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Milton Santos e Gilberto Freyre
MILTON ALMEIDA DOS SANTOS Eu quase não dormi esta noite porque, entre as oportunidades que a vida me ofereceu, nenhuma foi parecida com a de um encontro com as biografias que aqui estão presentes. Estou muito feliz que me hajam outorgado esse prêmio, que para mim também é uma première, pois nunca havia recebido como prêmio um busto. Ao mesmo tempo, isso me envaidece e agrada por se tratar de Gilberto Freyre.
Vou dividir o que tenho a dizer em duas partes. Uma delas sobre Gilberto Freyre, e a outra será uma visão bastante sucinta da forma como vejo o Brasil.
Conheci Gilberto Freyre quando ele era jovem de espírito e eu ainda jovem de espírito e de corpo. Eu começava meu trabalho de reconhecimento do território das sociedades baianas, de um lado continuando o que fizeram em Ilhéus, onde tive a ventura de privar com Luiz Prisco Viana, desde então meu amigo dileto. Isso foi numa fase em que o trabalho intelectual tinha muitos escolhos, mas os jovens não eram muito desamparados, porque havia no Brasil grandes mecenas e grandes homens que ajudavam objetivamente a que esse trabalho intelectual se fizesse. Tive a sorte de contar, nessa galeria, com pessoas como Anísio Teixeira, que sempre me encorajou, e Gilberto Freyre, que me fez dois grandes agrados. O primeiro foi o de apoiar financeiramente algumas das pesquisas que eu estava fazendo e que ia fazer. Não sei se a família de Gilberto Freyre sabe disso, porque desde 64 se deu um hiato, não por culpa minha, nas minhas relações com o Instituto Joaquim Nabuco. Felizmente, foram retomadas essas relações em 1999, para agora se encorparem, ainda mais graças à Federação do Comércio do Estado de São Paulo. Pois bem, Gilberto Freyre me ofereceu seu apoio para que eu pudesse ter recursos e trabalhar sem dificuldades. Publicou parte do meu trabalho e sobretudo, ao dar uma aula inaugural na Universidade da Bahia, teve a generosidade de me incluir ao citar o nome de três baianos que faziam trabalhos sérios: junto com o de Tales de Azevedo, que era então um líder da atividade de ciências humanas na Bahia e no Brasil, e mais uma outra pessoa cujo nome não lembro. Mas aos 73 anos tenho também o direito de esquecer nomes.
Gilberto Freyre tinha para nós uma sedução toda especial. Basta dizer que ele era uma leitura obrigatória, não apenas para beber o que era científico na sua obra, mas sobretudo para imitar seu estilo. Nós nos surpreendíamos buscando imitar aquela prosa poética, aquele discurso ritmado, aquela música que procuro manter no que escrevo e nem sempre consigo, porque a academia é árida e dificilmente admite que a beleza possa ser companheira da mostra do resultado do trabalho. Isso para dizer como esse homem, Gilberto Freyre, junto com Josué de Castro, naturalmente, junto com José Lins do Rego, junto com Jorge Amado, teve uma formidável influência sobre nosso trabalho. É verdade que Gilberto Freyre era um daqueles antropólogos formados nos Estados Unidos, aluno de Franz Boas que ele foi, um estudioso da escola de antropologia cultural, que era uma área muito próxima da geografia humana que estudei antes de ir para a França, que continuei estudando e depois estudei ainda mais para criticar meus mestres. O que, aliás, é dever de todo bom aluno. Gilberto Freyre, por conseguinte, até hoje marca minha trajetória. Ele tem um lugar muito preciso e alto no meu coração, mas também na minha inteligência. E estou contente de que ele me tenha dado, por intermédio deste conselho, esta oportunidade de homenageá-lo, entregando-lhe a homenagem que me é feita.
Na segunda parte, vou tentar fazer um retrato dinâmico do que penso que é o Brasil para chegar também a uma tentativa de descrição dinâmica do que o país é hoje. Eu distinguiria três períodos na história brasileira, que, no meu modo de ver, somente pode ser analisada se considerarmos as histórias combinadas da terra e do povo. Nem uma nem outra são suficientes para entender um país, se não estiverem combinadas. O território é uma herança que se renova, porque a ação está sempre presente. O passado teima em ficar, através não apenas das construções sociais que se estabelecem, mas da produção de objetos que nos servem, aos quais às vezes também servimos, e que constituem o esqueleto da própria vida nacional, mas que não podem ser entendidos sem os homens. Cada vez que entendemos o território sem os homens que nele estiveram e que nele estão fugimos a uma interpretação correta. Interpretação correta é aquela dinâmica, que toma os materiais, os classifica, os hierarquiza e, hierarquizando, produz um discurso que é, ao mesmo tempo, acadêmico e político. Estou me referindo ao discurso político da faculdade, que não é o discurso dos políticos, porque é livre de injunções e de conjunturas, e pode ser a base da produção de uma outra política. Não há outra aspiração maior de um homem da faculdade que essa. Creio que houve três fases na história do Brasil em território do povo, que eu ultimamente venho analisando a partir das técnicas. Acredito que as técnicas, velhas companheiras do homem, desde sempre, são autorizações para fazer. Utilizadas ou não, são condições do fazer. Por conseguinte, elas são o instrumento de análise da história de um povo, do presente de um povo. Vejo o Brasil em três momentos. O primeiro momento é longo, dura 350 anos. Longo e lento, os brasileiros estavam quase parados. Um Brasil vagaroso, quase incomunicado e forjando, por meio de um território e de uma cultura territorial, como foi e é a cultura baiana, como foi e é a cultura nordestina, como a pernambucana, personalidades regionais fortes, duráveis, resistentes. A vida cotidiana nessas áreas, embora calibrada por relações externas, era dominada por um tempo próprio, que era o tempo interno.
