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À procura de um teto

 

Foto: Luiz Prado/AE

Projeto Moradia oferece alternativa ao financiamento da habitação

LEONARDO SAKAMOTO

Vista do alto, a região de Capão Redondo, na zona sul de São Paulo, forma um estranho mosaico. Não por causa das cores – que se alternam entre um vermelho-tijolo monótono, um cansativo cinza-cimento e um marrom-terra bem batido. São dezenas de milhares de pecinhas que se unem umas às outras, deixando parcos espaços vagos. A ilusão é a de um imenso tapete, subindo e descendo morros, pulando córregos até morrer à beira de um barranco ou nos limites do cemitério. De cima, todas as casas são iguais. De perto, a semelhança se restringe à forma como foram montadas. Cada uma delas, pedra desse mosaico, foi erguida pelos próprios moradores, que, nas horas de folga, remexiam cascalho e enfileiravam colunas.

As paredes da casa de Walter nasceram diferentes das de Amauri ou de Josias. Walter é coveiro do Cemitério do Jardim São Luís, famoso em toda a cidade por receber as vítimas da região mais violenta de São Paulo. Ergueu sozinho, em cima da casa de seus pais, um cômodo que funciona como sala, cozinha, banheiro e quarto para ele, a mulher e os dois filhos. Um armário separa a cama do fogão.

Desde que chegou de Jequié (BA), em 1979, foi pedreiro, vigia, servente e já fez todo tipo de bico para sobreviver. Hoje, ganhando R$ 290 por mês (dinheiro com que tem de sustentar sua família, sua mãe e seu pai doente de câncer) alimenta o sonho de se mudar para um lugar melhor.

Jogadas à própria sorte, pessoas de baixa renda que querem uma casa precisam construí-la com as próprias mãos ou procurar um abrigo sob viadutos ou marquises dos prédios nas metrópoles. Com a extinção do Banco Nacional da Habitação (BNH) e as medidas econômicas que foram se acumulando ao longo dos anos, o financiamento de um imóvel para essas pessoas tornou-se impossível. A solução encontrada foi a informalidade.

Para se ter uma idéia, de 1995 a 1999 foram construídos no Brasil 4,4 milhões de moradias. Destes, apenas 700 mil por construtoras e afins. O saldo restante não foi encomendado pelo governo, mas feito por iniciativa dos excluídos.

Os terrenos escolhidos para abrigar essas construções precárias estão nas periferias das grandes cidades (como é o caso de Capão Redondo), em vales de rios, várzeas, encostas de morros, baías de mar ou margens de rio – como as palafitas de Belém e Manaus. Em suma, locais que não interessam à especulação imobiliária.

Paraisópolis está nessa situação, encravada entre as margens de um córrego e um enorme barranco. Essa favela fica no bairro do Morumbi, um dos espaços mais caros de São Paulo e que ostenta algumas das maiores mansões do país. Barracos de madeira se alternam com construções de alvenaria, contrastando com os prédios de alto padrão a algumas dezenas de metros de distância. A cena remete diretamente à expressão "Belíndia", forjada pelo economista Edmar Bacha para designar bolsões de riqueza dentro de um mar de pobreza. Um pouco de Bélgica e muito de Índia.

Em 1970, apenas 1% da população da Grande São Paulo morava em favelas. Em 1993, esse índice atingiu 19,4%, de acordo com a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe). No total, 79,16% dos favelados brasileiros estão em nove regiões metropolitanas. O déficit de moradias atinge 9,3 milhões de unidades.

O problema da habitação parte de um círculo vicioso. Sabe-se que qualidade de moradia é essencial para combater a violência na cidade ou no campo. Ou mesmo para preservar a saúde. Locais construídos de forma precária dificilmente terão saneamento básico, o que acarreta graves problemas aos habitantes. O próprio ministro da Saúde, José Serra, afirmou que a cada US$ 1 investido em saneamento, US$ 5 são poupados na área da saúde. Um exemplo: de 1995 a 1997, mais de 350 mil crianças morreram no Brasil em decorrência de doenças relacionadas à falta de saneamento básico. Só se poderiam conceber taxas tão altas de mortalidade infantil em situações de guerra civil, como as de Timor Leste e Angola. Isso sem falar das oportunidades de educação, emprego, transporte e um sem-número de direitos que ficam distantes dos que moram à margem da cidade.

