Postado em
Contador de histórias
CECÍLIA PRADA
Certa noite de 1916 em Cruz Alta, cidadezinha no interior do Rio Grande do Sul. Na Farmácia Brasileira, de Sebastião Veríssimo, o menino Érico, de 11 anos, é chamado, de noite, para a sala de curativos. Devia segurar uma lâmpada enquanto cuidavam de um homem que fora espancado pela polícia. Até o fim da vida a emoção inesquecível perduraria: a lembrança de um polegar dependurado por um tendão, uma cabeça escalpelada, um ferimento de navalha que rasgava a boca até a orelha, os intestinos à mostra. Algo do romancista Érico Veríssimo desenhou-se nessa experiência. Diria ele: "Naquela noite nasceu em mim o sentimento de justiça, de repugnância pela violência, que me domina até hoje. Eu sentia medo e náusea, mas não larguei a lâmpada". Essa metáfora da "lâmpada que faz luz sobre a realidade do mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão", foi inúmeras vezes usada por Érico, para definir o que deveria ser o lema moral de todo escritor.
Em uma entrevista a Jorge de Andrade, em 1972, o romancista diria que uma das coisas mais terríveis de sua vida acontecera no dia 2 de dezembro de 1922: voltando a Cruz Alta nas férias do colégio, fora tragado por um drama doméstico, pois seu pai, que bebia, perdera numa hipoteca a casa da família, e a mãe se separava dele. Dali por diante o jovem de 17 anos assumiria o papel de chefe da família, trabalhando num armazém, depois num banco e a seguir numa farmácia. Sua vocação ainda não se definira. Hesitava entre o desenho e a literatura. Mas a partir de 1930, quando suas histórias começaram a ser publicadas primeiro em revistas e depois no Correio do Povo de Porto Alegre, mãe e filho mudaram-se definitivamente para a capital. Desde então Érico se resignaria "a tomar, no começo da carreira, sopa de pedra", mas faria da literatura sua vocação exclusiva, só aceitando empregos com ela relacionados.
Na década de 30 as contas domésticas ainda lhe pesavam no fim do mês. Já casado, trabalhava mais de 12 horas por dia, como tradutor da Editora Globo, escrevendo programas infantis para o rádio ou páginas femininas para os jornais.
"Meus primeiros livros foram escritos às pressas, com as aparas do tempo", costumava dizer. E se queixava de que "não poucos críticos continuaram a julgar minha obra por esses primeiros romances". Mas o crítico Wilson Martins faz questão de dizer, ao estudar o modernismo: "Em toda essa época, Érico Veríssimo foi, certamente, o mais popular de todos os romancistas modernos do Brasil e o mais injustiçado pela crítica; houve sempre contra o escritor, por parte desta última, uma atitude de reserva, se não de hostilidade, que se explica, antes de mais nada, pelo marginalismo que o situava ao lado das correntes literárias em voga".
Com os romances da série Clarissa (1933-40), o escritor usou, à maneira de Balzac, os mesmos personagens em histórias diferentes e incorporou recursos estilísticos da ficção inglesa e norte-americana – como a técnica do contraponto, que Aldous Huxley consagrara. O sucesso editorial de Olhai os Lírios do Campo, de 1938, permitiu que dali por diante pudesse se dedicar exclusivamente à literatura, tornando-se um dos dois únicos escritores brasileiros que puderam viver de direitos autorais – o outro é Jorge Amado.
No entanto, sua honestidade profissional, em vez de fazê-lo continuar a explorar o filão do romance lírico, medíocre mas popular (ele próprio classificava assim essa primeira fase de sua obra), obrigou-o a uma pausa de cinco anos, para a reflexão e para "tomar um longo, belo banho de silêncio". E O Resto É Silêncio, de 1943, marca um turning point decisivo, pois a partir de então a sua cosmovisão amplia-se e ele abandona os destinos e intrigas individuais para inserir seus personagens num quadro sociológico mais complexo e buscar na história temas épicos e na política internacional inspiração para livros sobre assuntos atuais.
A atormentada auto-análise do escritor em relação à sua obra continuou vida afora, desconcertando até os críticos. Uma frase constante nas muitas entrevistas que concedeu era "eu me amo mas não me admiro". É exemplo quase único de escritor que não partiu para a carreira motivado pela crença em seu talento, e dizia: "Acreditei, isso, sim, no meu desejo de escrever e seguir o ofício literário". Em uma entrevista concedida à escritora Clarice Lispector, com quem sempre manteve uma relação de amizade muito forte, desde os tempos em que ambos haviam vivido em Washington – ela como mulher de diplomata e ele como diretor de um departamento cultural da União Pan-Americana –, declarava: "Para começo de conversa, devo considerar que não me considero um escritor importante", respondia negativamente a uma pergunta sobre "sentir-se realizado", e acrescentava: "Você tem todo o direito de sentir-se realizada... Na minha opinião, trouxe algo de novo e importante para a nossa literatura".