O segundo período dura aproximadamente um século e mostra um Brasil já em movimento. Certas áreas são mais abertas, outras não. O litoral é mais cosmopolita, e o interior mais tabaréu ou caipira. Se me pedissem para distinguir o tabaréu do caipira, eu não o faria aqui, mas me comprometeria a delicadamente estabelecer as diferenças. Grosseiramente, o tabaréu se instala na cidade e faz dela uma metrópole; o caipira se instala na metrópole e faz dela um burgo rural, mesmo se tiver 16 milhões de habitantes. Mas paro aqui, já viram por quê. Nesse período, temos um tempo misto, um feixe de temporalidades, concomitantes mas não propriamente sincrônicas, harmonizadas por um comércio desigual. E é nesses cem anos que as diferenças regionais se estabelecem como desigualdades. Antes eram apenas diferenças; agora são desigualdades que vão perdurar, daí por diante, na história brasileira.
Na era atual se constrói, em menos de 50 anos, um Brasil fluido, submetido à generalização dos tempos do mundo, situação em que o tempo dos outros quer se impor, como se impõe no Brasil atual, desgraçadamente, como o tempo despótico e o tempo desigualitário. Durante esses três períodos, em todos os momentos, vivemos tendências cooperativas e conflitantes entre uma vontade de unidade e uma tendência à desagregação. A obra de Gilberto Freyre é um discurso que pede a unidade da nação vejo-a através desse prisma , e, como ele, havia outros autores que a buscavam através da produção de um discurso audível dos homens do poder, que então coincidia com o dos homens do Estado, o que no período atual não vai mais se dar, porque o poder passa para os senhores, e os homens do Estado já não têm poder e por isso não controlam o desenvolvimento da nação. Mas isso é uma constante na vida nacional. Quando Rui Barbosa, naquele seu famoso discurso da campanha civilista, diz: "O sertão não vê o mar, o mar não vê o sertão", ele se referia a essa possibilidade de uma fratura que devia ser colmatada. Mas há também o que a gente vê na obra de, entre outros, Roger Bastide, que veio fundar a Universidade de São Paulo, onde ele sugere que há muitos Brasis, mas que há sempre um recosimento do tecido nacional graças aos discursos dos clérigos e dos leigos. Isto é, os homens dos conventos e os homens das faculdades que produziam o discurso da nação uma fala privilegiada e que nunca teve a ver com a do povo, e que era reconhecida somente depois que tivesse sido reproduzida no estrangeiro, já que a mania nacional sempre foi a de copiar e aceitar as coisas apenas depois de aceitas lá fora recriaram juntos, a cada momento de dificuldade, as condições de manter a unidade nacional. É evidente que homens como Getúlio Vargas tinham visto isso muito claramente. A geopolítica de Getúlio Vargas e, por que não dizer, a geopolítica de Golbery do Couto e Silva, não importam as divergências de natureza política que possamos manter com ele, é essa idéia do país como uma unidade, isto é, essa contradição que se nota, aqui e ali, entre alteridade e unidade, entre alteridade e personalidade, entre alteridade e individualidade, que permite à nação resolver aquilo que, em relação à nossa Bahia, Otávio Mangabeira, que foi nosso mestre, chamava de "enigma brasileiro". É o enigma de como este país tão grande pôde manter-se uno, a despeito de todas as procelas.
Chega-se ao terceiro período, onde se produz a fluidez. É verdade que não se produz fluidez sem aumentar a fixidez dos objetos. Os objetos se tornam maiores, mais tecnicamente expressivos, representativos de uma vontade, elaborados primeiro na inteligência, na historicização e na geografização de uma metafísica. Afinal, o sonho dos filósofos se transforma inicialmente na realidade dos países, mas sobretudo no trabalho dos geógrafos (permitam-me fazer essa modesta observação), de modo que, através dessas amarras que se estabelecem, no território tudo flua. Só que esse fluir, que no Brasil está se dando agora, se dá sobre uma base que é por definição conflituosa. O território é sempre e sempre o lugar do conflito, e é por isso que é importante estudar a história através do território, porque ele ordena, e ele ordena porque é a condição do conflito. As duas tarefas se dão concomitantemente, e as duas influências mutuamente constroem a nação. Nos últimos 50 anos, essa construção se dá a uma velocidade ciclópica, com mudanças que não podemos registrar, a tal ponto que não sabemos exatamente o que é este país. Vejo um vulcão neste país, Brasil, mas estou seguro de que poucos entre os meus colegas da faculdade vêem assim. Talvez seja o fato de o território ser meu terreno de trabalho que me permita ver assim, isto é, o território como um campo de forças. Quando esse campo de forças se transforma em um campo de uma enorme fluidez no mundo, que se tornou extremamente acelerado na produção da sua história; quando a economia, gabada por todos, é essa economia globalizada, que eu chamarei de globalitária, porque não deixa margem a uma discussão mais acirrada do que é, o que se dá é a produção da anarquia, que estamos reconhecendo no Brasil. Esta insistimos em ver como se fosse resultado de focos, como a desordem urbana, a desordem no mundo rural, em lugar de vê-la como resultado de um conjunto de causas que se exercem sobre um território, que, embora subdividido, é sempre uno.
