desequilíbrio no caso de encontro com uma "ponta-d’água", como os marinheiros chamam os redemoinhos.

Na manhã do segundo dia de viagem o barco aporta em Humaitá, primeira cidade já no estado do Amazonas. A esmagadora maioria dos passageiros é constituída por gente da região e populações ribeirinhas, que fazem rotineiramente essa viagem. À noite a embarcação chega a Manicoré, local da tragédia anterior: um holofote, que apaga e acende intermitentemente na proa, fornece alguma luz para as manobras para atracar. Estamos na metade do caminho e tudo vai aparentemente bem.

No terceiro e último dia o barco está mais lento: já deixou o rio Madeira e agora sobe contra a corrente o rio Amazonas, nas proximidades de Itacoatiara. Nesse mar de água doce o tráfego de todo tipo de embarcações torna-se mais intenso, até que, após o almoço, avista-se Manaus como um pontilhado na linha do horizonte.

Uma última surpresa, entretanto, ainda nos separa do desembarque: uma lancha da Capitania dos Portos de Manaus rodeia o barco e finalmente atraca a seu lado, para uma vistoria. E o senhor Manoel Bentes de Freitas é autuado por não ter entre os tripulantes um paramédico que faça observar as condições de higiene na embarcação. No porto de Manaus, há dezenas de barcos iguais ao Cristo Rei, anunciando partidas para Belém (4 dias de viagem), Santarém (2 dias) ou Tabatinga, na fronteira com a Colômbia (7 dias). Quem tiver dinheiro para a passagem, uma rede para pendurar, coragem e fé em Deus, que se habilite.

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