As conseqüências, porém, não ficam restritas ao universo dos excluídos. A má utilização da superfície das cidades traz sérios prejuízos a todos os moradores e ao meio ambiente. Por exemplo, a ocupação desordenada de áreas de mananciais, que abastecem as cidades, pode no médio e no longo prazos ser a responsável pela diminuição ou mesmo o desaparecimento da água potável. Na capital paulista, a região sul, onde estão localizadas as represas Billings e Guarapiranga, está repleta de loteamentos ilegais. E, como não há saneamento, o esgoto é lançado nelas sem nenhum cuidado.

Um novo projeto

No dia 26 de maio, um seminário lançou oficialmente em São Paulo o Projeto Moradia. Elaborado pelo Instituto Cidadania, que promoveu o encontro, o programa tem como objetivo reconstruir as cidades brasileiras deterioradas pela ocupação irregular do solo e da propriedade.

O projeto não apresenta nenhuma solução mirabolante para o problema da habitação, uma vantagem que pode favorecer sua implantação pelas autoridades de Brasília. A idéia gira em torno de uma palavra: financiamento. Uma articulação entre as esferas federal, estadual e municipal do poder público, iniciativa privada e organizações da sociedade civil pode criar os meios para a aquisição da casa própria. Não se trata de promover doações, mas de facilitar para os trabalhadores a compra de um imóvel. O segredo seria respeitar a capacidade de pagamento de cada um, de acordo com sua renda familiar. O poder público absorveria o restante.

"Pelo menos dois terços dos que carecem de habitação no Brasil não têm como arcar com a amortização do financiamento. Diante disso acabam indo à luta com seus próprios recursos", expôs o economista Pedro Paulo Branco, assessor especial da Secretaria de Emprego e Relações de Trabalho do Estado de São Paulo e um dos coordenadores do projeto.

A solução oferecida pelo projeto é uma política de subsídios com recursos oriundos de um Fundo Nacional de Moradia, composto por verbas do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e do ICMS, parcelas dos recursos da rolagem de dívida dos estados e municípios e por dotações do Orçamento Geral da União.

De acordo com o projeto, o FGTS continuaria sendo a principal fonte de recursos para a habitação. Para o ano 2000, são R$ 4,5 bilhões em retorno de operações de crédito que poderiam ser utilizados. Além disso, a aceleração dos pagamentos devidos pela União, dependendo da revisão da forma de ressarcimento do Fundo de Compensação de Variações Salariais, acrescentaria outros R$ 2 bilhões – fora as reservas de R$ 13 bilhões de janeiro de 2000, aplicadas em Títulos do Tesouro Nacional. Por outro lado, uma fiscalização mais rígida sobre os empregadores permitiria obter muito mais do que o que hoje é arrecadado.

Estados e municípios entrariam com parte do ICMS como sua participação no subsídio. No caso de São Paulo, o estado captou recursos do ICMS para a habitação, o que poderia ser copiado em outros estados. A alíquota incidente sobre produtos taxados em 17% foi aumentada em 1%, resultando em uma elevação na arrecadação global de 3,12% – equivalente a R$ 670 milhões em 1996. Considerando o ICMS arrecadado em todo o país, haveria R$ 1,9 bilhão (a partir de dados de 1999) que seriam destinados diretamente ao Fundo Nacional de Moradia.

A União reverteria recursos tomados dos estados e municípios, receitas relativas às parcelas de pagamentos referentes à renegociação de dívidas (lei 9.496/97) e que seriam realocados para uso no fundo de habitação. Para se ter uma idéia, cálculos dos coordenadores do projeto indicam mais R$ 1,9 bilhão apenas com a verba oriunda da rolagem da dívida.

Para a erradicação do déficit habitacional em 15 anos – como está proposta – serão necessários R$ 89,7 bilhões ao longo do tempo. Na prática, a necessidade de recursos será menor (R$ 46,8 bilhões), pois os novos moradores irão pagar as parcelas de seu imóvel, aumentando conseqüentemente o dinheiro em caixa a ser reinvestido. Considera-se sempre um prazo de financiamento de 240 meses, com taxas de juros de 6% ao ano, em média. A proposta sugere também que a titularidade dos contratos de financiamento e da propriedade da moradia fique com a mulher, seja ela chefe de família ou não.