Agora acontece algo de diferente e de importante e para o qual chamaria a atenção dos senhores. Até então, a voz audível do Brasil era a dos clérigos e dos homens das faculdades. Os outros discursos todos eram discursos malditos, pelo menos não ouvidos, a tal ponto que as famílias de classe média ou abaixo da média, que queriam educar seus filhos para mandar foi o caso da minha família, que me educou para o mando e não para a obediência , eram desaconselhadas à prática de tudo o que cheirasse a popular. Futebol: jamais estive num campo de futebol, isso poderia perturbar minha carreira. Imaginem assistir a um candomblé. A minha aspiração era falar pelo Brasil com a fala privilegiada, a voz audível dos de cima. Estes últimos anos mudaram tudo no Brasil, porque são os de baixo que falam, e nós, ou melhor, os senhores, que são os de cima, ficam de fora e não somente ouvem como repercutem. É curioso que a grande mutação do nosso tempo tenha vindo através das técnicas que esse tempo criou. As técnicas da máquina, que deram como resultado a produção do imperialismo, eram pesadas, e reclamavam concentrações, exclusividades sociais, econômicas e geográficas, recusando-se ao uso da população como um todo. Agora, não. As técnicas que se entronizam como condutoras da história que se está fazendo são dóceis, doces, abertas a todas as culturas, a todos os horizontes, a todos os homens, que um dia poderão utilizá-las em benefício da humanidade e não de alguns. E já as estão usando. Quantos de nós temíamos que a música popular se corrompesse com o uso da técnica? O que vimos foi esse quase milagre de, através da música popular, alcançarmos a derrota da cultura de massa e a vitória da cultura popular. Quem fala pela nação brasileira hoje somos alguns de nós, intelectuais, mas sobretudo os homens e as mulheres de todas as formas de arte. A arte ganha o papel de produtora de um discurso que não é apenas o da cultura, mas sobretudo o da política. Porque só há duas políticas no Brasil hoje: a das grandes empresas e a dos pobres. As grandes empresas fazem a política na ausência do Estado federal, do Estado estadual e do Estado municipal, porque eles não fazem política. Esses três níveis do Estado brasileiro produzem o discurso da política das empresas. E a desordem nacional tem origem exatamente nisso: é que as empresas são, por definição, egoísticas, egoísmo que se exacerba no mundo globalitário, onde a competitividade se torna não apenas uma norma mas uma exigência de sobrevivência. Como condenar o industrial que pisa no pescoço do seu colega para continuar vivendo? É essa também a nova "ética de resultados", que, abolindo ou ameaçando as antigas formas de compaixão, faz com que a pobreza, afinal, seja considerada algo natural e por conseguinte justificado.
Eu queria discutir mais esse assunto, mas o melhor é que eu pare aqui . Não sei se consegui realmente, mas tentei pôr nele uma pitada de bonomia e uma carrada de otimismo. Se os senhores me permitem que venha aqui dizer essas coisas, eu lhes sou extremamente agradecido.
Debate
VAMIREH CHACON Caro Milton Santos, demais colegas conselheiros, permitam-me começar com uma breve, embora intensa, nota pessoal de saudade. Conheço sua obra relativamente bem, Milton Santos, porque é de uma área que, embora não seja exatamente a minha, tem tantos pontos de convergência e confluência que nela identifico uma das principais interpretações do Brasil e do mundo em nosso tempo. Essa nota de saudade se refere a seu irmão, Naílton Santos, por muito mais que sua própria vida, que foi de construção e de defesa do desenvolvimento brasileiro e não apenas nordestino. Naílton Santos, um homem de talento e inteligência (vemos que é uma característica de família), e de caráter e generosidade, mesmo nos piores momentos, aqueles mais difíceis da vida pessoal, no regime de 1964/1985. Milton, seu irmão jamais perdeu o bom humor e a generosidade. Fica portanto esse toque de saudade, de homenagem a seu irmão, que precisará ser lembrado mais adiante e com mais profundidade entre os criadores da Sudene. Porque não foi apenas um homem o seu criador, Celso Furtado, por mais méritos que naturalmente ele tenha e os quais não negamos.
Simplesmente, fazendo aqui uma ligação entre sua obra e a de Gilberto Freyre, relembro uma conversa que tive hoje pela manhã com Sonia Pimentel, filha de Gilberto e presidente da fundação que leva o nome do escritor, a propósito da inexistência, explícita ou mesmo implícita, de pretensão de democracia racial já existente no Brasil por parte de Gilberto Freyre. O que Gilberto disse e insistiu é que o Brasil tinha muito mais probabilidades de alcançá-la que qualquer outro país do mundo. Não preciso citar os casos dramáticos de Kosovo, da Bósnia, da Chechênia, de Ruanda ou do Burundi. Basta ir aqui ao lado, à Bolívia, que está em "semi-estado de sítio", uma categoria inexistente no direito constitucional, mas factualmente vigente hoje. Na realidade a Indo-América, como também é chamada, vive em situação de intermitente guerra civil desde a independência. Gilberto apenas afirmou que o Brasil estava mais próximo de uma democracia racial ou étnica, ou cultural mesmo, como seria melhor dito, dentro da linha de Franz Boas, para quem "as culturas são muito mais importantes do que as raças". Tanto é assim que se atentarmos com mais cuidado na leitura de Casa-Grande & Senzala, o que vemos permeando toda a obra, entre outros fatores e dimensões fundamentais? O sadismo da casa-grande. Praticamente da primeira à última página é o que se vê, e a conclusão de que o negro é co-colonizador do Brasil, tão ou mais do que o português. E ainda hoje eles, os negros e seus descendentes mestiços, são os que levam nas costas o Brasil. E carregam o Brasil de uma maneira muito simples, pois são a mão-de-obra barata que nos permite a competitividade, que não conseguimos alcançar até agora, por razões tecnológicas, em termos internacionais. O resultado é uma tensão permanente, de uma guerra civil não ideológica ou pré-ideológica de baixa intensidade. Esse é o termo que os militares usam para a situação atual do Brasil: guerra civil pré-ideológica de baixa intensidade. Basta verificar o que acontece em alguma grande cidade do Brasil, não apenas no Rio de Janeiro, não apenas em São Paulo, já em Brasília e em inúmeras outras, com pouquíssimas exceções, ao longo de um mês ou mesmo ao longo de um dia qualquer. Há muito mais baixas do que na Guerra do Vietnã. E quando, sem querer propriamente citar alguém, mas de qualquer forma concordando pelo menos com essa referência, esse alguém diz que "o Brasil não é propriamente um país subdesenvolvido e sim um país injusto", no fundo, ele está certo. Nós poderíamos e deveríamos ter uma tecnologia muito maior que a que temos hoje. Basta seguir o caminho apontado por Anísio Teixeira, cujo centenário também se comemora este ano, e que foi tão grande amigo de Gilberto, a quem convidou para dirigir o Inep, no nordeste, e a cuja posse que foi a inauguração da vivenda de Santo Antônio de Apipucos assisti, por coincidência.