Esse excesso de autocrítica manteve-se até o fim de sua vida. Já doente, em 1973, falava de novos projetos, "novos rumos" para sua literatura. Dizia ao crítico Antonio Hohlfeldt: "Confesso que cheguei a um ponto de saturação, autonáusea de minha obra literária, que me torna um pouco difícil escrever... e ao mesmo tempo ando tão apaixonado por literatura... Há tantas coisas novas que eu nem conheço. É por um enorme amor à vida que a gente faz arte. Multiplico minha vida na criação da dos outros".
O sopro épico
A grande obra de Érico Veríssimo, que lhe traria fama internacional, foi a trilogia de romances épicos O Tempo e o Vento, que escreveu entre os anos 1947 e 1960, na qual conta a história de uma família gaúcha em várias gerações, sobre o fundo da história do Rio Grande do Sul. O primeiro volume, O Continente, saiu em 1949, e é considerado, tanto pelo autor como pelos críticos, uma obra-prima. Quando foi traduzido e lançado na Alemanha, bateu todos os recordes como livro latino-americano mais vendido naquele país – em 1972 alcançara uma tiragem de 320 mil exemplares. O segundo volume, O Retrato, editado em 1951, e o terceiro, O Arquipélago, publicado em 1961, tiveram também grande sucesso. As três obras compõem um ciclo em que o escritor, usando a técnica do contraponto, apresenta as batalhas entre portugueses e espanhóis pela posse da terra nos tempos coloniais; as lutas separatistas, como a dos Farrapos; as disputas entre maragatos e florianistas, na época da Revolta da Armada, em 1893. Os fatos históricos, entremeados às histórias de duas famílias rivais, os Terra Cambará e os Amaral, tornam-se o pano de fundo dos personagens, da Colônia ao século 20.
Mas Érico sempre fez questão de dizer que não fizera romances históricos. Que seu verdadeiro interesse sempre foi criar personagens e elaborar tramas em que eles pudessem se desenvolver e manifestar. "Sou apenas um contador de histórias. Não tenho qualidades de historiador. O importante é o personagem. Onde o homem sofre e luta, aí está o assunto do escritor."
Ampliando o quadro de fundo de seus romances, na última década de sua vida o escritor abordaria assuntos da política internacional, em O Senhor Embaixador (1965) e O Prisioneiro (1967). Seu último romance, de 1971, Incidente em Antares, incorporou o "realismo fantástico" para descrever o clima de decomposição física e moral do país. Publicado no pior tempo da ditadura militar, é um livro forte, de denúncia, com uma cena final inesquecível: um estudante baleado pela polícia quando vai escrever num muro a palavra "liberdade".
Testemunha da liberdade
Levantando sempre, impávido, a lâmpada de seu idealismo, Érico Veríssimo realizou em sua vida, em sua obra, o lema de um escritor que muito admirava, Albert Camus: "O escritor é a testemunha da liberdade". Não hesitou em atacar abertamente, sempre que possível, os responsáveis pela ditadura, recusando submeter qualquer escrito seu à censura prévia, porque "fazer isso seria uma triste forma de suicídio moral". Em pleno governo Médici declarava, numa entrevista ao Correio da Manhã (19/11/71): "No Brasil hoje em dia predomina uma atmosfera de medo. Amigos tenho, apolíticos, que temem falar em certos assuntos pelo telefone. Ora, nenhum governo sem contestação poderá manter-se em permanente renovação. O direito de criticar construtivamente deve ser mantido. A imprensa deve ser livre e responsável. É um erro funesto confundir crítica patriótica com subversão. Estamos correndo o risco de perder o hábito de pensar".
Na ditadura de Getúlio Vargas, chegou a ser chamado à polícia em 1935, depois de publicar Caminhos Cruzados, definido como "livro comunista". O que não o livrou do posterior congelamento pela esquerda, que considerava sua literatura "alienada", já que Érico sempre se mostrou abertamente contrário a qualquer partidarismo ou a um "engajamento" prévio, que lhe ditasse diretrizes para a obra. Dizia: "Em todas as instâncias da vida brasileira e do mundo nunca deixei de me manifestar. O que dá a idéia de que não sou um escritor participante é a minha recusa em transformar romance em panfleto político".
Soube, entretanto, levantar sua voz contra a exploração, a corrupção, a injustiça, e colocou-se sem hesitação contra a Guerra do Vietnã e "todos os sistemas que, quando entram em choque, mandam homens para o matadouro como se fossem rebanhos".
Enfim, na definição de seu filho, escritor igualmente famoso, Luis Fernando Verissimo, Érico foi "um intelectual brasileiro que deu, como poucos, um testemunho sobre seu tempo, e manteve uma coerência também rara numa época de princípios volúveis".
![]() |
|