Financiamento

O Fundo Nacional de Moradia, que teria a Caixa Econômica Federal como agente operador e atenderia a famílias com renda de até 12 salários mínimos, seria composto por três fundos específicos: o Fundo de Aval, o Fundo de Subsídio à Moradia e o Fundo de Equalização de Taxas.

O Fundo de Aval garantiria aos agentes financeiros a solvência dos créditos. Em outras palavras, seria uma espécie de fiador, e garantiria que os pagamentos das parcelas da casa própria fossem realizados, mesmo com a perda de emprego do proprietário. O risco de crédito é uma das principais justificativas que impedem o mercado de financiar a construção de casas populares. Os recursos desse fundo viriam do patrimônio líquido do FGTS (avaliado em R$ 7,3 bilhões em dezembro de 1999) e de outros recursos do Orçamento Geral da União.

A diferença entre o valor da prestação do imóvel e a capacidade de pagamento do beneficiado (estipulada em no máximo 20% de sua renda familiar) seria absorvida pelo Fundo de Subsídio à Moradia. Calculado a partir do prazo de financiamento (em geral 240 meses), o total seria pago antecipadamente no ato da contratação ao financiador. Esse fundo teria como fonte o ICMS e recursos dos estados e municípios.

Por último, o Fundo de Equalização de Taxas teria como função absorver a diferença entre os juros e a correção monetária, de um lado, e a capacidade de pagamento do mutuário, do outro. Ela seria revista anualmente, para averiguar possíveis aumentos na renda familiar.

Exclusão

"Hoje há mais famílias morando mal que há 30, 40 anos", lembrou o sociólogo Lúcio Kowarick, professor titular do Departamento de Ciências Políticas da Universidade de São Paulo. "Mas, ao mesmo tempo, o analfabetismo diminuiu e aumentaram o número de crianças na escola e a expectativa de vida."

Ermínia Maricato, também professora titular da USP e secretária da Habitação e de Desenvolvimento Urbano da prefeitura de São Paulo na gestão Luiza Erundina (1989-1992), manifestou opinião semelhante sobre as grandes metrópoles. "Será que podemos dizer que a urbanização melhorou a qualidade de vida?"

Em 1950, 8,8 milhões de pessoas (36% da população) moravam em cidades. Com a explosão urbana, esse número saltou para 123 milhões em 1996 – mais ou menos 78% da população. A estimativa é que 50 milhões de brasileiros morem em apenas seis metrópoles ao final do ano 2000. Boa parte deles em cinturões de pobreza sem a mínima infra-estrutura.

De acordo com Ermínia, "a regra é que o investimento público seja feito onde o mercado é mais concentrado e mais dinâmico." Ou seja, onde há mais dinheiro a ser gasto, o que exclui a parcela pobre da lista de prioridades.

Evaniza Rodrigues, assistente social e coordenadora executiva da União Nacional por Moradia Popular, lembrou que "o conceito de terra improdutiva no campo é largamente aceito. O grande problema, hoje em dia, é aplicá-lo às cidades". Devido ao abandono, à especulação imobiliária ou mesmo a processos judiciários, uma grande quantidade de imóveis permanece vazia enquanto um número muito maior de pessoas vive sem teto. As notícias de invasões de terra do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) agora dividem espaço na mídia com ocupações de edifícios abandonados no centro das metrópoles por grupos de moradia urbana. Sem ter para onde ir, trabalhadores acabam se instalando em locais sem água ou luz, esperando uma solução do governo. "São imóveis vazios que deveriam cumprir sua função social", diz Evaniza, que lembra que a função social da propriedade está na Constituição (artigo 5o, parágrafo XXIII, artigos 182 e 183), o que torna o imóvel passível de desapropriação. De acordo com o censo de 1991 do IBGE, havia 2.962.815 imóveis urbanos vagos em todo o país, o que representa 9,3% dos domicílios existentes na época. Só na cidade de São Paulo, os imóveis ociosos poderiam abrigar mais de 1 milhão de pessoas.

O projeto prevê também instrumentos legais para aplicar uma política fundiária e imobiliária nas capitais, como, por exemplo, o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) progressivo no tempo em caso de desocupação, a edificação compulsória em terrenos baldios e, em último caso, a própria desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública. O IPTU progressivo, aliás, está à espera de regulamentação no Congresso Nacional.