Temos de construir um modelo institucional político brasileiro para viabilizar a mudança social e econômica. Não precisamos ficar complexados por causa dessa ausência. Na realidade, só há duas matrizes, uma do parlamentarismo e outra do presidencialismo: a matriz parlamentarista inglesa e a matriz presidencialista estadunidense. Os demais povos do mundo que conseguiram adaptar com êxito o parlamentarismo, mais do que o próprio presidencialismo, no fundo estão realizando simplesmente operações de reajustamento desse modelo maior a sua realidade local. Estamos entre os muitos que não conseguiram, até hoje, construir um modelo político institucional para o Brasil. E não apenas em termos de presidencialismo e parlamentarismo, mas também de federalismo e unitarismo. Todos sabemos que não existe federalismo no Brasil, nem jamais existiu. Houve em determinada época, sobretudo no tempo de Campos Sales, o estadualismo, a política de governadores. A partir de certo tempo para cá, já desde antes de 1964 (clamava-se isso contra Juscelino Kubitschek), vem tornando a crescer o unitarismo. Minha opinião, personalíssima, é de que essa tendência é inevitável e até certo ponto benéfica, porque, de fato, não tem partido dos estados nem muito menos dos municípios qualquer tentativa de modernização institucional e administrativa do Brasil. Veja-se o caso, por exemplo, da carreira de gestor, criada já há seis ou sete anos em nível federal. Há um centro de treinamento, a Enap (Escola Nacional de Administração Pública), que não é necessariamente uma imitação do modelo francês. Nenhuma administração estadual brasileira conseguiu, até agora, criar um quadro de gestores estaduais e de administradores públicos estaduais e muito menos municipais. Isso, em uma última instância, explica por que Portugal é um Estado unitário. No ano passado, Portugal rejeitou em plebiscito o federalismo, que eles chamavam regionalismo. O fato não tem nada a ver com o tamanho de Portugal, porque a Holanda e a Suíça são menores do que Portugal e são federalistas. Vivemos nos debatendo nesses dilemas, e verifica-se que, se de fato se romper a força centrípeta organizacional mínima (não é propriamente máxima, como dizem os detratores), no Brasil vamos enfrentar realmente uma crise institucional muito maior do que a que vivemos atualmente. Eu digo isso apenas como um comentário inspirado em seu texto, não propriamente referente a ele, e desejoso de ouvir sua opinião a esse respeito.
MILTON SANTOS Estou feliz por reencontrar Vamireh Chacon e poder dialogar com ele. Não imagino que o unitarismo brasileiro possa durar muito tempo. O que vejo no Brasil atual é uma reforma da Constituição que é feita de forma sub-reptícia, porque a cada dia se propõe uma mudança particular sem a apresentação do conjunto de reformas que permitiria o debate da nação, que essas reformas excluem. E essas reformas não têm base na realidade profunda do Brasil, do país em tempo de globalização.
O que acontece ao território de países como o Brasil, que se abriram inteiramente ao processo globalitário? A globalização estabelece, de uma vez por todas, a regionalização. Onde não havia regiões, elas se criam: umas mais ligadas ao nexo global, que é mercantil, outras menos ligadas. Mas como a nação é uma só, ainda que digam que o território não existe mais e que o Estado se enfraqueceu e essa fluidez de que falei há pouco faça com que todas as parcelas do país interajam entre si, a globalização atribui a cada região do Brasil um modo de vida que não é regulado nem pelas autoridades locais, nem pelas estaduais, nem pelas federais. E também não o é pelas empresas, sobretudo as transnacionais, mas também as grandes empresas brasileiras que nelas se instalam. A globalização, pela exigência que cria de obediência cega às finalidades das empresas, que passam a agir numa área do país, recria a figura do servo da gleba na medida em que, por exemplo, as agriculturas modernas de um estado como São Paulo são, na sua dinâmica e no seu funcionamento, mandadas por essa coisa que ninguém sabe o que é, essa mula-sem-cabeça a que chamam de mercado global, porque ninguém nunca viu isso, nunca ninguém lhe deu bom-dia. O que existe são grandes empresas lutando cada uma por seu interesse. E é porque lutam por seus interesses que elas tampouco regulam o território. Então tudo não está perdido, porque a lei da contradição se estabelece, ainda com mais força, quando há mais fluidez. As cidadezinhas, que são, de um lado, cadeias de transmissão da ordem globalitária, são também um teatro de uma vontade de rever a situação. O lavrador, o agricultor que é chamado a produzir frangos segundo uma certa lógica, que não é aprendida, herdada, mas imposta pela muito grande empresa, um dia se pergunta: "Mas por que não tenho qualquer comando sobre os preços, nem sobre os métodos, os processos, e por conseguinte os resultados? Por que não há um aparelho de Estado do qual eu possa me valer?" Essa contradição, creio, cria em cada região primeiro a consciência de uma situação sobre a qual não se tem controle, mas que é perceptível; depois, num segundo momento, a necessidade de exercer uma política, que já está se exercendo, como, por exemplo, mediante as pressões que são feitas sobre os jornais locais. Os grandes são menos sensíveis a essas pressões, mas os jornais, as rádios e as televisões locais são obrigados a um jogo de balança no qual atendem ao que pedem os anunciantes.
Outro aspecto é que tudo isso conduz à desordem que, equivocadamente, se chama guerra fiscal. Não é uma guerra fiscal, o que há é uma desordem nacional, da qual a guerra fiscal é apenas uma manifestação. Vamireh Chacon de alguma maneira o disse. Só que estamos enfrentando esse problema de maneira equivocada, insistimos no debate da guerra fiscal quando a questão que se coloca é de civilização. Trata-se da escolha do país que queremos, do uso do território, a que me referi no começo da minha exposição. Creio que vamos para uma outra reforma da Constituição. Esta não se completará e, mesmo que se complete, a nação exigirá outra reforma, e a produção de uma outra federação, e esta será de lugares. Quando digo lugares, não me refiro a pequenas cidades apenas. O lugar é também região, é tanto a região como a cidade. E o Brasil caminhará para a produção dessa federação de lugares, se quiser manter sua unidade e se quiser que haja um desenvolvimento harmonioso de todas as suas partes, de todas as suas frações, que hoje crescem e se desenvolvem atabalhoadamente, sem controle, ameaçando a própria estabilidade social; já não digo a soberania, porque disso quase não se fala mais. Vejo isso muito mais através de um conjunto de processos, dos quais estou trazendo alguns para o escrutínio dos senhores, graças à provocação, que imagino deliberada, de Vamireh Chacon. Portanto, estou sugerindo que não nos percamos em aprofundar soluções meias-solas e que enfrentemos rapidamente a interpretação mais global do país, de modo que possamos ser úteis à reconstrução da vida política nacional.
ARNALDO NISKIER Não vou perguntar sobre as três fases do Brasil, que Milton colocou tão bem, sobre as influências que recebeu não só de Gilberto Freyre mas também de Anísio Teixeira, e por aí teríamos uma longa caminhada.
Com Gilberto Freyre, tive um contato maravilhoso no Recife, quando ele me pediu para falar sobre a pedagogia dos trópicos. No meio da palestra, ele sentado a meu lado, faltou luz e parou tudo. Já escurecia na capital pernambucana, então ele me disse: "Vamos para a minha sala, que é um pouco mais iluminada naturalmente, assim podemos conversar até que a luz volte". Fiquei rezando para a luz não voltar nunca, porque ia conversar com Gilberto Freyre. Mas, infelizmente, foram só 40 minutos. Eu tentando convencê-lo, ingenuamente, a entrar para a Academia Brasileira de Letras, e ele dizendo: "Meu filho, não quero isso". E eu insisti: "Mas por que o senhor não quer?" E ele: "Porque não quero pedir nada a ninguém. Acho que mereço as homenagens que recebo". Era aquela vaidade que respeitávamos, porque tinha razão de ser. E eu dizendo: "Mas basta o senhor me dar aqui uma carta e eu trago uma recomendação de outro pernambucano ilustre, que é Austregésilo de Ataíde. Se me der uma carta dizendo que aceita ser candidato, o senhor entra direto". E ele disse: "Mas eu não quero". No fundo, eu também nunca soube se ele queria ou não. Tanto que saí dali dizendo: "Acho que ele quer, mas está é sem jeito". E acabou não entrando.
E aí vai a pergunta para o nosso amado Milton Santos, na verdade duas questões bem objetivas. A primeira é até que ponto sua carreira foi prejudicada pela interrupção que a revolução se é que foi uma revolução provocou, quando foi obrigado a viver no exterior e emprestar o brilho de sua inteligência luminosa a outros países. E, depois, o amigo, que ainda hoje é um estudioso diário, poderia dar sua opinião sobre de que maneira podemos imaginar uma pedagogia dos trópicos? Essa expressão, feliz ou infeliz, é de Gilberto Freyre e, na prática, teria consistência? Poderíamos imaginar, com seu conhecimento da geografia humana, que o Brasil pudesse ter uma pedagogia dos trópicos para não precisar importar descaradamente, em um processo condenável de transplantação de cultura, as idéias lá de fora, hoje avassaladoras, com computadores, Internet, etc.? Qual é a sua opinião a respeito disso?
MILTON SANTOS A interrupção da minha presença no Brasil foi também de uma atividade que não consta nos currículos que distribuo, que era a política, à qual fui conduzido por ter sido jornalista do mesmo jornal onde brilhou Luiz Prisco Viana. Ausente do Brasil por circunstâncias diversas (não me intitulo exilado, apesar de haver vivido fora 14 anos seguidos), eu aprendi, descobri que é possível servir ao país através do estudo. Mas, mais do que isso, ao voltar decidi ter influência na vida política nacional sem estar na política. E tive a sorte de viver bastante para fazê-lo, porque sei que tenho alguma influência na vida política através das idéias que me deixam difundir sem estar nos partidos, dos quais, aliás, quero permanecer distante. É evidente que desejo ampliar os laços de estima, de afeto, que tenho com pessoas como Luiz Prisco Viana, mas imagino que a construção de uma idéia de país é também algo político.
A verdade é que nos primeiros anos de minha ausência tentei ainda escrever sobre o Brasil. Mas o Brasil mudava com tanta rapidez que cedo descobri que não conhecia mais este país para tentar ensiná-lo. E foi isso o que me levou a me aprofundar na preocupação mais filosófica, que de um lado era um amarra-vida, porque não me bastavam os discos que meu filho me levava quando ia me visitar e as cartas, que naturalmente escasseiam quando a ausência é prolongada. Daí a preocupação com a produção de uma teoria e, como minha ausência foi muito longa, veio a descoberta de que as teorias que aprendi, repeti e ensinei não eram as mais utilizáveis pelo Brasil. É evidente que só recentemente percebi que essa descoberta faz falta à maior parte da intelligentsia brasileira, que não tem ainda a noção clara de que o país de que falam é um Brasil europeu, na maior parte dos casos.