"Desde o fim do BNH, em 1986, houve a mais completa desorganização do sistema de habitação no país", lamenta Nabil Bonduki, arquiteto e professor da Escola de Engenharia de São Carlos (SP), da USP. Ao expor a estrutura do Projeto Moradia, Nabil propôs a criação de um Sistema Nacional de Habitação, com uma modalidade única de financiamento, descentralização das ações para o nível municipal, participação da sociedade na gestão e ordenação das intervenções através de planos habitacionais.

Uma articulação entre União, estados e municípios estabeleceria claramente as funções de cada esfera governamental e dos agentes públicos e privados envolvidos. Comporiam o sistema um Ministério das Cidades, que não teria função executiva, mas apenas planejadora, articuladora e normativa; Conselhos de Desenvolvimento Urbano, responsáveis pela formulação e aprovação de planos habitacionais; Fundos de Moradia e agentes financeiros, que centralizariam os recursos disponíveis para populações de baixa renda; a Agência Nacional de Regulamentação do Financiamento Habitacional, que regularia o sistema financeiro habitacional hoje gerido pelo Banco Central; agentes promotores, que organizariam a demanda e a elaboração de projetos que seriam apresentados aos conselhos (um exemplo seriam as Companhias de Habitação Popular – Cohabs, caso fossem reestruturadas); agentes técnicos e organizações não-governamentais, que prestariam assessoria em diversas áreas.

Brasília, porém, não viu com bons olhos o Projeto Moradia. Flávio Candelot, diretor do Departamento de Habitação da Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano da Presidência da República, que representou o governo federal no evento, desqualificou o pioneirismo do programa, afirmando que o Executivo já possui similar. "Quão grande a minha alegria e minha surpresa quando chego aqui e conheço um plano igual ao nosso – que eu não trouxe aqui por achar que não era a ocasião", disse. De acordo com sua informação, o governo está projetando casas de 39 metros quadrados para cinco pessoas, num total de 320 mil unidades para famílias com renda de até três salários mínimos. O preço de custo de cada uma ficaria em R$ 10 mil, dos quais R$ 5 mil seriam subsidiados pelo governo e o restante pago pelo mutuário em parcelas mensais de R$ 40.

Em sua exposição no seminário, Candelot afirmou que os números, métodos e técnicas apresentados pelo Projeto Moradia já foram pensados pelo governo federal. "Não vamos mais criar estruturas para a habitação. As atuais já são muito boas, e é só colocá-las em prática."

Planos, projetos e programas, portanto, não faltam. Infelizmente, como em muitos outros aspectos da vida brasileira, o difícil mesmo é realizá-los.

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Saudosa maloca

"Se o senhor não está lembrado, dá licença de contar / Aqui onde agora está esse edifício alto / Era uma casa velha, um palacete assobradado / Foi aqui, seu moço, que eu, Mato Grosso e o Joca / Construímos nossa maloca". Adoniran Barbosa cantou em seus versos um período da história paulistana em que velhos casarões de barões do café, tornados cortiços ao longo do tempo, foram demolidos para dar lugar aos altos edifícios de bairros nobres, como Higienópolis. Expulsas, as famílias não tinham para onde ir, e instalavam-se nos extremos da periferia.

A cena se repete ainda hoje, mais vagarosamente que antes. Cortiços em regiões retratadas no passado por Alcântara Machado no livro "Brás, Bexiga e Barra Funda" e também nos antes requintados Campos Elísios abrigam dezenas de famílias. Sem o mínimo de saneamento básico, às vezes sem água e sem luz.

Apesar das dificuldades, a maioria dos moradores prefere continuar assim, pois transporte é o que não falta e a casa fica próxima ao trabalho – ao contrário do que acontece em bairros da periferia, onde o trajeto até o centro chega a levar três horas, dentro de ônibus superlotados.

José – o nome é fictício, pois o morador não quis se identificar – morava com a mulher, filhos, cunhado e primos em um velho casarão, semidestruído, de propriedade da Universidade de São Paulo, na Rua Havaí, localizada no caro bairro de Perdizes. O local não possuía a mínima segurança, uma vez que as tábuas caíam ao se caminhar pela casa. Mesmo assim, José não arredava pé de lá. "Se sair não tenho para onde ir."

Passaram-se os meses e a universidade mandou demolir a casa. Para onde foram José e o populacho que lá vivia? Ninguém nunca soube dizer. Provavelmente engrossam a densidade demográfica de outro cortiço. Que logo poderá ser igualmente derrubado. É o retrato vivo do problema habitacional nas grandes cidades brasileiras.

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