É nesse quadro que buscarei desenvolver a questão da pedagogia dos trópicos. Fui professor também na Universidade de Bordeaux, na França, magistério que durou um ano, antes da minha promoção para a Sorbonne, onde fui professor por alguns anos, ao mesmo tempo em que o atual presidente da República ensinava numa faculdade da periferia parisiense. Essa minha estada na Universidade de Bordeaux teve como um de seus resultados palpáveis a escrita de um livro que era, de alguma maneira, a crítica à geografia que aprendi e que decidi renegar e substituir. Na realidade, estou muito à vontade para dizer isso, porque quem ler as bobagens que andei escrevendo (e há gente que lê) verificará que de tempos em tempos mudo às vezes drasticamente de orientação, abandonando uma grande parte do que escrevera antes e tentando novas interpretações. Pois bem, a Universidade de Bordeaux era o centro da geografia tropical e da geografia colonial paralelamente. Não sei se isso responde a sua pergunta, talvez eu tenha de acrescentar duas ou três palavras e peço que a família Freyre veja no que vou dizer o dever de um pequeno professor quando é provocado a responder em função do que pensa.
A idéia do trópico como fator de produção da história não me agrada. Ela me agradou quando Gilberto Freyre escreveu. Mas ele escreveu isso em função do seu aprendizado também, numa fase da sua história pessoal em que os mestres tinham de ser reproduzidos, como o fiz em relação aos meus mestres antes de tentar, eu próprio, ser um mestre, isto é, antes de tentar ser o reproduzido. Não há, por conseguinte, condenação do homem de pensamento, porque cada fase da vida é vivida segundo uma história que nos cerca, uma história pessoal, mas também uma história objetiva que conduz a posições interpretativas que vão evoluindo com o tempo e com o espaço também, o que leva a uma recriação do pensamento. Por isso estou à vontade para dizer que a gente deve agradecer a Gilberto Freyre numa fase em que não havia ainda Brasília, aquela construção em cimento que diz ao mundo: "Aqui está um país que pode construir-se como coisa grande". Havia necessidade de mostrar que este país era capaz de fazer coisas tão importantes quanto qualquer outro. Vejo a tropicologia um pouco como isso: somos dos trópicos, malsinados pelos acadêmicos europeus e norte-americanos como coisa de là-bas, coisa que não pode ir muito longe, na medida em que o trópico é o lugar da preguiça, do descanso permanente e do atraso. Não tenho procuração para defender Gilberto Freyre, estou apenas tentando fazer uma exegese da história do seu pensamento, da história do pensamento em geral, o que não me exime de hoje considerar que esse ponto de partida é equivocado e não nos ajuda, porque o Brasil é grande pelo seu povo, que em boa parte tem origens tropicais, e ele próprio é tropical. É evidente que as duas vertentes da construção da história, da interpretação do Brasil a paulista, que é fundada na economia, e a nordestina, que é fundada na cultura vão um dia confluir. Mas, enquanto não confluem, creio que é possível dizer que esse caminho não é bom.
CLÁUDIO CONTADOR Professor Milton Santos, acho que, mais do que discordar, a função de um discípulo é antes refletir na palavra do mestre. É exatamente a reflexão que me leva a fazer uma pergunta sobre sua periodização da história do Brasil: se não existe um conflito na sua qualificação da primeira fase, em que o senhor menciona um povo parado nos primeiros 350 anos. Talvez um historiador não concorde com o senhor, porque me parece que foi um período extremamente dinâmico, de conquista de território, de estabelecimento de bases pelo Brasil inteiro. Onde é que fica a idéia do povo parado? Parece-me que hoje o povo é muito mais parado do que naquela época, em que se lutava muito mais. Talvez o Brasil naquele período tivesse mais objetivos também, a idéia de criação de país. É só essa a minha dúvida.
MILTON SANTOS A minha posição é fruto de dois pontos de partida. Um deles é que sou geógrafo, então a minha descrição e interpretação do Brasil forçosamente têm a ver com os homens agindo, mas têm a ver com as coisas, que são o teatro e a condição da ação dos homens. É evidente que toda e qualquer periodização permite uma subperiodização.
A outra premissa do pensamento que venho desenvolvendo há uns 10 ou 15 anos é que o fenômeno técnico, não a técnica em si, é um dado central na explicação do comportamento dos povos. A técnica é sempre uma autorização; eu uso ou não, mas ela é uma autorização. Ela pode ser uma proibição também, em função daqueles que têm o controle sobre essa técnica. Quando digo um país parado, estou me referindo ao homem comum que produz, troca e consome sem muito mudar de lugar ou cujas mudanças são ocasionais, levando a um regresso. Era parado também porque as informações circulavam pouco. Ainda na nossa maturidade, São Paulo já mandava no Brasil, mas mandava depois: mandava na Bahia três dias depois, em Belém 12 dias depois, no Acre 22 dias depois. Hoje, São Paulo manda no Brasil imediatamente. Por isso São Paulo está presente, instantaneamente, no país como um todo. Mas também os homens têm uma fluidez maior, as mercadorias têm uma fluidez maior, a tal ponto que a produção não é mais comandante da economia, mas é a circulação que comanda, inclusive a produção.
É a circulação que decide que tipo de produção se faz. Não como Marx escreveu (e corretamente), dando à produção o papel de reitor da vida econômica. Hoje ele não poderia dizer mais isso. Tendo o território como pano de fundo, coisa que os economistas têm enorme dificuldade para aceitar, sobretudo depois de Marx, e mais ainda com a globalização, é que eu tento essa interpretação, que, por isso mesmo, é alternativa à dos economistas, que leio porque necessito deles, como dos outros cientistas sociais, para que me ajudem a entender o Brasil. O país se torna realmente fluido hoje. Sem essa idéia de fluidez, não posso tampouco entender as dinâmicas atuais que conduzem à desordem. A desordem atual e a ingovernabilidade da nação estão ligadas a essa fluidez. É evidente que uns são mais fluidos do que outros. Mas há uma fluidez que é potencialmente possível e que não o era no passado. Vou mais adiante no domínio do paradoxo: essa não-fluidez era a condição da unidade nacional.
JOSEF BARAT Sou um economista que tem visão de espaço, talvez um dos poucos, até por minha própria especialização. Mas concordo que de modo geral os economistas não têm essa visão do território, enfim, da espacialização da economia.
Quero lhe fazer duas perguntas. Primeiro, concordo que nos 350 anos iniciais o Brasil estava parado, no sentido de que não acompanhou o que acontecia nas partes mais dinâmicas do mundo, tanto do ponto de vista político, institucional, ou mesmo do próprio comércio. O que me intriga é como um país que ficou parado por tanto tempo, de repente, nos últimos 150 anos, foi um daqueles que mais cresceram ou que mais demonstraram capacidade de se desenvolver, até com seus próprios recursos naturais e humanos. Eu gostaria, se fosse possível, de entender um pouco melhor isso, de como é que se sai de uma situação de fechamento, de estagnação, de falta de comunicação com o mundo e de repente se estabelece uma outra dinâmica na própria sociedade.
A segunda pergunta é: quem está pensando no Brasil hoje? Você tinha dito que no passado os clérigos e a academia pensavam no Brasil, talvez os militares tenham pensado no Brasil também, até por causa de sua presença no território (e eles têm uma visão de território até por força disso). Quem está pensando hoje no Brasil? O que se observa é que políticos, empresários e mesmo acadêmicos hoje se rendem à globalização como algo inevitável e, já que é inevitável, que todos relaxem e aproveitem. Mas quem está pensando na unidade, não apenas a unidade territorial, mas principalmente a unidade do próprio conceito de nação? Eu gostaria também, se possível, que você esclarecesse um pouco isso.
MILTON SANTOS Estou muito contente em revê-lo, Barat. Meu diálogo com você vem de antes de conhecê-lo, porque parte de minhas aulas, tanto nos Estados Unidos quanto na França ou na África, era fundada em seus trabalhos, que sempre achei muito próximos das preocupações dos geógrafos.
A periodização é sempre arbitrária, porque as cesuras do tempo são um processo de reconstrução, não diria artificial, mas externa ao próprio tempo. O fato de que agora estou dando importância ao fenômeno técnico me levou a essa forma de periodização.
O pensamento brasileiro eficaz do ponto de vista da construção política e econômica a voz audível, a fala autorizada, clássica, que se deitava sobre os papéis sempre foi bebido no mundo, no chamado mundo; porque nos equivocamos chamando a Europa de mundo, nos equivocamos agora chamando a Europa e os Estados Unidos de mundo, porque, no nosso pensamento do mundo, o resto da humanidade não está. Então privilegiamos 1 bilhão de pessoas e excluímos os outros 5 bilhões no nosso pensamento do mundo. Pois bem, uma das constantes do Brasil é a vontade de ser moderno, descaradamente moderno que o brasileiro sempre teve , e essa entrega à modernidade dos outros me parece um dado extremamente importante para entender a dificuldade de construção da nação. Porque nós dificilmente nos reclinamos sobre a tarefa de imaginar uma modernidade brasileira. Isso existe também. A modernidade é feita das possibilidades que existem num dado momento, e a história é construída por aquilo que tomo delas. Posso tomá-las em função do meu país ou dos outros. Sempre tomamos dos outros, e agora tomamos muito mais do que antes, em função exatamente desse pensamento único. Esse gosto pela modernidade é muito menos objeto de uma análise crítica do que poderia ser. E hoje é muito pior, porque a difusão do pensamento é muito controlada, muito limitada. Há uma redução na circulação das idéias que não são dominantes no Brasil. A pobreza do debate acadêmico, que sempre existiu, aumentou, de um lado, pelo poder e prestígio das grandes universidades, que têm uma espécie de monopólio na difusão das idéias. Amplia-se esse monopólio, impedindo que uma quantidade de gente interessante seja conhecida e apreciada. Acho que esse é um dos grandes problemas do Brasil. As universidades não têm mecanismos de premiação de seus grandes professores, e o país não tem um mecanismo que permita mostrar aqueles que emergem, que se agigantam pelo seu trabalho intelectual.
EDUARDO SILVA Professor, me chamou muito a atenção o último ciclo da fluidez. Sou engenheiro de profissão e aprendi algumas técnicas de modo convencional, cursei uma universidade, fiz cursos paralelos, enfim acabei aprendendo alguma coisa pelo método usual. Mas tive uma experiência de vida muito importante para mim. Fui presidente da Febem em São Paulo durante quatro anos, e aprendi na prática como o protagonismo dos jovens agora se tornou uma realidade. Através das artes e também das técnicas, esses meninos aprendem ou podem aprender coisas que levei muitos anos estudando, talvez não numa linha absolutamente correta de livros ou de universidade. Eles aprendem porque querem mostrar não só seu potencial, seu talento, mas também usam isso como linguagem para se relacionar com os outros. Então hoje estou querendo ter uma visão positiva da Internet, que considero um caminho para a democratização do conhecimento técnico. E aí vamos nos livrar daquelas velhas amarras de só termos alguns poucos professores, alguns poucos centros de divulgação de idéias, uma ou outra empresa ou emissora que divulga programas ou que é capaz de fazer veiculação de idéias. Então quero dizer ao senhor que me chamou muito a atenção, na sua exposição, o valor dado às artes e às técnicas, e queria reforçar isso. Os jovens hoje precisam e estão conseguindo ser protagonistas. Isso é muito bom. Acho que é um sinal de otimismo.
MILTON SANTOS Teilhard de Chardin havia, de alguma maneira, sugerido essa possibilidade que a história das técnicas atual permite. Essa grande mutação filosófica do homem vem do fato de que estamos no limiar da renovação dos artesanatos. O que foi feito através da história ocidental nos últimos três séculos? Primeiro, a morte gradativa dos artesanatos e, segundo, a morte brutal dos artesanatos. As técnicas mais modernas, mais revolucionárias, são essas que são significadas pela Internet, que se podem instalar em toda parte e ser utilizadas por todos. A forma de regulamentar seu uso é um embate político de primeiro plano. O que é o artesanato? É o exercício livre e soberano da inteligência do homem, inteligência que é provocada pelo que está em torno dele e que pode ser alimentada por preocupações altas, não apenas gastrointestinais, como, por exemplo, a técnica das máquinas, que trouxe como conseqüência o grande capitalismo, o industrialismo e o imperialismo. Então essa revolução do homem, essa nova ação, essa recriação do homem me parece que é um dado central da nossa época. É essa possibilidade de refundarmos a humanidade através do que vosmecê está sugerindo. É evidente que não basta ocupar os menininhos com artes e com técnicas doces se não tratarmos também de mudar a civilização.
MOACYR VAZ GUIMARÃES Ainda sob o impacto da aula magnífica com que Milton Santos nos brindou e em função da minha formação de educador e de cultor do direito, atrevo-me a trazer algumas reflexões que já há muitos anos dominam meu espírito, fazendo com que diariamente eu pense e repense, procurando encontrar algum caminho. Para isso vou usar como gancho palavras da sua exposição. Começo com a desordem nacional, muito bem colocada. Pergunto: não seria a hora de criarmos uma doutrina capaz de definir um modelo brasileiro, o modelo do país que queremos (usando suas palavras), mas com base nas análises e nos pressupostos que encontramos em sua valiosa obra? Não seria preciso costurarmos retalhos, sem concessões, sem improvisações, sem temor e sem temeridade, desprezando meias-solas, como disse o conferencista, mas sintetizando e definindo com clareza um rumo coerente e sobretudo lógico para os destinos do Brasil para o próximo século, unindo tendências aparentemente conflitantes, para sairmos da perplexidade e da incerteza que nos dias de hoje muitas vezes a todos nós angustiam muito? Gostaria de ouvir um comentário seu a respeito disso.
MILTON SANTOS Sou muito sensível às suas palavras e fico contente de ver que muitos brasileiros, como o senhor, tenham a preocupação fundamental da vida do país. Faria um pequeno adendo, se me permite. É que não vejo muito a produção de um modelo para o Brasil. Creio que devem ser permitidos vários modelos que construamos, cada um em função da sua ideologia, que tem de ser claramente exposta antes. Se não digo claramente antes qual é a minha ideologia, não permito ao outro discutir comigo. O dever principal de quem se exprime é deixar ver claramente quais são as premissas do que pensa. O primeiro momento é o da construção intelectual, o segundo, o da política. Insisto nisso. Tudo não é fato da globalização. O primeiro momento é o da produção acadêmica. Sei que essa palavra é malsinada, o Brasil não gosta muito da sua academia, mas vou insistir nela. A produção acadêmica é a primeira coisa a ser feita, antes das decisões dos homens de negócios, antes dos discursos dos homens da política. E não se concebe a produção acadêmica que não seja plural. Depois, na hora de fazer a política, então as tendências se agrupam em função das possibilidades concretas do momento. Esse é o trabalho dos políticos. É a única pequena observação que quero fazer; primeiro porque tinha de insistir na importância do trabalho acadêmico; segundo, se começo já com a idéia de um modelo, desvio-me da tarefa essencial da análise. A análise tem de ser inocente, não no sentido de idiota, no sentido daquela coisa naïf, não é innocent, é naïf diante da chamada realidade, já que a realidade sou eu que apresento. O que há são situações. Então minha maneira de armar o puzzle é o que chamo de realidade, e um outro dirá que não é. Daí o debate. Creio que é essa a tarefa que nos incumbe urgentemente, no caso brasileiro, porque estamos avançando rapidamente para o precipício sem que esse tipo de análise seja possível. A própria pesquisa em ciências humanas foi abandonada. Acredito que na sua própria área, que é absolutamente crucial no mundo da fluidez, os recursos que são destinados à pesquisa a cada ano minguam ou desaparecem.
DANILO SANTOS DE MIRANDA Eu gostaria apenas de deixar como elemento de reflexão algo que o senhor mencionou em sua fala a presença da arte popular como uma espécie de detentor de um discurso político. Até que ponto essa questão da arte, da cultura, da ação através desse processo alavanca e valoriza de fato a cidadania? Uma outra questão diz respeito a uma característica, tida como tão brasileira, que é a diversidade cultural, o chamado multiculturalismo, que é um traço realmente mais brasileiro do que de outros povos, de outras civilizações. Sei que são questões que talvez suscitem mais um longo tempo de exposição do senhor, mas é uma proposta que eu não podia me furtar a colocar.
MILTON SANTOS Creio que vantagem significativa de haver grandes cidades é que, se o Estado e a globalização constituem uma ameaça à nação, a grande cidade recria a nação, através da produção de idéias fecundas, idéias que podem guiar a produção de uma política.
Gostaria de agradecer por esta manhã, que para mim foi de muito grande inspiração. Quero agradecer às entidades que me brindaram com este prêmio e este troféu. E quero felicitar, com grande enlevo, a família do nosso patrono Gilberto Freyre. Muito obrigado.
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